Categoria: Artigos

NAZARENO TOURINHO: retalhos de uma trajetória intensa e produtiva

 

Contra a versão oficial, Nazareno Tourinho defendeu na tribuna da Assembleia Legislativa do Pará o sentido social da Cabanagem, revolta popular ocorrida contra a extrema pobreza, fome e miséria pós independência do Brasil.

 

MENSAGEM DA PÁGINA do Facebook que comunica a desencarnação da médium Zíbia Gasparetto dias atrás é de uma leveza encantadora. Dir-se-á muito de acordo com o que ensina o espiritismo. Dispensa a velha terminologia plena de tristezas, melancolia, pesares e apenas informa a partida do espírito que trocou um estágio por outro, sem desaparecer.

Eis o texto: “Zíbia Gasparetto, 92 anos, completou hoje sua missão entre nós e parte para uma nova etapa ao lado de seus guias espirituais, deixando uma legião de fãs, amigos e familiares, que foram tocadas por sua graça, delicadeza e por suas palavras sábias. Esse legado será eterno e os conhecimentos de Zíbia sobre as relações humanas e espirituais serão transmitidos por muitas e muitas gerações. Ela segue em paz ao plano espiritual, olhando por todos nós”

A vida inteligente na Terra é uma contínua história de partidas e chegadas, idas e vindas. Espíritos que concluem sua jornada e espíritos que a iniciam, numa alternância permanente. Daí o nascimento e a morte como fenômenos sucessivos. Quando do nascimento em novo corpo físico, os vivos se enchem de júbilo; quando do nascimento no corpo espiritual, os também vivos, mas invisíveis, cantam alegria. Nada de tristeza, amargura e dor. (mais…)

Nazareno Tourinho desencarna em Belém do Pará

O escritor, dramaturgo e jornalista espírita Nazareno Tourinho, de 84 anos, desencarnou neste dia 19 de outubro, em sua cidade natal, Belém do Pará, após sofrer um enfarte. Tourinho é autor de inúmeros livros espíritas e de uma vasta obra de textos teatrais, vários deles premiados e levados ao teatro, tendo sido inclusive homenageado pela Universidade Federal do Pará com a publicação de uma tese de estudo de sua obra teatral, ao tempo em que foram as peças reunidas e publicadas em um bem cuidado livro. Era membro da Academia Paraense de Letras.

Sua obra espírita aborda temas como atividades dos centros espíritas, conceitos filosóficos espíritas, estudos da mediunidade e livro sobre o médium Edson Queiroz, entre outros. Teve atuação destacada em vários estados brasileiros, com participações em congressos, palestras e orientação sobre atividades de desenvolvimento mediúnico. Foi um dos mais abalizados na ação de desenvolvimento da mediunidade, com dois livros sobre o assunto publicados, onde reúne conceitos e experiências.

Fundou em Belém do Pará e dirigiu até o seu desencarne a Casa Espírita do Nazareno, onde desenvolvia atividades assistenciais, ao lado de atendimento de curas, com a atuação simultânea de diversos médiuns, com resultados bastante expressivos. (mais…)

Livro do Cesar Perri propõe união, mas de partida exclui parcelas expressivas do espiritismo brasileiro

O que seria uma união entre as forças espíritas do Brasil? Essa pergunta surge de imediato quando se toma o recente livro escrito por Antonio Cesar Perri de Carvalho, publicado pela Editora EME, de Capivari, São Paulo.

Desde que saiu de Brasília e voltou a residir em São Paulo, após deixar a presidência da FEB, Cesar Perri iniciou uma jornada intensa de reflexões críticas sobre o movimento espírita brasileiro no que tange à sua organização político-administrativa. O seu livro – União dos espíritas. Para onde vamos? – é o resumo dessa jornada e do seu pensamento atual.

