Por diferentes vias e de diversas maneiras, chegaram-me às mãos ao longo dos últimos 50 anos uma quantidade considerável de livros, revistas e documentos importantes para a história do espiritismo, livros em boa parte esgotados e alguns até mesmo ignorados do público, bem como as referidas revistas. Dei início à publicação das respectivas resenhas com o trabalho sobre a Revista Metapsíquica, como forma de desincumbir-me deste que considero um compromisso público, uma vez que formo entre aqueles que entendem que nada que seja de interesse público pode ficar retido sob a rubrica de patrimônio particular; que tudo deve ser disponibilizado, aberta e livremente, ao conhecimento da sociedade, pois que, no fim das contas, a ela de fato pertence. Na sequência, dei conhecimento de outra revista – Verdade e Luz – e, após, iniciei a publicação em separado de resenhas mais extensas de alguns livros cuja importância pedia um destaque especial. Agora, aqui, faço a conclusão do trabalho, publicando sobre aqueles documentos que, de maior ou menor interesse, guardam todos eles a oportunidade de esclarecer, informar ou enriquecer este ou aquele estudioso e pesquisador. Todos estes livros estarão à disposição dos interessados, uma vez que ficarão sob a guarda da Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires, que, certamente, os disponibilizará ao público. A coleção inteira, contudo, dos textos publicados, poderá ser encontrada aqui, neste blog, na página DOCUMENTOS e suas consequentes subpáginas: Revista Ilustração Espírita, Revista Metapsíquica, Revista Verdade e Luz, Opúsculos raros e Livros raros
O espiritismo, sua natureza, seus perigos – Alexander Jenniard Du Dot, o autor, era em sua época uma espécie de Padre Quevedo dos católicos, ou seja, trabalhou muito para “compreender” os fatos espíritas à luz do catolicismo e de uma visão da ciência um tanto estrábica. Ele afirma sem medo que à frente da ciência de seu tempo (nasceu em 1840 e este livro data do final daquele século) “nós pomos o catecismo”. Além deste livro, escreveu outros sobre fatos espíritas e conhecimentos correlatos, como hipnotismo, por exemplo, sempre no intuito de, por vias lógicas (suas) e racionais, concluir pela negativa dos fatos e por explicações bem próprias. Sua previsão sobre o futuro do espiritismo, apresentada logo na introdução deste livro, parece ter-se confirmado. Escreve ele: “Fala-se há muito tempo do espiritismo; ainda hoje se fala dele e no futuro talvez falem mais dele do que hoje”. Du dot era muito apreciado e considerado pela Igreja como uma inteligência valiosa e um autor que sabia escrever com leveza e humor.
Mas como até entre os adversários do espiritismo se pode aproveitar algumas coisas, a história a seguir que o autor revela e classifica como prova da ação do diabo sobre os bispos católicos, pode ser apreciada sob outro ângulo e talvez seu título mais coerente seja: “Quando os espíritos puseram os bispos para correr”. Vamos a ela.
“Cinco bispos de uma província reuniram-se em 1849, para tratarem de diferentes pontos de doutrina e de direito eclesiástico. No decorrer deste sínodo, como as mesas giratórias estavam em moda, e como as práticas espíritas, implicitamente proibidas pela Igreja, eram geralmente toleradas, os prelados quiseram experimentar por si próprios estas pretensas novidades. Colocaram-se em roda de uma mesa e obtiveram movimentos de rotação, e depois respostas por meio do pé da mesa. Suspeitando que eram demônios os espíritos que faziam mover a mesa, lembraram-se um dia de colocar em cima um rosário e um breviário; a mesa arrojou-os para longe com furor; depois, encarniçando-se muito especialmente contra o bispo da diocese, que era talvez o promotor dessas experiências, tomou a seu cargo expulsá-lo da sala, perseguindo-o até a porta, apesar da resistência que ele opunha. Sem dúvida, os cinco prelados não exigiam tantas provas. Apressaram-se a proibir, nas suas respectivas dioceses, o exercício da mesa girante, prática perigosa cujo caráter infernal lhes fora revelado por fatos tão brutais”.
Du Dot aponta que há somente três tipos de espíritos: os anjos decaídos – demônios – os espíritos dos mortos e os espíritos dos vivos. Apesar de beber e citar autores como Croockes, Gibier, Zollner, além de médiuns, como Holmes, a conclusão a que chega é diversa desses pesquisadores, ou seja, os espíritos que se manifestam são dos demônios, daí o grande perigo que o espiritismo para apresenta. Ele se mostra de fato conhecedor da bibliografia de então, ao mesmo tempo em que é incapaz de entender os fatos fora de sua cultura fortemente marcada pelo catolicismo.
Livro publicado em Portugal, tradução de Gomes dos Santos, Livraria Povoense – Editora, Póvoa de Varzim. S/d.
Aqui e além – Escrito por Constantino José Nogueira, tem o prefácio de Cairbar Schutel, que viu no livro uma mensagem muito positiva. Diz ele: “Eis aqui um livrinho de utilidade nos difíceis tempos que atravessamos”. A Casa Editora O Clarim o publicou em 1929. O autor passa uma mensagem de otimismo e esperança e entrelaça os temas com histórias reais, vividas por ele, com o objetivo de exaltar o esforço do trabalho como meio de levar as criaturas a vencer seus obstáculos, sempre considerando que há um mundo invisível que, quer queiramos quer não, caminha lado a lado e pode proporcionar um apoio indiscutível para todos os seres humanos.
Doutrina e crítica – Livro publicado em 1943 no Rio de Janeiro, foi impresso nas oficinas gráficas de Federação Espírita Brasileira, mas não leva o selo da FEB. Amadeu Santos, que o assina, funciona como coautor e coordenador da edição, que tem mais nove coautores: Astolfo Olegário de Oliveira, Carlos Imbassahy, Frederico Figner, João Augusto Ferreira, João Teixeira de Paulo, José Passos, Leopoldo Machado, Osvaldo Melo e Sousa Prado. Traz na página de rosto a seguinte explicação: “Livro de crítica e doutrina, em resposta a um contumaz adversário do espiritismo”. Amadeu Santos, industrial na cidade mineira de Astolfo Dutra, foi o idealizador do livro e o contumaz adversário do espiritismo a que se refere é um professor mineiro, de nome José, que assinava “Invicto”, com o qual polemizou durante cerca de dois anos. Mais tarde, por essas ironias do destino, Amadeu veio a saber que o referido professor José Invicto nada mais era do que um antigo desafeto dos tempos escolares. Todos os coautores, de uma forma ou outra acabaram por participar das polêmicas, boa parte delas pelo Jornal do Povo, da cidade mineira de Ponte Nova, mas também envolvendo outras publicações, inclusive espíritas e ao longo do tempo fazendo aparecer outros personagens. Como o livro teve apenas uma edição e circulação restrita, mas possui um grande peso por conta daqueles que o assinam, torna-se imperioso disponibilizá-lo aos estudiosos e pesquisadores.
Reincarnado – Assim mesmo, escrito com ei e não como nos nossos tempos, ee, o livro publicado pela FEB em 1925 foi traduzido pelo incansável Guillon Ribeiro e seu autor foi um médico de sucesso, também maçom, assinando Dr. Lucien Graux, nascido em Paris. O título vem acompanhado de uma frase explicativa: “romance do além”, escrito a partir de uma experiência real. A edição de 1925 refere-se ao terceiro milheiro, do que se deduz que haviam sido impressos outros dois milheiros antes. Não há mais notícias de que tenha sido reeditado posteriormente. O autor teve uma vida intensa, de grande produção profissional e intelectual e demonstra haver estudado o espiritismo pelos grandes autores de seu tempo. Viveu as duas grandes guerras e acabou desencarnando em 1944, na Alemanha, para onde viajou clandestinamente como membro da Resistência francesa. Trata-se de uma edição de luxo, em belíssima encadernação e capa dura, com letras em relevo branco.
Outra vida?… – Um extraordinário prefácio escrito por Camilo Flamarion abre este livro publicado pela primeira vez em língua portuguesa em 1903 por Laemmert & C. – Editores, do Rio de Janeiro., dentro da coleção “Biblioteca Filosófica”. Seu autor é M. Sage (Michel). Por ser a capa dessa edição em cartão e sem impressão, apresento ao lado a página de rosto, para conferência por quem o desejar. O responsável pela tradução não aparece, como também a língua em que o original foi escrito, porém se sabe que era o francês e que a obra foi publicada em primeira edição em 1902, em Paris, sob a responsabilidade de P.-G. Leymarie, ou seja, no ano seguinte já estava sendo publicada no Brasil. Mas o título original é bem diferente da edição brasileira de 1903. Lá está: “Madame Piper et la Société Anglo-Américaine pour les recherches psychiques”. Há uma outra tradução para o português, de 1944, feita por Octavio Cruz, cujo título é: “MADAME PIPER e a Sociedade Anglo-Americana de Pesquisas Psíquicas (1902)”. Finalmente, os interessados na leitura do livro, agora já com a ortografia mais atualizada, podem acessar aqui. Flamarion no prefácio faz elogios ao trabalho de Michel Sage e aos seus cuidados com o rigor científico do texto.
Don Pancho Sierra – O argentino muito amigo dos espíritas brasileiros, Humberto Mariotti, publicou pela Editorial Victor Hugo, de Buenos Aires, em 1958, este que é um livro-poesia sobre a vida e a mediunidade de um daqueles seres que, segundo o próprio autor, jamais poderiam ser esquecidos, sob pena de negar a eles o lugar merecido entre os que fizeram obra digna, mas negar também à posteridade as luzes por eles distribuídas. Diz Mariotti: “Nos Pampas existe uma voz escondida, ocasionalmente distante para muitos, que precisa ser revelada. Esta voz esconde o sentido de nosso ser argentino, mas seu significado só será captado por aqueles que tenham alcançado a sensibilidade metapsíquica de Sarmiento e o don mediúnica de Pancho Sierra”. Trata-se de um médium curador que viveu nasceu e viveu na Argentina entre 1831 e 1891, também conhecido como “o médico da água fria”, tendo em vista ser este o método preferido por ele para realizar curas. Amália Domingos y Soller, da Espanha com ele se comunicava por correspondência, incentivando-o em suas atividades. Vinha de uma família abastada, mas optou por viver de modo simples e dedicado ao próximo. Foi admiradíssimo e ao mesmo tempo tomado como louco por alguns. Sua condição de espírita foi também posta à prova, pois muitos a negaram e o mantinham como um católico até o fim da vida. Mariotti não apenas o reposiciona como admirador do espiritismo, mas o resgata como médium extraordinário para o mundo.
Fenomenologia mediúnica – Embora esse livro tenha alcançado a terceira edição e esteja disponível em alguns sebos virtuais, é cada dia mais desconhecido e está próximo de completar 80 anos de sua última edição. Foi escrito por Osmani Emboaba, de Ribeirão Preto, São Paulo, e publicado primeiramente em Curitiba, tendo tido duas edições em 1938 e uma terceira em 1940, esta pela FEB no Rio de Janeiro. Trata-se da primeira tese de doutorado que une espiritismo e medicina, apresentada a uma banca examinadora. Esta 3ª edição conta com o prefácio de Carlos Imbassahy e apresenta no frontispício da página de rosto a seguinte descrição: “Tese ao doutorado em medicina apresentada ao Conselho Técnico-administrativo da Faculdade de Medicina do Paraná, em 22-10-1938. Discutida e reprovada em 6-12-1938”. Imbassahy faz uma apreciação crítica e dura contra os examinadores, dissecando o comportamento anticientífico de cada um diante da tese de Emboaba na banca. Diz ele: “[…] à semelhança do dr. Emboaba, surge alguém com um estudo que não é a negação sistemática da autenticidade dos fenômenos metapsíquicos. Ah! Este não pode ser aceito; foge à psiquiatria, em particular e à medicina em geral. Para essa fuga faz-se mister o caso especial da aceitação do mediunismo. Se o autor aceita o mediunismo, os examinadores não lhe aceitam a tese; pura questão de pró ou contra; e quando a aceitam é para reprova-la”
Prossegue o destemido Imbassahy: “[…] o dr. Alô, dizendo-se leigo, proclamando-se leigo, confessando-se leigo, não duvidou em tomar parte da mesa examinadora e reprovar o examinando”. Explicitou, assim, a sua parcialidade. Mas teve também o dr. Aramis Ataíde, diz Imbassahy, “que tomou da palavra e afirmou que os fenômenos expostos por Emboaba tinham um característico frisante: diminuíam à medida em que aumentava o controle dos investigadores”. Sobre outro dos examinadores, amplamente dissecado por Imbassahy em seu argumento estranho, basta lembrar que começou dizendo “que gostava de ciscar como os galos, para as galinhas apanharem”, para, ao final afirmar sua contrariedade com a tese. O último dos arguidores da tese, diz Imbassahy, foi “o dr. Moura Brito. Esse, ao que parece, limitou-se a uma indagação fulminante. Ele queria saber porque os Espíritos só receitavam homeopatia. Esta é de escachar!”.
A tese de Osmani Emboaba é um documento importante para os pesquisadores e todos aqueles que se interessam pela história do espiritismo levado cada dia mais às academias, através de dissertações e teses, muitas contribuindo para derrubar barreiras e outras para tornar conhecidos, de forma racional como requer o meio acadêmico, os princípios em que se assentam a doutrina espírita.
Hipnologia transcendental – livro interessante que aborda o assunto sob diversos vieses, todos em moda no primeiro quarto do século vinte. Esta 2ª edição da obra escrita por João Antunes e publicada em Lisboa, Portugal, em 1924, procura traçar um quadro do hipnotismo e do magnetismo utilizando-se de estudos e experiências disponíveis na literatura de então, dos Estados Unidos à Europa, de autores clássicos como Mesmer e Braid como as experiências de tantos outros, inclusive Victor Hugo etc. Ao final, apresenta a hipótese espírita para a explicação dos fenômenos psíquicos, baseando-se em Kardec e outros pesquisadores, sem deixar de mencionar nomes importantes como William Croockes e Russel Wallace. Estilo leve, proposta aberta, reunião de casos e experiências interessantes é o que marca este pequeno mas interessante livro.
Guia metódico do experimentador espírita – Publicado em 1926, em Paris, e traduzido para o português por Cairbar Schutel, este livro ganhou o selo da editora “O Clarim”, fundada e dirigida por Cairbar, tendo sua 1ª edição sido impressa na cidade de Matão em 1931 e a 2ª apenas em 1959. O prefácio é do próprio tradutor e traz a explicação de que há muito se observa a necessidade de um guia seguro para as sessões mediúnicas. Logo no primeiro parágrafo do seu prefácio, Cairbar adverte: “Tem-se notado no nosso país que o número de grupos e associações espíritas é muito grande, mas seu trabalho é muito deficiente, não correspondendo absolutamente aos esforços empregados. A grande maioria desses núcleos, como ninguém poderá contestar, faz obra contraproducente”. O livro está dividido em duas partes, sendo a primeira utilizada para expor “noções gerais” sobre a doutrina, o desenvolvimento mediúnico etc. Na segunda parte, a mais extensa, o autor fala das sessões práticas, entre as quais as de efeitos físicos e a que denomina sessão psicológica dentre outras. Embora defasado no tempo, o livro oferece uma boa experiência para quem analisa a evolução histórica do pensamento espírita.
O evangelho por fora – este é o título de um dos livros escritos por Canuto de Abreu. O que poucos sabem é que, antes de se tornar livro, o título designava um capítulo do curso Aprendizes do Evangelho que a Federação Espírita do Estado de São Paulo instalou no ano de 1950, sob a coordenação geral do Comandante Edgard Armond. O primeiro indivíduo a apresentar as aulas com o tema “O evangelho por fora” foi, exatamente, Canuto de Abreu, que posteriormente enfeixou-as em livro. Posteriormente, com a saída da Canuto de Abreu do curso, assumiu o seu lugar uma outra figura não menos pesquisadora do tema. Trata-se do poliglota Julio Abreu Filho, o primeiro tradutor para o português da Revista Espírita editada e dirigida por Allan Kardec, obra essa lançada na década de 1970 pela Edicel, editora fundada e dirigida por Frederico Giannini. Pois bem, quando Julio Abreu Filho assumiu a cátedra do curso, preparou, também, o seu texto para 10 aulas, texto esse que foi transformado em livro de mesmo nome, correspondente ao Tomo I do Curso de Aprendizes do Evangelho, publicado pela Editora LAKE, de São Paulo, em 1968. O trabalho de Julio é bastante criterioso, embora esteja na atualidade muito esquecido.
Poeira da estrada – O poliglota Julio Abreu Filho foi muito atuante no espiritismo brasileiro à sua época e um dos vários livros que escreveu é este, lançado pela Editora Édipo, de São Paulo. A edição única é de 1949. De que trata o livro é o que vamos esclarecer agora. Julio Abreu Filho foi um dos integrantes do grupo de espíritas que ajudaram a fundar a USE-SP e no congresso de fundação de 1947 foi eleito membro do seu conselho deliberativo, ao mesmo tempo em que integrava os quadros da Federação Espírita de São Paulo. Vários conflitos o levaram a abandonar a USE e a Federação ao mesmo tempo. Destaque-se o congresso de unificação de 1949, realizado em São Paulo sob protestos e ações subterrâneas da FEB, especialmente urdidas por seu então presidente Wantuil de Freitas. Julio não só viu as duas teses que apresentou desrespeitadas por pessoas que não desejavam desagradar a FEB, mas viu também que a infiltração do roustainguismo, já se insinuando na Federação, se deu também no congresso. De outra forma, Julio se batia contra a FEB tendo em vista que esta, então, dava mais atenção à edição de livros em Esperanto do que às obras espíritas em português. Julio via aí duas coisas: o Esperanto era uma língua sem raízes, que alguns dirigentes espíritas teimavam em afirmar que era dever dos espíritas divulgá-la; mas era também, segundo Julio, uma forma da FEB incutir nos espíritas as ideias roustainguistas. O livro de Julio, portanto, trabalha em cima desses temas e contém, ainda, documentos que dizem respeito a eles, como cartas trocadas com Wantuil de Freitas e artigos em forma de réplica a respeito das razões e fundamentos pelos quais considera o Esperanto uma língua incapaz de atender ao propósito de uma língua universal. Como curiosidade, vale esclarecer que Herculano Pires, na companhia de Jorge Rizzini, foi visitar um dia o seu amigo Julio Abreu Filho no hospital em que estava internado, ocasião em que sugeriu que o livro Erros doutrinários, do Julio, merecia nova edição, solicitou a este permissão para acrescentar-lhe uma outra parte, no que foi prontamente atendido por Julio. Pouco tempo depois, Julio veio a desencarnar e Herculano, de parceria com ele, lançou o livro O verbo e a carne. Aqui, em Poeira da estrada, o tema Roustaing aparece de maneira forte e no Erros doutrinários surge como tema central.
Discurso – Este livro, publicado em 1937 em Salvador pelo Instituto Kardecista da Bahia contém o discurso pronunciado pelo Cel. Ricardo Machado, um dos fundadores dessa instituição, discurso esse feito por ocasião da inauguração da sede e do Albergue Noturno daquele instituto. O autor era então presidente honorário do instituto e foi alvo de homenagem de seus pares. Seu discurso reflete o conhecimento que o Cel. Ricardo Machado tinha da doutrina e do movimento espírita brasileiro de modo geral, uma vez que mantinha relacionamento com as principais expressões do pensamento espírita do país. O discurso não se limita às ações protocolares, mas envereda pela história do espiritismo na Bahia e no país, pelos princípios básicos do espiritismo, com citações dos autores mais destacados à época nos níveis nacional e internacional.