A questão, como sabem todos aqueles que estudam o assunto, é antiga e cheia de curvas, desvios e atalhos. Além do mais, está no cerne de toda filosofia que propõe a paz e se funda na espiritualidade humana a busca pela união de pensamentos e ações entre os seres. O espiritismo está entre as mais distintas filosofias e esse propósito de união subjaz como sentimento natural entre os seus adeptos e admiradores, o que pode ser observado desde os primórdios da chegada da doutrina no Brasil, na segunda metade do século XIX.

Nesse período de cerca de 150 anos de presença do espiritismo em solo brasileiro, as tratativas de união e sua efetivação são uma história cujo resumo é uma pálida e frágil peça, onde os grupos excluídos, poucos no início, se multiplicaram a ponto de se questionar hoje, como o faz Cesar Perri, sua validade para os novos tempos. A evidência é que responde enfaticamente: a união que aí está não representa os anseios nem a realidade do espiritismo do século XXI, embora a união continue sendo um objetivo importante. (mais…)

Congressos espíritas: a ausência dos sem voz continua

A extensa programação e a presença de um time de expositores de primeira linha justificam o silêncio imposto aos que teriam o que dizer, mas não são convidados.

A grande pergunta permanece: para quem são feitos os congressos espíritas? A crer no que os multiplicados exemplos mostram, servem aos interesses dos supostos sentinelas da doutrina e a um público que se encanta com a festa, mas não pode se manifestar. São, esses eventos grandiosos, um conclave de múltiplos falantes e nenhum diálogo, por mais conflitante que essa definição pareça.

Veja o congresso do Estado do Rio de Janeiro, a ocorrer agora em outubro/18. Será, sem dúvida nenhuma, grandioso, como antecipa a peça de marketing na internet, pois deve contar com 2.000 participantes e é tratado como “o maior evento espírita” daquele estado. Assim mesmo, em letras garrafais, como se naquele Estado houvesse algum outro evento concorrente.

Leia-se a programação e ver-se-á uma sequência estonteante de palestras, painéis e mesas redondas a testar o fôlego dos participantes durante três dias, com mais de 20 horas de duração, tudo sob a responsabilidade de lideranças espíritas reconhecidas por seu bom desempenho na tribuna, do presidente da FEB a expositores de variados estados brasileiros. A escolha, logo se vê, deu-se por competência e por critérios políticos: nenhum deles sofre qualquer tipo de contestação da oficialidade ou não apresenta algum tipo de risco ao pensamento dominante. Divaldo, dessa vez, não vai estar presente, quiçá por conta de agenda. (mais…)

CPDoc, você o conhece?

Seus membros e fundadores comemoram 30 anos de existência, resistência e trabalhos.

Integrantes do quadro atual do CPDoc
Autores de livros analisados e publicados pelo CPDoc
Três dos fundadores do CPDoc depõem na festa dos 30 anos

As comemorações, realizadas em Santos, o berço natal do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, CPDoc, aconteceram no dia 1 de setembro próximo passado, nas dependências do Centro Espírita Allan Kardec, que também comemorou, na ocasião, seus 74 anos de vida.

Foi um evento digno de nota. Três décadas atrás, ou seja, em 1988, cinco jovens ousaram materializar um desejo de criar um espaço voltado aos estudos e pesquisas como meio de aprofundamento de uma doutrina que lhes era muito cara: o espiritismo. Tal ousadia representava, já e então, um certo atrevimento em vista das circunstâncias e do momento, circunstâncias que se agravariam com novos fatos que viriam.

O espiritismo no brasil sempre muito tendente ao predomínio de uma massificação baseada no sentimento místico era, como permanece sendo, uma mensagem incorporada idealmente pela classe média brasileira, de forte resistência às iniciativas em que a liberdade de pensamento e expressão se encontram no centro das atenções. Recorde-se que 1988 foi o ano da nova Carta Magna brasileira, conhecida como constituição cidadã. Ou seja, vivia o país seu ponto mais alto do ciclo de libertação da repressão marcada pelo período da ditadura militar, cujos efeitos se estenderam à sociedade como um todo e, naturalmente, também ao meio espírita.

Mas não foi só. Esses jovens pertenciam ao movimento espírita de Santos, que significava, então, não apenas uma cidade praiana, turística e principal porto do país. Era ela a expressão de um movimento rebelde capaz de se contrapor ao status quo. Dois anos antes, suas principais lideranças haviam sido derrotadas em sua proposta de assumir o comando estadual representado pela USE, determinadas a implementar mudanças consideradas demasiadamente ousadas. Ficaram conhecidas como o Grupo de Santos e incorporaram, entre outras, a acusação de intencionarem retirar Jesus da doutrina espírita, por conta de sua resistência à consagração do espiritismo como religião, que, afinal, se tornou predominante. (mais…)

Porta Aberta no apoio à reinserção social

Com apenas dois anos de funcionamento, a Fundação Porta Aberta, na capital paulista, já disse ao que veio.

Uma das turmas formadas na sede da Fundação Porta Aberta.

A ONG idealizada pelos amigos Jacira Silva e Mauro Spinola, espíritas de quatro costados, junta hoje um grupo de colabores dedicados a transformar a esperança em realidade. Nestes dois primeiros anos de vida, instalou-se em sede própria, conseguida através de convênio com o poder público, e já está formando suas primeiras turmas de profissionais como meio de oferecer um novo caminho social aos inscritos.

Como muito bem explica em sua página na internet, a Fundação Porta Aberta é uma ONG que apoia e fomenta atividades de reinserção social e profissional de pessoas em uso abusivo de álcool e outras drogas, com a missão de acolher, empoderar e promover o crescimento pessoal e profissional de pessoas envolvidas com dependência química.

A Fundação promove os cursos de maneira gratuita e funciona como uma espécie de centro de passagem para os dependentes químicos que já receberam tratamento e se encontram na condição de retorno à sociedade. A ideia é ocupar essa espécie de hiato que se forma entre o tratamento e o meio social, onde muitas vezes os assistidos encontram enormes dificuldades. Os cursos profissionalizantes e outros tipos de assistência oferecidos têm o objetivo de suprir necessidades imediatas de recolocação no mercado de trabalho, como uma das condições à reinserção social.

Porta Aberta está localizada no bairro paulistano do Campo Belo, à rua José dos Santos Jr., 563 e pode ser acessada em sua página na internet – clique agora – e pelos telefones 11 3115-1250 ou 11 94174-0695.

Uma equipe de colaboradores voluntários preparou um maravilhoso vídeo que a Fundação está disponibilizando, com a participação e apoio do ator Reynaldo Giannechini. Veja aqui

 

Divaldo Franco: um médium em três tempos

A propósito do anúncio feito pela Mansão do Caminho, para o evento intitulado “Encontro Fraterno com Divaldo Franco”, a realizar-se no próximo mês de setembro, na Bahia.

Os médiuns sempre chamam a atenção por uma ou outra razão. Aqueles que se projetam no cenário social colocam-se sob holofotes permanentes e não conseguem fugir das vistas dos observadores, seja por seu comportamento enquanto médium, seja pela vida que levam. São indivíduos públicos, tanto quanto outros que exercem atividades no âmbito da comunicação, da política e assim por diante. Suas vidas particulares, em certo momento, se confundem com suas atividades e é dessa forma que se tornam visíveis para a parcela da sociedade a que alcançam. Só com muito esforço conseguem manter uma certa privacidade, de modo a proteger a vida íntima, sua e dos seus. Se o homem comum tem imensas dificuldades na sociedade contemporânea para distinguir o público do privado, muito mais difícil será essa distinção para aqueles que se tornam personalidades públicas, tal como ocorre com os médiuns de grande destaque.

Em 1973, Divaldo Franco fez uma palestra na Federação Espírita de São Paulo especialmente para dirigentes e trabalhadores de centros espíritas, por convite do seu Departamento Federativo. O objetivo era fugir do estilo conhecido de oratória do tribuno e colocá-lo mais próximo da realidade das casas espíritas, conversando sobre seus objetivos, necessidades e situações factuais, ao falar diretamente com os dirigentes.