Máscaras abaixo! – O mesmo autor do discurso acima, Ricardo Machado, publicou em 1930, também na Bahia, este que é uma extensão do seu livro anterior, intitulado Pontos de vista à luz dos evangelhos e da ciência espírita, cuja edição data de 4 anos antes. Ou seja, 1926. Em ambos os livros o assunto central é a questão roustainguista do corpo fluídico atribuído a Jesus pelos espíritas místicos. O livro de 1926 teve enorme repercussão e foi resultado da publicação de 26 artigos que Ricardo Machado publicou pelas páginas do jornal baiano O Imparcial, nos quais contestava a tese roustainguista. Em Máscaras abaixo! Ricardo Machado reúne cartas e manifestações pela imprensa sobre o seu livro de 1926, mas faz também uma série de réplicas a roustainguistas como Sousa Prado e Manoel Quintão, este último ex-presidente da FEB e que então havia publicado um livro destina à propaganda e defesa tese do advogado de Bordeus. Há, ainda, um material destinado a esclarecer um pouco os conflitos surgidos entre Ricardo Machado e José Petitinga, ex-presidente da União Espírita da Bahia e também defensor de Roustaing, material este que se torna histórico por envolver fatos ligados à existência, funcionamento e sobrevivência daquela federativa.
A bem da verdade – volumoso livro de autoria de Henrique Andrade, publicado em 1946 às expensas do autor. Lê-se na sua página de rosto: “Estudo crítico-analítico da obra “Os quatro evangelhos” ou “Revelação da Revelação”, de J. B. Roustaing em face da “Terceira Revelação” codificada por Allan Kardec”. O prefácio é do General Araripe de Faria. Trata-se, por certo, do mais amplo em termos dimensionais físicos, mas também temático, estudo feito sobre a obra que ainda ao tempo de Kardec surgira e, sem sombra de dúvida, viera como uma espécie de Cavalo de Troia para confundir o espiritismo nascente. A obra demandou nada menos do que 120 artigos publicados sequencialmente no jornal Mundo Espírita, dirigido e mantido pelo próprio autor, publicado então no Rio de Janeiro. Este jornal, depois, foi transferido à Federação Espírita do Paraná, que o publica até os dias atuais. A história desse livro está toda descrita logo na sua apresentação. Leopoldo Machado criara um programa espírita de rádio, denominado Hora Espírita Radiofônica e não podendo contar com a participação direta de Henrique Andrade, convenceu-o a fazer parte da administração que se reunia mensalmente para analisar e planejar o programa. Após três anos e com o afastamento de Leopoldo Machado, assumiu a presidência o conhecido espírita Ismael Gomes Braga, no momento mesmo em que a FEB retomava a divulgação da obra de Roustaing e fazia grande propaganda dela. Ismael subverteu, segundo Henrique Andrade, os princípios básicos do programa, de não alimentar conflitos e dissidências, e passou a utilizar as ondas sonoras da emissora para falar das maravilhas da obra roustainguista. Henrique Andrade, então, publicou artigo no seu jornal contestando a obra e a atitude de Ismael, recebendo, em troca, a crítica de Fred Figner pelas colunas da Vanguarda. E em uma dessas publicações, Fred Figner insinuou que Henrique Andrade falava sem conhecimento de causa, por não haver lido a obra Os quatro evangelhos de Roustaing, levando-o a debruçar-se no reestudo dela e a escrever e publicar durante os 120 números seguintes do jornal Mundo Espírita ponto por ponto tudo aquilo que de mais importante a obra continha, comparativamente com o que escrevera e publicara Allan Kardec. Com isso, apresenta aquilo que de mais substancioso existe em relação ao tema, pelas minúcias e pela quantidade de aspectos abordados. Todos os que vieram posteriormente a tratar do assunto, de uma forma ou de outra se beneficiaram com o esforço compensador de Henrique Andrade. O livro de mais de 400 páginas termina com a transcrição de uma mensagem mediúnica assinada por Roustaing e recebida pelo médium Carlos Gomes dos Santos, na qual conta de sua desastrada empreitada ao idealizar a obra e solicita que não seja mais levada a sério. Obra esgotada, sem reedição.
Kardec ou Roustaing – Livro editado no Rio de Janeiro em 1936 e escrito pelo médico Luiz Autuori, que assumiu uma tarefa inglória de conciliar as duas teses opostas a respeito do corpo de Jesus, se fluídico, como deseja Roustaing ou se carnal, como defende Kardec. Ele mesmo, na apresentação, revela a impossibilidade de sua missão auto-assumida, ao dizer: “O que aí vai dilatado, repisado, monótono talvez, não é o clarão que espancará as trevas, nem a balança emperrada, que não chega a determinar o valor o valor exato…”. O autor desenvolve o raciocínio de que tanto Kardec quanto Roustaing defende teses corretas, o primeiro afirmando que Jesus só pode ser de fato compreendido se visto como homem, humano, revestido do mesmo corpo dos demais seres a ele semelhantes; quanto a Roustaing, também está certo ao admitir que o mais correto e justo para a personalidade pura do espírito que se apresentou como Jesus é vê-lo em um corpo especial, inerente à sua grandeza espiritual. E todo o livro vai caminhar, em bom estilo, diga-se de passagem, nessa direção conciliadora, deixando a cada um a liberdade de escolha sem que, com isso, esteja navegando em águas turvas se aceita uma das duas opções. Tanto assim que deixa para o final do livro um capítulo em que vai discutir a ideia de que Jesus seria um mistificador, como quer Kardec, se se apresentasse em corpo fluídico, corpo este incapaz de absorver os impactos da matéria densa do planeta. Ou seja, seria mistificador porque representar todas as mazelas da dor, do sofrimento, das necessidades físicas de um corpo de carne, sendo que o corpo fluídico estaria infenso a tudo isso. Luiz Autuori quer desfazer essa conclusão lógica de Kardec e de quantos assim também pensão e opinam. A questão deixada em suspense pelo autor, porém, da qual procura se afastar sem o conseguir é que ao ver em Roustaing e suas diversas teses consideradas anti-doutrinárias uma obra passível de ser aceita sem contestações, sem prejuízos à verdade, tanto quanto a de Kardec, é que passa à margem de questões tão contrárias ao bom-senso e à lógica, como também e principalmente aos princípios espíritas, questões estas que não se resumem ao corpo fluídico, apenas. Com isso, Luiz Autuori acaba se entregando à crença proposta pela doutrina roustainguista, pois a tem na conta de verdadeira. São quase trezentas páginas de um livro bem escrito do ponto de vista da lisura gramatical, mas com estilo repetitivo e, por isso, monótono às vezes. Aliás, ele havia previsto isso logo no início.
Cumprindo-se profecias. Materializações de espíritos em São Paulo – Com um longo e minucioso prefácio de Julio Abreu Filho, esse livro de autoria de Mario Ferreira publicado em 1955 em São Paulo faz um relato documentado das então conhecidas sessões de efeitos físicos realizadas no não menos conhecido Grupo Espírita Padre Zabeu, localizado na capital paulista, bem como em diversos outros centros. Pode ser lido em arquivo PDF aqui. Tem por base as atas das sessões, as quais apresentam sempre uma relação de indivíduos que presenciaram os fenômenos e reproduz algumas poucas fotos do médium e de espíritos materializados. O autor, Mario Ferreira, era responsável pelas atas quando as sessões ocorriam nas dependências do Grupo Padre Zabeu. Pode-se observar a presença nas sessões de personalidades de destaque no espiritismo de São Paulo, tais como Luisa Pessanha Camargo Branco, Cid Franco, Francisco Carlos de Castro Neves, Caetano Mero e outros. Como curiosidade, registro a sessão de 9 de agosto de 1951 realizada nas dependências da União Federativa Espírita Paulista, que contou com a presença especial do médium Pietro Ubaldi. Este foi personagem ali de um fato inesperado, assim narrado: “[…] o Padre Zabeu disse que iria proporcionar a materialização do Espírito X. (Homem do Século Dois). A seguir, acendeu-se a luz vermelha e a direita, junto à mesa, surgiu a mencionada entidade com a sua vestimenta toda branca cobrindo-a completamente, conforme o uso da época em que teria vivido em nosso planeta. A tênua claridade da luz vermelha foi suficiente para distinguirmos os seus brancos cabelos e barbas longas que se confundiam com a cor do seu traje. O Espírito X, controlando o comutador da luz elétrica, tornou-se visível, em forma tangível, durante curtos intervalos de tempo e repetidas vezes, acendendo e apagando a luz. Numa das vezes, demorando-se visível, aproximou-se do professor Pietro Ubaldi, estendendo-lhe as mãos. O professor, preso pelas duas mãos, levantou-se indo ao seu encontro e o Espírito X, mantendo contato, fez com que ele tocasse no seu braço, sem contudo fazer uso da palavra.. Despedindo-se e fazendo uma mesura, o “Homem do Século Dois” afastou-se, lentamente, e desapareceu ao apagar das luzes”. Pietro Ubaldi, após o encerramento da sessão, deu seu testemunho do qual extraio este trcho: “As minhas impressões são verdadeiramente maravilhosas; nunca assistira um trabalho mediúnico desse gênero. […] Porém, o que mais me maravilhou foi o fato de que, estando em plena luz vermelha, na qual se podia ver nitidamente tudo, pude, com a máxima clareza, ver a materialização que apareceu no recinto, a qual creio que todos viram com a mesma nitidez”.
Trabalhos post-mortem do Padre Zabeu (1946) – Este livro foi reeditado em 1974, em Araras, SP, pelo Instituto de Difusão Espírita, ocasião em que ao seu título original foi acrescida a expressão Cirurgias espirituais, expressão que passou a título principal, ficando o primeiro como subtítulo. Ambas as edições estão hoje fora de catálogo. A edição de 1974 está disponível em PDF aqui. Este novo título, contudo, não espelha o que de fato o livro relata, pois seu conteúdo contém inúmeros fenômenos de efeitos físicos diversos, sendo que as operações espirituais constituem apenas uma de suas partes. Seu autor, Urbano Pereira, professor de física e, a princípio, não adepto do espiritismo, declara que “as experiências supranormais narradas neste livro tiveram início entre um grupo espírita kardecista na cidade de Pindamonhangaba, Estado de São Paulo”. Dotado de inúmeras fotografias, o livro relata atividades deste espírito que ficou famoso por suas sessões de materialização – Padre Zabeu – e é hoje, inclusive, nome de algumas associações espíritas de várias cidades. Um dos pontos altos do livro é, sem dúvida, a primeira operação relatada, que, em síntese, foi acompanhada por alguns médicos ciosos do controle dos fatos, o que dá à narrativa um peso bastante grande, mas tinha por objetivo também demonstrar a um dos médicos que há muito mais além da matéria que os sentidos físicos permitem perceber. O espírito cirurgião, dr. Luiz Gomes do Amaral, falecido cerca de 20 anos antes, desejava dar provas ao seu filho, médico em São Paulo, dr. Edson do Amaral, de sua realidade e este, de fato, acompanhou a todos os procedimentos, tendo, ao final dado o seu parecer por escrito. Livro indispensável àqueles que estudam os fenômenos mediúnicos.