Divaldo surpreendeu positivamente. Quem o conhecia somente pela forma tradicional de oratória teve oportunidade de conhecer uma outra face do tribuno, livre, informal, dialógica, de tom coloquial. Divaldo exemplificou situações, contou casos, riu e fez rir. A começar pela jocosa comparação de família que fez, aproveitando a presença de Eurípedes de Castro ao seu lado. Disse que este estava tentando competir com ele, (mais…)

Espiritas autopromocionais

O simbolismo da mão esquerda não é suficiente para coibir o personalismo e a vaidade, que acabam prevalecendo sobre o conhecimento espírita.

Atualmente, estamos vendo nas redes sociais, nos e-mails e nos diversos blogs individuais uma febre de lideranças espíritas, consagradas ou não, consideráveis ou inexpressivas, realizando verdadeiras proezas autopromocionais, ou seja, a título de difundirem a doutrina, mais não fazem do que promoverem a si mesmos. Buscam o sucesso dos quinze minutos ou a fama forçada na insistência das notícias de pouco valor.

Não se ponha a culpa na rede digital. Antes mesmo dela existir, esse tipo de espirita vaidoso já existia. Nos tempos atuais, porém, com as facilidades que a rede mundial oferece e a quase irresistível atração que exerce, o número deles cresceu assustadora e desavergonhadamente.

 Dizem alguns que é preciso divulgar a doutrina e que os eventos são parte dessa obrigação auto assumida, mas isso não passa de subterfugio para exporem a suas personalidades e darem asas a desejos egoísticos sem nenhum pudor. O que fazem de fato é autopromoção. A doutrina vem apenas em subtítulos ou resumos e os títulos das supostas notícias de que se valem escondem aquilo que acaba por surgir logo em seguida – seus nomes acompanhados de fotos muitas vezes fartas em que aparecem no púlpito ou rodeados de pessoas sorridentes.

São espiritas disfarçados de jornalistas e repórteres, cujo objetivo é se mostrarem na condição de obreiros humildes e empenhados em tornar o alcance da doutrina maior perante a sociedade. Fingem estar fornecendo apenas notícias, para o que são maus jornalistas e pior repórteres. Seus textos sequer cumprem os princípios do lead para que a informação seja completa. À falta de alguém que possa fazer a cobertura jornalística dos eventos que patrocinam ou para os quais são convidados ou se auto convidam, eles mesmos assumem essa tarefa, e o fazem com extremo apego à atualidade dos fatos criados. (mais…)

Pesar, dor, tristeza: quando aprenderemos?

As palavras mal ditas contaminam o significado e perpetuam o domínio da incoerência.

Natureza e morte são termos antagônicos na economia da vida, de tal modo que o primeiro não incorpora o segundo porque não existe morte na Natureza. A morte como destruição e ponto final é uma interpretação cultural, simbolismo criado para expressar o sentimento de impotência do ser ante os fenômenos da vida e do Universo. A flor quando perde sua vitalidade não está à morte, mas num ponto do ciclo de sua vida de transformações. O pássaro sem a energia vital parte para outro evento natural. Os corpos dos homens, sem o mesmo elemento vital, seguem semelhante ciclo e todos, flor, pássaro e corpos humanos, no curso das leis naturais, cumprem o mistério da libertação e deixam as essências imortais que os habitam livres para outras uniões. No ser humano, o espírito, liberto, segue impulsionado por sua história de conquistas e desafios, para mais tarde renascer e progredir sempre, pois, “tal é a lei”.

O espiritismo é doutrina de vida, valorizadora das leis que presidem a Natureza a demonstrar que a matéria e o espírito coexistem em regime esplêndido e harmonioso, sem, contudo, deixar de pôr à vista que o espírito se sobrepõe à matéria. O espírito é a inteligência que aviva a matéria, a matéria é o campo que permite ao espírito as experiências evolutivas. Ambos, espírito e matéria, existem antes e depois de sua união, mas a matéria sem o espírito é a flor sem vitalidade, o corpo sem inteligência, a máquina sem o motor. A matéria é perene em suas mutações, o espírito é imortal em sua aspiral evolutiva. (mais…)

Chico Xavier e o desafio do discurso biográfico

Onde se situa o mito e onde está o dever de retratar o Homem? 

Chico Xavier 7
Chico Xavier e Pietro Ubaldi. Dois médiuns, duas históri

Alguns leitores demonstram incômodo diante dos retratos de Chico Xavier feitos pelas câmaras escuras dos seus biógrafos, indagando – e até culpando – esses biógrafos pela ausência da visão realista do ser humano existencial, prevalecendo da visão mítica que o coloca num pedestal distante, consequentemente, o distancia do homem que ele foi.

Se é certo que cada cabeça é uma sentença, os autores atuais e futuros da vida de Chico Xavier devem ser analisados na sua autonomia e objetivos; e só a partir daí sentenciados.

O discurso biográfico gera sempre discussões diante da percepção de cada leitor e não raras vezes aparece pleno de ambiguidades e contradições, tais como são as vidas dos próprios seres humanos. Há uma questão de resolução extremamente difícil nestes discursos, especialmente quando o pragmatismo não se mostra operativo no autor. Trata-se de decidir sobre quanto a realidade perceptível do homem enquanto ser contraditório deve receber os traços mais fortes. Quando se trata de personalidades do destaque de Chico Xavier essa questão aumenta exponencialmente.

Cairbar SchutelAlguns exemplos servem de comparação. Ao pesquisarmos a vida de Cairbar Schutel[1] para o livro “O Bandeirante do Espiritismo”, que lançamos no IX Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, em 1986, Eduardo Monteiro e eu nos deparamos com momentos de grande angústia e, por que não, de questionamentos ante fatos de sua vida que poderiam alterar parcialmente a imagem geral que dele sempre foi veiculada. O pragmatismo que nos movia era o da verdade, que se coloca acima de qualquer óbice, mas, confesso, havia momentos em que isso não era suficiente, seja porque certas evidências não podiam ser comprovadas, seja porque havia do outro lado aqueles que defendiam não ser verdade o que nos parecia ter ocorrido.

Capa Vinicius sombraNo caso da biografia de outro espírita bastante conhecido no Sudeste brasileiro, Pedro de Camargo, o Vinicius[2], o dilema não se deveu a nós, os autores, mas a familiares do biografado, que não desejavam um discurso sem um forte conteúdo emocional, do qual procurávamos nos afastar. A biografia ficou estacionada por alguns anos, até que decidimos concluí-la apesar das deficiências por falta de parte das informações, que nos foram sonegadas.

Até que ponto o realismo não torna o discurso biográfico frio e pouco atrativo? Ou é o contrário? Qual é o limite entre a dura realidade do cotidiano dos seres humanos, em que se colocam no jogo existencial com suas virtudes e deficiências, ao mesmo tempo em que se mostram capazes de realizações extraordinárias? A fotografia nua e crua de seus momentos turvos deve conviver com as imagens coloridas de suas conquistas admiráveis? Se sim, em que medida?

Quando se trata de personagens conhecidas publicamente por suas proezas e suas mazelas, as biografias encontram um tipo de liberdade discursiva que nem sempre é bem vista quando o indivíduo retratado obteve o reconhecimento social por ações que marcam o sentimento, elevando-o a uma condição mitológica. Chico Xavier encontra-se certamente entre estes. Sua vida e sua obra, indissociáveis, não podem ser retratadas sem as cores das belas imagens e o preto e branco da realidade humana, mas é neste momento que o dilema se acentua. Tratado por uns como santo e por outros como infalível, posicionado na escala dos espíritos superiores por mais alguns, Chico tornou-se uma personalidade inalcançável de tal modo que praticamente tornou impossível representar com os toques da realidade sua dimensão humana.