Marcas e impressões supranormais de mãos de fogo (1938) – Um pequeno livro em tamanho, mas com o registro de fenômenos, típico do reconhecido pesquisador italiano, Ernesto Bozzano, na tradução de Francisco Klörs Werneck que, ao final, acresce o conteúdo com um apêndice onde inclui mais um caso aos três narrados por Bozzano, em que um “fedor cadavérico se desprendia do espectro”, este retirado por Werneck de um opúsculo intitulado O médium Mirabelli mistifica?, de autoria de Miguel Karl e publicado em 1929. O fenômeno de mãos de fogo é aquele em que em tais circunstâncias as mãos ficam gravadas em tecidos, desafiando, assim, os pesquisadores.
Prodígios da Biopsychica obtidos com o Medium Mirabelli (1937) – Autor: Eurico Goes. Este é um dos muitos livros que sobre a mediunidade e os fenômenos produzidos pelo médium Mirabelli foram escritos e publicados no Brasil e no Exterior. E talvez aquele que jamais pode ser deixado deixado de lado quando se trata de pesquisar esse médium que a seu tempo proporcionou fenômenos de tal ordem que foi perseguido, preso, escrachado, desrespeitado, mas, jamais, no dizer do autor deste livro, pego em traquinagens. Eurico de Goes ostenta um currículo invejável, tendo sido membro do Instituto Histórico Brasileiro, professor da Faculdade de Filosofia e Letras do Rio de Janeiro, fundador e diretor da Biblioteca Pública Municipal de São Paulo, além de outras notáveis atividades e tendo creditado à sua autoria cerca de 15 outros livros. Este, sobre Mirabelli, possui quase 500 páginas, vem enriquecido com dezenas de fotografias de fenômenos por ele e outros registrados e foi, segundo Goes, o resultado de cerca de 20 anos de convivência e acompanhamento do médium em sua trajetória em São Paulo e outros Estados brasileiros. Abre o livro a famosa foto do médium em levitação na sede do Instituto Psíquico Brasileiro, em São Paulo. Goes relata que o médium chamou sua atenção pela primeira vez quando ele, autor, estava em São José dos Campos, cidade localizada cerca de 90 quilômetros da capital paulista, acompanhando sua esposa em tratamento de saúde, e leu pelas colunas dos jornais diários de São Paulo acerca das peripécias atribuídas a Mirabelli. Tempos depois, já com a esposa desencarnada, Goes e Mirabelli se encontraram casualmente num hotel da capital paulista, onde ambos estavam hospedados. Desse encontro surgiu uma relação que se estreitou com o tempo, levando o autor a estudar os fenômenos tanto quanto a vida do médium, razão que justifica a explicação colocada na página de rosto do livro: “Experiências com o famoso metérgico e documentado estudo de psiquismo fenomenal”. Já em dezembro de 1917, 20 anos antes, portanto da publicação do livro, Eurico Goes foi entrevistado pelo jornal Diário de Santos, onde forneceu as “primeiras observações com o médium Mirabelli”, conforme titula o capítulo II deste livro e onde afirma: “a minha impressão é de que ele é um verdadeiro médium, do gênero desses que têm sido celebrizados nas experiências e nos trabalhos de William Croockes, Lombroso, Aksakof, Flammarion, Paul Gibier (discípulo de Pasteur, comissionado para estudar a febre amarela em Havana) e tantos outros”. Com a convivência longa, Goes reúne material e coragem para formar com extrema franqueza um perfil de Mirabelli que revela as suas virtudes e as suas fraquezas de criatura humana, o que não é comum, convenhamos, nas biografias escritas por admiradores próximos do biografado. Aí aparece a multiplicidade de dons que o médium possuía, dons que vão além das circunstâncias mediúnicas e que, no terreno desta mediunidade, também revela outros tipos que não são quase referenciados; dizendo objetivamente: são desconhecidos, pois o que sempre se divulgou desse médium foram os fenômenos de efeitos físicos. Por isso, ao final pode o autor afirmar categoricamente: “…dentro e fora do país, jamais encontrei um médium de eficiência e de pluri-fenomenologia de Mirabelli […] nem mesmo Florence Cook, Eusapia Paladino, Mistress d’Esperance, o extraordinário Home, Ofelia Corrales e quaisquer outros, de mundial fama, superaram ou igualaram sequer Mirabelli!”. Perguntar-se-á em tom de desconfiança o leitor atento se essa opinião de Goes não está contaminada pelo longo convívio e pela admiração de conteúdo emocional-afetivo que teve com o médium, devendo ser colocada, portanto, em quarentena. Faz sentido. Mas o que Goes viu em termos fenomenológicos e variados nesse tempo todo, seja quantitativamente ou qualitativamente colocaria qualquer um em situação semelhante, independentemente de seus controle racional sobre os fatos e as circunstâncias em que se davam. Veja-se, como exemplo, o relato seguinte de uma sessão realizada no bairro paulistano do Brooklin, em residência de um representante de um banco alemão: “o fato mais interessante é que enquanto o braço direito do médium escrevia, em dez minutos, a mensagem num elevado francês clássico, com uma lógica e uma ironia inexcedíveis – a voz de Mirabelli se dirigia aos ouvintes, num requintado italiano de salão, fazendo comentários a respeito de passagens relacionadas com o médium, com a carta e com o que se havia passado e se iria passar na Europa, em relação à reputação do médium, ou à veracidade dos fenômenos que lhe eram atribuídos num folheto impresso e divulgado! Duas coisas diversas, realizadas ao mesmo tempo, por intermédioo da personalidade do médium”. Duas observações finais: o autor faz um longo relato, com base nas publicações estrangeiras da época, das notícias, análises e atividades do médium Mirabelli realizadas no Exterior, abrangendo vários países e inúmeros estudiosos e pesquisadores. Por fim, fecha o livro com uma relação bibliográfica de quese 500 obras por ele estudadas ao longo do tempo, as quais subsidiaram a escritura do livro e as suas próprias experiências com o médium e demais autores.
Phenomenos Psychicos (1927) – Alberto Seabra. Em segunda edição, este livro foi publicado pela Editora O Pensamento, de São Paulo. O homem múltiplo, título que Rizzini aplicou com justiça a Herculano Pires, também pode e deve ser reconhecido e esse médico, que ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro aos 15 anos e aos 22 já havia se formado com inigualável destaque. Dedicou-se à medicina, à psiquiatria, foi dos primeiros no Brasil a estudar Freud, tornou-se baluarte da Homeopatia, formou-se em Sociologia, fez Poesia e não satisfeito com o saber acumulado, embrenhou-se pelos fenômenos psíquicos. Justifica-se, assim estas suas palavras escritas no livro em referência: “Fora do campo da experiência nada existe, nada além dos nossos sentidos. Mas o mundo da visão material está além dos sentidos e das experiências dos cegos, como o invisível da metafísica e do metapsiquismo está além dos órgãos materiais dos nossos sentidos”. O livro não entra diretamente nos ensinos da Kardec, mas faz uma incursão bem ampla pela matapsíquica que Richet, admirador de Kardec, dera início e tinha grande projeção, então. O lhar de Seabra é o olhar da racionalidade científica, por isso os fenômenos extra-sensoriais se mostram aqui substanciais ao seu interesse. Assim, trabalha tanto com reflexões e argumentos contra o materialismo do meio científico, no que se utiliza de estudos atualizados à sua época, quanto com o que há de mais destacado em metpsiquismo e fenômenos espíritas, interessando-se pelas experiências de Crookes, na Inglaterra, Lombroso, na Itália, Richet, na França e outros mais. Além disso, oferece um material bastante diversificado de casos de desdobramento, sonhos proféticos, bi locação, telepatia, materializações, levitação, casas assombradas e outros.
O Protestantismo e o Espiritismo à luz do Evangelho (1928) – Romeu do Amaral Camargo, o autor, foi por muitos anos destacado pastor da Igreja Presbiteriana, considerado uma das autoridades no conhecimento bíblico. Após tornar-se espírita, utilizou todo aquele conhecimento para defender os princípios básicos da doutrina de Kardec, ficando famosos os seus debates pela imprensa e pela tribuna nesse campo de disputa. Este livro é uma das maiores provas desse tempo em que o tema espiritismo X catolicismo X protestantismo ocupava a imprensa, e não somente a espírita, porque o interesse em participar ou acompanhar essas pelejas estava entranhado na sociedade, senão em toda ela, pelo menos nos segmentos intelectuais, religiosos, médicos, etc., tanto que os jornais da chamada grande imprensa, entre eles o Diário da Noite e O Estado de S. Paulo tiveram suas colunas ocupadas pela matéria, o que permitia que outras regiões do país e outros órgãos de imprensa dessas regiões também o fizessem. O livro de Amaral Camargo tornou-se uma espécie de referência no assunto porque, talvez, nenhum outro como esse descesse a tantas minúcias do texto bíblico e a tantos argumentos e reflexões comparativos à obra de Allan Kardec. O investimento em sua publicação foi considerável; o livro saiu em duas versões, uma em brochura, portanto mais barata, e outra em edição de luxo, com capa dura, tudo, segundo o autor, subsidiado por alguns espíritas e centros espíritas. Quando veio a público em 1928, um dos seus principais oponentes e que havia dado origem à polêmica, o acadêmico Carlos de Laet, havia falecido. O outro, Reverendo Othoniel Motta, permanecia vivo. Esta situação preocupou a Amaral Camargo, que fez questão de iniciar o livro com uma nota explicativa de que quando o contrato para publicação do livro foi assinado Carlos de Laet estava também e ainda vivo. A explicação tinha lá suas razões, pois os cuidados de Amaral Camargo era para que não o acusassem injustamente de estar “atacando” um morto ou deque tenha aguardado o seu falecimento para o fazer, o que seria, segundo algumas opiniões, de má ética. A explicação de como tudo começou é dada pelo próprio Amaral Camargo. Vejamos.
“A 22 de abril do ano passado (1926), pelas colunas do “Diário da Noite”, desta Capital [São Paulo] surgiu o vulto gigantesco de Carlos de Laet, ilustre católico romano, membro da Academia Brasileira de Letras, o qual, de lança em riste, em agudo toque de reunir, concitou os pastores protestantes e os rabinos judeus a auxiliar o clero católico no bradar contra o espiritismo ou “superstição perigosa” segundo sua própria expressão. Pelas colunas do “Estandarte”, órgão presbiteriano, apareceu, pouco antes, firmado pela pena do não menos ilustrado e filólogo, Othoniel Motta, pastor presbiteriano, um artigo crítico, porejante de humorismo, visando uma obra que lhe demos para ler, mas que o ilustre crítico teve receios de ler, talvez porque o respectivo autor não possuía permissão para entrar no campo da verdade. – Entendeu o reverendo Othoniel Motta que a tal obra (Religião em litígio) calhava bem a qualificação de “fortaleza de papelão do espiritismo” (mas fortaleza cujos disparos abalaram os alicerces espirituais de alguns membros de sua igreja, conforme o confessou de público, em o mencionado artigo crítico)”. Esclareça-se que o livro de Camargo Amaral não contém ou não é apenas a reunião dos artigos por ele publicados na imprensa, porque decidiu o autor acrescentar outras longas e oportunas reflexões a título de complementar o seu pensamento sobre todo o assunto, amarrando-o de forma mais segura.
Simpósium neo-espiritualista (1972) – Lisboa, Portugal. Este livro apresenta de forma resumida os temas desenvolvidos no simpósio realizado na capital portuguesa, sob a promoção da Revista Fraternidade, que reuniu representantes de quatro correntes espiritualistas, entre elas o espiritismo. Pelo Brasil, compareceram e ocuparam a tribuna o jornalista e médium Jorge Rizzini e o orador e médium Divaldo Pereira Franco. Coube a Rizzini atender às expectativas dos participantes apresentando o seu famoso filme em Super-8 feito com as operações mediúnicas realizadas por José de Freitas Arigó, que havia desencanardo cerca de um ano antes. As impressionantes imagens despertaram grande interesse e acabaram por conduzir Rizzini a outras apresentações na Europa. Divaldo Franco, já então conhecido além-mar, pronunciou uma conferência sobre a doutrina espírita, a qual vem transcrita no livro logo após um depoimento de Jorge Rizzini sobre a ciência e os fatos espíritas. O livro traz ainda as conclusões do congresso resultantes de um consenso entre os representantes dos seguimentos espiritualistas presentes.
Congresso Espírita Internacional realizado em Londres entre 7 e 12 de setembro de 1928 – Versão em português publicada em 1930 pela Sociedade Portuense de Investigações Psíquicas, Porto, Portugal. Este congresso sucedeu ao que se realizou três anos antes, em 1925, em Paris, e contou com a presidência de honra de Léon Denis, que lá compareceu instado por Allan Kardec em mensagem mediúnica. A presença de Denis seria o ponto de equilíbrio para as intensas discórdias que então ocorriam entre as inteligências da época. Faleceu ele no ano seguinte, aos 81 anos de idade. Londres foi escolhida para o congresso seguinte e este, então teve a presidência de honra de Sir Arthur Conan Doyle, amigo e admirador de Denis, que fez em seu discurso de abertura um veemente pedido para que a fraternidade, a união e a paz pudessem ser exercidas por todos em prol do mesmo ideal espiritual. Com a Inglaterra contando com a maioria de membros presentes contrários ao princípio da reencarnação, como já era amplamente conhecido de muito tempo antes, as conclusões do congresso ficaram bastante frouxas, sem espelhar nem de perto a dimensão do conhecimento e das bases espíritas. Eis o que foi aprovado como resoluções: “O Espiritismo é uma filosofia baseada em dados científicos precisos e cujos princípios fundamentais são assim enunciados: 1º – Existência de Deus, inteligência e causa suprema de todas as coisas; 2º – Existência da alma, ligada durante a vida terrestre do corpo físico perecível, por um elemento intermediário chamado perispírito ou corpo fluídico; 3º – Imortalidade da alma; sua evolução contínua para a perfeição por progressivos estágios de vida; sua reencarnação sucessiva nos planos de vida correspondentes ao seu estado de progresso; 4º – Responsabilidade individual e coletiva entre todos os seres segundo a lei da causalidade”. Como se vê a tese da reencarnação, conforme defendida pelo espiritismo, ficou envolvida por uma nuvem de simbolismo, permitindo margens outras de interpretação. No entanto, quatro das teses colocadas no congresso foram objeto de publicação no livro em foco, como sejam: duas de mesmo título, “A reencarnação”, a primeira assinada por J. Emile Marcaut; a segunda de autoria de M. Chevreil. Ainda sobre o tema tivemos a tese de M. André Ripert, intitulada “Sobrevivência, reencarnação”, e a de Henri Regnault “Espiritismo, reencarnação e paz social. Outras inúmeras teses de cunho científico foram também apresentadas e uma delas chama a atenção por descrever fenômenos diversos no Japão. Trata-se da que foi apresentada por T. Fukurei, de título “A experiência de psicografia com médiuns japoneses”, tese essa, curiosamente, que não trata apenas da psicografia, mas também de outros fenômenos, tais como: efeitos físicos, clarividência e placas fotográficas. O secretário geral da Federação Espírita Internacional, fundada cinco anos antes, em Paris, André Rippert, apresentou um relatório ao congresso em que procurava dar informações sobre o espiritismo no mundo, em parte contando com notas recebidas dos representantes das federações nacionais, de outra forma baseando-se em dados colhidos de fontes outras. Vale conferir o que foi dito sobre o Brasil, que não teve, ao que parece, representante oficial no evento, nem trabalhos colocados à apreciação dos congressistas: “A Federação Espírita Brasileira continua a sua obra de elucidação num lugar onde o Espiritismo se opõe necessariamente a práticas e ensinamentos religiosos que ficaram doutra época. O mérito dos propagandistas de nossa doutrina é por isso muito maior e a sua obra mais salutar e mais apreciada”.
Anais do 1º congresso espírita do Estado de São Paulo (1947) – bastante conhecido dos estudiosos e historiadores, este livro tem sido muito citado nos textos que buscam retratar o surgimento do espiritismo no Brasil e, em espacial, em São Paulo. O livro de Eduardo C. Monteiro, USE – 50 anos de unificação faz uma abordagem do nascimento da instituição, com o objetivo de alcançar suas raízes, desde o surgimento da ideia. Entretanto, será crível estender essas raízes até, pelo menos, 1926, quando se deu a primeira tentativa de fundar uma federativa em São Paulo tendo por base uma assembleia de centros espíritas, a qual seria denominada, então, Federação Espírita do Estado de São Paulo, conforme analiso aqui. A ideia interna de uma coletividade assumindo a condução do seu próprio destino teve, no espiritismo brasileiro, nascimento aí, sendo que a USE, fundada 21 anos depois, acabou, por vias indiretas, também surgindo dessa coletividade de dirigentes, marca que ostenta até hoje.
Anais do congresso brasileiro de unificação espírita (1948) – Pouco mais de um ano após o congresso que deu origem à USE-SP, esta instituição tomou a iniciativa de realizar um novo congresso – vê-se, portanto, que a ideia de realizar congressos para estudos e debates sobre questões importantes era latente no meio espírita brasileiro – agora voltado ao tema da unificação. A ideia parecia ser a mesma que deu origem à USE, isto é, a desorganização do espiritismo em nível institucional em todo o país. Os três itens propostos logo no início da descrição do plano do congresso dão uma medida do problema, ao mesmo tempo em que levanta discussões acerca da presença da Federação Espírita Brasileira nesse cenário. Ei-los: 1º – A unificação do espiritismo nos Estados, planos de execução. 2º – A unificação do espiritismo nacional. Sistema a adotar. 3º – Estudo dos problemas de interesse fundamental e urgente para a marcha do movimento espírita nacional. Não se deixa de notar aí um profundo descontentamento – que era antigo e manifestou-se com clareza no evento comemorativo do centenário de nascimento de Allan Kardec, realizado pela FEB no Rio de Janeiro, em 1904 – descontentamento este para com a FEB, seus métodos, suas contradições doutrinárias e, também, sua inoperância junto às federativas estaduais e os centros espíritas do país. Os efeitos disso foi a negativa da FEB em aceitar sua participação e a tentar convencer várias outras federativas a fazerem o mesmo, apesar de sua adesão inicial, conseguindo o seu intento com duas delas: Rio de Janeiro e Mato Grosso, à época ainda constituindo um só Estado. Várias teses foram aceitas pela comissão organizadora, algumas diretamente relacionadas ao objetivo central e outras tangenciando-o, sem, contudo, contrariá-lo, como foi o caso das duas teses apresentadas por Julio Abreu Filho, que acabaram tendo desdobramentos posteriores – vide o livro acima Poeira da estrada. A tese que mais chamou a atenção foi a da Federação Espírita do Rio Grande do Sul – FERGS, que apresentava a proposta de fundação de uma Confederação Espírita Brasileira – CEB, que ficaria sediada no Rio de Janeiro, então capital federal. Teve o imediato apoio da USE-SP e, ao final, foi aprovada, tendo a FERGS sendo designada para coordenar as ações visando encaminhar a questão junto às federativas estaduais e, também, conduzir a realização em prazo não inferior a um ano de um Congresso Espírita Nacional. Não obstante, os caminhos ficaram dificultados por uma ação intensa da FEB contrária a essas iniciativas e um ano depois, muitos daqueles que foram signatários das conclusões do congresso de São Paulo acabaram por participar, diretamente assinando, e indiretamente concordando com o conhecido Pacto Áureo que a FEB celebrou coincidentemente à realização, no Rio de Janeiro, também sem o apoio dela, do 2º Congresso Espírita Pan-americano. Por esse documento, todas as conquistas alcançadas e os entendimentos havidos, na direção da criação de uma Confederação Espírita Brasileira mais uma vez foram perdidas. Recorde-se que a criação da Liga Espírita do Brasil no ano de 1926, em evento de grande repercussão no Rio de Janeiro, propunha-se ao mesmo objetivo e também na ocasião encontrou resistência semelhante da FEB.