O terreno aí é bastante pedregoso. Adversários de sua obra não aceitam o valor que admiradores lhe atribuem por conta do homem premido pelas exigências do corpo e do meio, que inevitavelmente exercem suas influências e contribuem para ações que deveriam ser vistas com naturalidade, mas não o são, pelo menos em tipos como Chico Xavier. Que outros se comportem por padrões menores é aceitável, mas aqueles que se elevam com feitos pouco comuns, não. Estes têm a obrigação de serem incomuns em tudo.

De outro lado, os admiradores fervorosos do médium costumam tornarem-se surdos aos comportamentos comuns aos seres humanos que o médium demonstrava, preferindo atribuir isto à falta de honestidade daqueles que desejam somente diminuir sua obra com acusações sem prova.

Com isso, constroem-se duas imagens ambíguas: de um lado, a do médium e obra perfeitos e, de outro, a do médium e obra condenáveis. Ambas padecem da falta dessa coerência que solicita a compreensão profunda da dimensão humana para lhe atribuir o valor devido. O ser humano não é o espírito ou o corpo, mas a fusão de ambos, o que o leva a existir no agora, sob a influência das experiências de vidas anteriores e das exigências naturais do mundo físico de agora. Para alcançar realizações expressivas, o ser dual se esforça e sofre, dividindo sua existência entre momentos de grandezas e de fraquezas, premido por uma realidade que o leva a fazer escolhas de experiências a vivenciar. Quando os desejos mais simples não alcançam seu termo, a decepção e a tristeza; quando a obra se projeta vigorosamente no futuro, a felicidade. O homem sonha, o médium age, mas o sonho e a ação mediúnica não estão necessariamente simétricos. Os sonhos estão ligados à dimensão humana do ser, enquanto a ação mediúnica se relaciona ao compromisso livremente assumido. O médium não imagina que deve deixar de ser homem e este não deseja que apenas o médium prepondere. Os conflitos que dessa dualidade surgem não costumam ser bem compreendidos nem pelos adversários nem pelos admiradores, quando deveriam representar apenas a realidade do ser.

Tratado na condição de mito, Chico se distancia do homem; visto somente na sua condição humana, Chico se afasta do médium. Apesar disso, o médium é o homem, o homem é o médium, associação esta que se deu desde o berço e não em um determinado ponto da existência do homem, nem de forma aleatória ou ocasional. Para se entender o médium, requisita-se a dimensão humana, da mesma maneira que, no caso de Chico, para entender o homem faz-se necessária e dimensão mediúnica.

O médium que Chico foi era o espirito no corpo, fundidos, cérebro e memória espiritual conjugados na ação de interpretar os seres invisíveis no momento afetivo da comunicação mediúnica. Nesse instante sublime, o homem não abandona sua condição humana para realizar a ação mediadora, antes, utiliza-a ou coloca-a à disposição do emissor invisível. Kardec descortina essa realidade e a reforça, clamando por uma compreensão capaz de auxiliar no julgamento do produto mediúnico, a mensagem. O médium no corpo é o ser no mundo, necessário ao comunicante, pelo qual este vislumbra a possibilidade de intervir e participar objetivamente deste mundo. O médium no corpo é o ser na matéria, de quem o espírito precisa para suas intervenções aqui, no planeta, desde o lugar invisível em que se encontra.

A rigor, o biógrafo não deveria enfrentar o dilema de um retrato em preto e branco ou somente em cores, porque, assim como as fotografias têm em sua gênese um período em preto e branco e em sua história outro em cores, as vidas humanas também têm. Pelo menos aqui no planeta onde o maior desafio é colorir o preto e branco das ações com os tons da experiência que embelezam a alma.

E o leitor? Bem, este aprenderá em algum momento que o ser no mundo é o espírito em busca da sua própria superação.

[1] Monteiro, E.C. & Garcia, W. Cairbar Schutel, o Bandeirante do Espiritismo, Ed. O Clarim, Matão, SP, 1986.

[2] Garcia, W. Vinícius, educador de almas, Ed. EME, Capivari, SP, 1995.

Publicado originalmente em: https://blogabpe.org/2016/06/03/chico-xavier-e-o-desafio-do-discurso-biografico/