2º Congresso Espírita do Rio Grande do Sul, realizado de 3 a 7 de outubro de 1951 – Publicado no ano seguinte, 1952, estes anais resumem de forma oficial o que foi aquele evento realizado em Porto Alegre. O 1º congresso havia acontecido em 1945. De caráter estadual, o 2º congresso contou com representações de vários Estados brasileiros e seu objetivo primordial foi a unificação espírita no Estado do Rio Grande do Sul. Os registros dão conta de que centenas de pessoas se inscreveram e participaram do evento, que se distribuiu em várias plenárias onde as inúmeras teses e trabalhos enviados foram discutidos e votados, contando os aprovados com a sua publicação integral nestes anais. A sessão inaugural foi realizada no Teatro São Pedro, que teve todas as suas dependências tomadas.
Teses. 1ª Semana Espírita de Jundiaí. 1953. Este documento reproduz, sem comentários ou informações maiores, as teses que foram apresentadas e debatidas na 1ª semana espírita da cidade de Jundiaí, estado de São Paulo, realizadas no ano de 1953. Entre os que enviaram trabalhos, destaque para os nomes de Ary Lex, Apolo Oliva Filho e Cícero Pimentel. A relação completa e os respectivos temas é a seguinte: A vida dos espíritos no espaço, por Hélio Pereira Cardoso; É o espiritismo ciência, filosofia ou religião, por Carlina Salati de Almeida; outra de igual título por Fernanda Neyda Gimenez; Ressurreição da carne, por Adalberto Foelkel; O jovem espírita e o evangelho, por Wilma Barbin; outra de igual título por Carlina Salati; O jovem e o evangelho, por Cícero Pimentel; O universo foi criado ou existe, como Deus, de toda a eternidade?, por Ary Lex; outras três com o mesmo título, por Iaro Matos, João Rabaneda e Eletra Brentan; O espiritismo e o divórcio, por Apolo Oliva Filho; outras duas de igual título, por Antonio José Fassina e Rosinha Padrenosso. A repetição de temas faz crer que os mesmos tenham sido programados e solicitados aos seus respectivos autores.
A filosofia penal dos espíritas – Fernando Ortiz (1951): este livro, cuja versão digital está disponível sem custos, foi publicado em português pela LAKE e o seu ano de publicação é estimado, uma vez que o livro em brochura não apresenta informações a respeito, bem como sobre o número de exemplares impressos e outras mais normalmente solicitadas nas edições de livros. Uma segunda edição pela mesma editora foi lançada em 1998, mas está também esgotada. Trata-se de uma obra que marcou sua época e influenciou inúmeros profissionais do direito de diversos países, tendo destaque especial entre os intelectuais espíritas brasileiros. Certa ocasião, em artigo no Correio Fraterno do ABC, fiz referências a essa obra, registrando que faltavam outras com igual importância no Brasil, quando amigo do Rio de Janeiro escreveu-me registrando o livro do Deolindo Amorim, de que eu havia esquecido. Publicado o registro, restou lembrar que o mesmo Deolindo Amorim foi o autor do prefácio deste livro do Fernando Ortiz, prefácio esse, aliás, bastante elucidativo, que deixa claro, inclusive, que Fernando Ortiz fez um trabalho de grande importância sem, no entanto, ser ou pretender ser espírita.
Algunas encarnaciones de Allan Kardec – Natalio Ceccarini (1990). O autor, que foi um dos espíritas argentinos a fundar a Cepa, publicou pela Editorial de la CEA, de Buenos Aires o livro de título acima, que se aventura neste terreno sempre muito difícil de estudo das possíveis reencarnações anteriores do mestre Allan Kardec. Em formato de bolso, 157 páginas, Ceccarini abre o livro com a curiosa definição do termo Kardeciologia: “tratado ou saber sobre a vida e a obra do mestre Allan Kardec. Exegese de seu pensamento filosófico; aprofundamento sobre o homem de ciência, investigações e métodos. Estudo e avaliação do mestre e seus aportes à Pedagogia. Ciência de tudo o que se relaciona a Allan Kardec, sua missão, sua tarefa na codificação do Espiritismo; como reformador social, moral e espiritual”. Ceccarini aborda a figura de Kardec reencarnado como João Huss, Quirilius Cornélius, o druída Allan Kardec e finaliza abordando outras encarnações possíveis. Justiça lhe seja feita: em nenhum instante deixa de reconhecer que o terreno é escorregadio e que por isso trabalha na condição de estudioso que vê a possibilidade de conexões entre as figuras anteriores e a personalidade de Kardec, mas sabedor que é de que são mais conjecturas, algumas se mostrando muito próximas da realidade, e não evidências comprováveis. Seu material de base dos estudos são outros estudos feitos por autores encarnados, diversas mensagens de espíritos e também obras da bibliografia geral.
A doutrina espírita como filosofia theogonica – Bezerra de Menezes (1921). Em 31 de maio de 1886, o autor deste pequeno livro escreveu uma longa carta ao seu irmão carnal, Manoel Soares Bezerra, então residente em Fortaleza, Ceará, contestando-o em suas alegações de que Bezerra de Menezes havia se aliado a uma doutrina demoníaca, oposta àquela que recebera por educação desde o berço. De 1886 a 1920, a carta ficou restrita a apenas algumas pessoas, até que seus originais chegaram à Federação Espírita Brasileira, que a publicou em partes durante oito meses, de outubro de 1920 a maio de 1921 na revista Reformador. Neste mesmo ano, resolveu transformar a carta em um pequeno livro e disponibilizá-lo em seu catálogo. Quando publicou na revista, intitulou a carta como “Valioso autógrafo” e ao transformá-lo em livro alterou o título para o que acima aparece, mantendo-se a grafia da época. Em 1946, o livro recebeu nova edição, mas agora com o título de “Uma carta de Bezerra de Menezes”. A Editora paulistana Edicel, ainda sob o comando do seu fundador, Gianini, e tendo a orientação do então deputado federal Freitas Nobre, também lançou uma edição da obra com o título de “A doutrina espírita”. Todas essas publicações e os títulos diferentes a elas atribuídos demonstram o interesse que a carta despertou tão logo chegou ao conhecimento do público. Mas não apenas isso. Note-se que a carta, embora de cunho familiar, revelou-se um verdadeiro estudo comparado da doutrina espírita com a religião católica, sob a ótica de Bezerra de Menezes. As edições do livro estão todas esgotadas, mas uma cópia em PDF da edição de 1946 está disponibilizada AQUI
Segundo livro de leitura. O espiritismo na infância – Antonio Lima (1927). Conhecido por assinar alguns livros para adultos, o aturo publicou pela Federação Espírita Brasileira uma série de três volumes intitulada “Livro de leitura”. Este é o segundo volume e está direcionado à infância a partir de uma narrativa que ocorre entre Violante e sua filha Carmem. Tudo começa com a pergunta da menina, questionando a mãe sobre quem é Deus, tal qual aparece na primeira questão de “O livro dos espíritos”. Apoiado nos conhecimentos da época, o livro se mostra atualmente bastante defasado em seus conceitos e interpretações, bem como na linguagem, mas revela a preocupação que desde sempre assomou às lideranças espíritas de dialogar com as diversas faixas etárias da sociedade.
Esboço histórico da Federação Espírita Brasileira (1924). Esta é a segunda edição deste livro, cuja autoria não foi consignada. A primeira surgiu ainda em 1911 e não sofreu alterações posteriores. Foi elaborado para as comemorações do 28º aniversário de fundação da FEB, que se deu concomitantemente com a inauguração da sede própria localizada na Avenida Passos, no Rio de Janeiro, no dia 1º de janeiro de 1912. Trata-se de um dos primeiros registros históricos da FEB e possui importância para os pesquisadores, em especial, pelas informações que oferece, não apenas a respeito da própria instituição retratada, como também abordagem da época e da visão e práticas espíritas. Quando me ofereceu o volume na década de 1970, Francisco Thiesen, então presidente da FEB, o autografou conforme aparece na página de rosto da imagem ao lado. O livro está esgotado.
Livro do centenário (1906). Federação Espírita Brasileira. O livro registra os fatos que marcaram as comemorações do centenário de nascimento de Allan Kardec, evento organizado e patrocinado pela FEB, realizados no Rio de Janeiro em 1904. O exemplar foi-me oferecido na década de 1970 pelo então presidente Francisco Thiesen e traz na página de rosto a sua assinatura. A FEB convidou lideranças espíritas de diversos Estados do país para participarem do evento e o realizou nos dias 1 a 3 de outubro de 1904. Um de seus pontos de destaque foi o lançamento de um documento denominado “Bases da organização espírita”. Tanto este documento quanto o desenrolar das discussões sobre o aspecto organizativo do espiritismo brasileiro à época são uma demonstração dos conflitos de cunho doutrinário já presentes e dominantes. Um dos pontos centrais se assentava na aceitação, pela FEB, das teses roustainguistas e no seu objetivo de ver os livros deste controverso autor aceitos como orientação principal para os estudos dos Evangelhos. A oposição enfrentada pela FEB levou a uma espécie de acomodação, ficando consignado no documento que os espíritas deveriam decidir por si mesmos que livro adotar, se “O evangelho segundo o Espiritismo, de Kardec, ou “Os quatro Evangelhos”, de Roustaing. Este e outros aspectos históricos de fundamental importância para a compreensão dos caminhos adotados pelo espiritismo no Brasil podem ser encontrados neste livro, que não teve outra edição e é desconhecido da maioria dos estudiosos.
No paiz das sombras – E. D’Esperance. A primeira edição em português do livro autobiográfico de Elisabeth D’Esperance, uma das mais incríveis médiuns de todos os tempos, foi lançada no Brasil em princípios do século XX sob os selos da então conhecida Livraria Guarnier e da Federação Espírita Brasileira, no Rio de Janeiro. Contém o prefácio do pesquisador russo Alexandre Aksakof, datado de 1897. Contém as 28 ilustrações do livro original em inglês, fazendo desta uma edição primorosa. Hoje esgotado, o livro, importantíssimo e rico em informações sobre as experiências da médium, pode ser lido em pdf, gratuitamente, neste endereço: http://www.bvespirita.com/No%20Pais%20das%20Sombras%20(Elisabeth%20D%20Esperance).pdf
Argila (1953) – J. Herculano Pires. A profusa e criativa obra literária de José Herculano Pires inclui muitas, muitas poesias. Desde cedo, desde jovem. Este Argila, publicado em primeira edição pela antiga Lake em 1953, portanto original. Foram impressos poucos exemplares na ocasião, mas o suficiente para que a crítica observasse o estilo moderno do autor e tecesse elogios merecidos. A Lake, então, morava na Rua Riachuelo, bem no centro de São Paulo, e pertencia ao Batista Lino, um lutador, do mesmo veio aurífero de Gianinni, da também antiga Edicel. Foram ambos amigos de Herculano. Esta edição é tão simples que sequer anota a data de impressão, mas os registros do autor e de seu biógrafo, Jorge Rizzini, dão a certeza de que a data acima anotada é correta. “Obra de vanguarda” – anota Rizzini – “contribuição de inegável importância à poética espírita luso-brasileira”.
Um deus vigia o planalto (1964) – J. Herculano Pires. Este romance de Herculano Pires nasceu bem antes da sua publicação em livro, ou seja, surgiu na forma de folhetim no jornal Diário da Noite e, mais tarde, com o reconhecimento da crítica, incluído pelo poeta Paulo Dantas na coleção Terra Forte, da Editora Francisco Alves, de São Paulo. Eis aqui a capa da edição primeira, datada de 1964 (Rizzini, na biografia de Herculano, equivoca-se e data como sendo 1968.) É romance gostoso, lírico, poético. Os sons das moedas que as mulheres lançam no chapéu do mendigo soam, interminavelmente, pelos corações sensíveis.
Marx e Kardec, materialismo e espiritismo
Espiritismo e Socialismo estão unidos por laços estreitos, visto que um oferece ao outro o que lhe falta a mais, isto é, o elemento de sabedoria, de justiça, de ponderação, as altas verdades e o nobre ideal sem o qual corre ele o risco de permanecer impotente ou de mergulhar na escuridão da anarquia. Léon Denis
O socialismo de Denis foi classificado como idealista, uma maneira de ver que em princípio não combina com a dura realidade na qual a vida em sociedade se manifesta e desenvolve. Desde a eclosão das ideias socialistas, com Marx, às experiências de implantação de regimes políticos e econômicos marcados pelo fundamento socialista, que se discute a questão. No espiritismo não foi diferente e aqui está um exemplo de contenda em que as ideias se chocam e se distanciam até se encontrarem nas pontas, na irrefreável leveza da física.
Os espíritas e as questões sociais – em sua edição primeira, feita em 1955 em Niterói, RJ, este livro reúne artigos publicados na imprensa por dois conhecidos espíritas: Eusínio Lavigne, advogado e empresário de Ilhéus, BA, e Sousa do Prado, ex-membro da Federação Espírita Brasileira. Trata-se de um grande debate que teve início quando a Revista Internacional de Espiritismo, de Matão, recusou-se a publicar um artigo de Lavigne em resposta a outro, que saiu em suas colunas na edição de setembro de 1950, intitulado “Pela vitória do espírito” e assinado por Pereira Guedes, cujo conteúdo analisava o livro Materialismo dialético e materialismo histórico, de José Stalin. Lavigne procurou, então, o Jornal de Debates, onde encontrou guarida e por vários meses expôs seus argumentos sobre a teoria marxista, o socialismo e as conexões com o espiritismo, além de, ao defender o marxismo, deixar claro que o fazia ao que de científico ele continha e não à sua condição materialista contrária ao fundamento espiritual da doutrina de Kardec. Lavigne vê em Marx uma condição semelhante, mas em terreno diferente, à de Kardec, considerando ambos missionários. Diz ele, em resposta a Pereira Guedes: “Há que distinguir, no caso, o lado filosófico e o lado científico. Cientificamente – porque é fato visto – a verdade acompanha Marx, quando o sociólogo alemão proclama que a supremacia da solução econômica é a condição precípua para uma justiça social neste planeta”. Lavigne vai reafirmar essa opinião ao dizer que “cientificamente falando, não são irreconciliáveis, em absoluto, o Marxismo e o Espiritismo, porque ambos querem a verdade objetiva e ambos se acordam num fim comum – o do progresso da Humanidade”. Trata-se de um debate bastante longo transposto para um livro de mais de 275 páginas em corpo diminuto, onde os temas e os autores citados, de um lado e de outro, se alternam e se multiplicam. Souza do Prado, o coautor, entra na obra em sua segunda parte, tendo por objetivo focalizar o tema central “Cristianismo, Espiritismo e Comunismo”, mas não começa bem a sua participação ao trazer ao conhecimento do leitor um texto de Emmanuel, endereçado a um amigo de Souza do Prado que, estando em Pedro Leopoldo, pediu ao mentor de Chico Xavier uma palavra sobre o Souza do Prado. Emmanuel teria escrito: “Nosso amigo prossegue sob a assistência de vários companheiros de Espiritualidade, esperando nós todos que a sua inteligência unida ao coração produza, com o Cristo, valores e bênçãos para a sementeira da renovação terrestre. Desejando-lhe paz e progresso no Evangelho Redentor, somos o amigo e servo humilde Emmanuel” (6/1/54).
Sousa do Prado entendeu nessas palavras de estímulo de Emmanuel o contrário do sentido ali presente, concluindo que “[…] não há a menor dúvida de que aquelas palavras desse espírito representam claramente a aprovação implícita de tudo o quanto temos escrito”. Era ele, de muito tempo, defensor e adepto do comunismo, de que muito se orgulhava como ele mesmo afirma no livro. E não compreendia que alguém pudesse ser espírita de fato sem ter uma consciência da importância do comunismo. Eis o que diz após afirmar em letras destacadas que “o partido comunista não é materialista”: “Por isso é que somos comunistas, não podendo compreender que o não sejam os que se dizem espíritas-cristãos, e pregam espiritismo e cristianismo… Mais ainda: para nós, é mil vezes preferível o comunista materialista ao espírita reacionário, porque o primeiro pratica o evangelho sem o pregar, ao passo que o segundo prega o evangelho sem o praticar…”. Fundamentalmente, Sousa do Prado permanece no mesmo terreno argumentativo iniciado por Lavigne, onde a ideia de um socialismo puro é mais concernente ao espiritismo de justiça, amor e caridade, por isso lhe cumpre, com a Lavigne, combater o capitalismo como sendo o sistema mais cruel possível à sociedade e totalmente em desacordo com o espiritismo. A diferença está em que o primeiro transita por dois campos: o da filosofia e o da ciência marxista, enquanto o segundo adota reflexões mais genéricas, as quais sustentam sua crença e justificam sua presença no debate. Ao final do livro, algumas cartas trocadas durante os debates são anexadas, bem como diversas notas que correram em paralelo à discussão.
Ismael, um Anjo na FEB
A trajetória de um destacado grupo mediúnico e as polêmicas em torno das raízes místicas do espiritismo no Brasil podem ser vistas pelas palavras dos próprios personagens centrais da história.
Livro:
Trabalhos do Grupo Ismael da Federação Espírita Brasileira (1941)
Autor: Guillon Ribeiro, Ed. FEB
A história do Grupo Ismael está registrada neste livro a partir da reprodução de um trabalho desenvolvido por Pedro Richard e publicado 40 anos antes, ou seja, em 1901, nas páginas do Reformador, da FEB. Embora o livro se destine a transcrever e comentar as mensagens recebidas pelos médiuns do grupo no período de julho de 1939 a dezembro de 1940, Guillon Ribeiro aproveita da oportunidade para destacar este histórico como forma de fixar aquelas que julga serem importantes contribuições ao espiritismo brasileiro, sendo, porém, certo que elas estão circunstancialmente presas ao contexto de crenças onde a FEB localizou-se.
Sob este aspecto, o texto de Richard é também um daqueles instrumentos que permitem avaliar as condições das práticas mediúnicas, antevistas por Allan Kardec em O livro dos médiuns, em que as influências do meio recaem sobre os médiuns e das quais quase sempre não é possível fugir. O clima psicológico e espiritual do grupo é de crença absoluta na sua importância enquanto conjunto de seres especialmente destacados pela espiritualidade superior para levar avante uma tarefa de semeadura da doutrina espírita, bem como de sua condução pelos tempos futuros. Trata-se, sem dúvida, para os líderes do grupo, de um mandato divino e único, ou seja, declaradamente não há dois grupos com as mesmas atribuições, nem dentro da FEB, à qual o grupo se subordina a partir de determinado momento, nem fora da FEB, por mais que houvesse instituições respeitáveis alhures.
Em cometimento dessa ordem, a narrativa de Richard busca deixar claro que a luta do grupo para se manter e se preservar da invasão de agentes sem clareza de consciência desse mandato é uma espécie de guerra entre a luz e as trevas. Por possuir tal responsabilidade, segundo Richard e seus pares, o grupo sofre a contestação dos adversários de modo contínuo, mas sua força está em sua perseverança e nesse núcleo da consciência de que o mandato justifica a luta, pois é a verdade – que o grupo crê saber avaliar melhor do que ninguém – que está sendo levada à frente. Este modo de ver e de ser vai conduzir a um ponto extremo, em que os conflitos não apenas de relacionamento no meio espírita, mas principalmente de interpretação doutrinária dificultam saber se as aludidas forças das trevas estão fora dos domínios do grupo ou dentro deste, a manipular, iludir e enganar.
Vejamos, pois, alguns aspectos curiosos da narrativa de Richard, que Guillon reproduz integralmente. Nota-se que o texto guarda a característica mística dos seus semelhantes à época, muito próxima da linguagem católico-cristã que os séculos enraizaram na cultura ocidental e a secularização afrouxou, sem eliminar, mas que a obra de Roustaing tratou de recompor para atender à demanda da ala de místicos que de fato se alojou nos meios espíritas. Por isso, esse é o primeiro destaque que se faz já a partir do parágrafo de abertura da narrativa de Richard, que está assim vazada:
“Quando, por determinação do Eterno, que é a manifestação integral do amor e da misericórdia, sem caprichos e sem imposição, pois o livre arbítrio é sempre respeitado, foi lançada a propaganda do Evangelho do seu Divino Filho, em espírito e verdade, nesta parte do planeta, essa nobre e penosa missão foi confiada ao bom Anjo Ismael, que, com dedicação de que só são capazes os Espíritos de enorme elevação moral, organizou o pequeno grupo denominado “Confúcio”, reunindo para isso meia dúzia de trabalhadores de boa vontade, e deu começo à obra santa do Senhor”.
O período a que Richard se refere é mais ou menos a década de 1870. Já então ou a partir daí começou-se a fortalecer a tese de que um certo anjo de nome Ismael recebera a missão de conduzir a implantação dos Evangelhos em espírito e verdade em terras brasileiras, o que seria e só poderia ser feito com a bandeira do espiritismo. Assim, com a criação do grupo Confúcio, a ponta inicial da história do Grupo Ismael, e com a escolha dos primeiros componentes diretamente por Ismael estava atribuída a missão divina que eles conduziriam até alcançar o momento em que a FEB apareceria no cenário e finalmente se faria herdeira dessa missão. Subjaz, aqui, a ideia de que Ismael detinha não só autoridade para agir diretamente no planeta, fazer escolhas e implantar atividades-fim, mas também alterar, modificar, mudar. A classe dos Anjos é na escala espírita de Kardec a mais elevada, o que, então justifica e dá força à figura do Anjo Ismael. Esse detalhe, contudo, é irrelevante se considerar-se que a escala espírita é um instrumento mais didático, destinado à reflexão a respeito da hierarquia espiritual e sua constituição do que propriamente um documento do tipo legal ou natural. Sua complexidade foi prevista por Kardec, dado que se trata de considerar individualidades inteligentes, com seus atributos, autonomia, níveis de consciências e trajetória evolutiva, fatores esses que impedem a determinação de níveis rígidos que as iguale em determinados tempos.
Assim, segundo Richard, em 1873 o grupo Confúcio é dissolvido por Ismael e para o seu lugar o Anjo cria uma sociedade, de nome “Deus, Cristo e Caridade”. A saga do grupo estava, então, em seu processo longo de maturação, seguindo a eterna dicotomia da luta entre a luz e as trevas, fato que vai prosseguir por anos. Para Richard, a escolha do nome da nova sociedade por Ismael é a escolha de um título “que por si só é a síntese da Doutrina Espírita”. Ele reafirma ainda a ideia de os colaboradores escolhidos por Ismael possuírem uma condição especial, ao dizer: “o Guia do Espiritismo no Brasil reuniu todos os trabalhadores de boa vontade que, ao encarnar, haviam tomado o compromisso de o auxiliar nesse memorável empreendimento”, ideia essa que, junto a outras de igual teor, acabarão por formar a tiara sagrada dos integrantes do grupo. Apesar disso, a nova sociedade encontrará seu termo ao alterar suas concepções e modificar o nome para Sociedade Acadêmica Deus Cristo e Caridade, o que, segundo Richard, ocorre por um desvio provocado pelas forças trevosas, gerando a divisão entre místicos e científicos, a merecer dele a crítica de que “a ciência que edifica e que exalta só pode ser adquirida por aqueles que possuem virtudes”, concepção essa que em certa medida é colocada em prática com extrema força nos dias atuais.
Assim, a nova Sociedade Espírita Fraternidade, criada logo após, torna-se a sucessora natural da anterior, salvando-se dos escombros aqueles poucos obreiros que permaneceram fiéis a Ismael. E um detalhe chama a atenção nestas palavras de Richard: “À sociedade foi traçado o programa espírita mais completo que jamais temos conhecido”. É que neste programa o polêmico Roustaing ganha presença destacada ao fornecer o material básico para as reuniões de estudo dos evangelhos, enquanto Kardec ficava com a parte complementar. Segundo o autor, foi aí, na Fraternidade, que Kardec teria dado algumas mensagens em 1888 e as confirmado dois anos depois. É também onde Bezerra de Menezes começa a fortalecer a sua imagem de condutor e mestre.
A saga, porém, não estava concluída. Os científicos mais uma vez se tornaram obstáculo aos místicos e a fraternidade se modificou, exigindo dos crentes a busca de novos ares. Bezerra acorreu à FEB que estava em situação difícil e para lá transportou os Estatutos da Fraternidade, ou seja, a concepção de um Espiritismo místico, piedoso, essencialmente evangélico. Bezerra tornou-se assim uma espécie da representante direto de Ismael na Terra, embora ele, Ismael, continuasse agindo diretamente sobre os destinos da doutrina, segundo crê Guillon e seus antecessores.
Entra em cena, agora, o “Grupo Sayão”, filho direto da antiga sociedade “Deus, Cristo e Caridade”, inicialmente conduzido por aquele que o fundou em sua própria residência e cujo nome completo era Antonio Luiz Sayão, místico e adepto inveterado de Roustaing, além seguidor de Bittencourt Sampaio, este escritor e poeta também da linha mística.
Os conceitos roustainguistas impregnavam o contexto interno dos adeptos e direcionavam os critérios para a escolha e aceitação destes. Consequências externas ocorriam e então inevitáveis conflitos se produziam a partir das divergências entre a interpretação do modo de ver de Kardec e o do seu adversário francês. Os adeptos de Roustaing produziam livros e livros na tentativa de validar suas ideias e justificar a opção por ele, opção que diziam estar em relação à interpretação dos Evangelhos, onde Roustaing era, acreditavam, mais completo do que Kardec. Esta concepção, aparentemente, não atingia os demais livros da obra kardequiana, mas era visível que essa retórica não se sustentava, haja vista para o fato de que O evangelho segundo o espiritismo, de Kardec, não subsiste sem os demais livros, especialmente o primeiro – O livro dos espíritos – ou seja, não se pode ver nenhuma das obras de Kardec de modo isolado das demais, especialmente aquela que busca aplicar aos evangelhos a interpretação espírita. Portanto, qualquer interpretação à base dos conceitos de Roustaing não só era vista como contrária à de O evangelho segundo o espiritismo, como também e especialmente à de O livro dos espíritos e seus consequentes. À semelhança da cultura judaica que ultrapassa os milênios de forma incisiva, os adeptos de Roustaing desenvolveram uma capacidade de resistir ao tempo sem ceder, mas também sem deixar de criar os espaços para que a crença geral se espalhasse, de forma a garantir sua presença junto à obra espírita dos séculos futuros. Essa marca está presente em grande parte dos adeptos de Roustaing que se destacaram na defesa dele e na propagação de suas ideias controversas, sob o slogan de Revelação da Revelação.
O Grupo Sayão foi levado para a FEB e lá se instalou sob o título de Grupo Ismael logo depois da morte de seu fundador, em 1901. Ali vai passar por diversas tribulações e viver períodos difíceis e constantemente seccionados, com Guillon atribuindo às forças das trevas a causa de todos os dissabores, e à incúria dos homens as influências perniciosas daquelas. Mas tem o autor um destaque que corrobora a interpretação de que Roustaing era imprescindível aos crentes. Guillon afirma que os lapsos de tempo – e foram muitos – em que o Grupo Ismael não funcionou não foram suficientes para interromper os estudos da obra de Roustaing. Eis como diz: “ […] jamais se interrompeu, de um só dia, desde 1880 até agora [o estudo] dos Evangelhos pela obra Revelação da Revelação, de J.B. Roustaing”. Então, por conta da repercussão negativa que esse tipo de situação gera, o Grupo Ismael e, de resto, toda a base da FEB, uma vez que o grupo lá se instalou, sente-se pressionado a dar explicações públicas sobre a doutrina roustainguista e este livro de mensagens não o faz por menos. Ainda em sua parte histórica conduzida por Guillon Ribeiro, este informa que a análise das mensagens objeto do próprio livro é uma demonstração de que a chamada espiritualidade superior conduzida pelo Anjo Ismael e representada por diversos espíritos nas mensagens mediúnicas sempre aprovou a doutrina de Roustaing, e o argumento aí está vazado nestes termos: “[…] nunca nenhum deles, em qualquer dos seus ditados, quer psicográficos, quer sonambúlicos, proferiu uma única palavra que se possa considerar de condenação, velada ou clara, de Os quatro evangelhos, de Roustaing, ou, sequer, como restritiva de alguma das revelações e explicações contidas nessa obra”.
Tais argumentos se assentam na ideia de que espíritos de tamanha grandeza jamais omitiriam pareceres esclarecedores àqueles que estudam e acreditam sinceramente no que fazem, especialmente porque acima de todos estava o Anjo Ismael, o mais destacado preposto de Jesus, sem perceber que no cerne desse argumento está o seu contrário, ou seja, o de que espíritos esclarecidos deixam por respeito à liberdade dos encarnados que estes tomem suas decisões por si mesmos, mormente nas questões de crença e especialmente quando estas assumem proporções extensas. Mas, se eventualmente algum comunicante faz uma incursão mais profunda neste tipo de assunto e deixa registrada sua preocupação com os excessos da crença, há de se perguntar que consequências isso teria em relação à credibilidade da fala do comunicante. Seria ele levado em consideração ou seria visto como um representante das trevas infiltrado entre eles e, quem sabe, utilizando-se de um conhecido nome alheio para melhor alcançar seus propósitos de desunião do grupo?
As palavras de Guillon, que fecham esse resumo histórico, refletem muito bem essa assertiva acima. Vejamos.
Diz ele: “Mas, então, é quanto basta para que a Federação, mesmo aos que nela mourejam e a têm humanamente dirigido falecessem todos os requisitos intelectuais e morais para por si mesmo lhe aprenderem o subido valor e a sabedoria do que nela se contém, como provindo dos mais luminosos planos da espiritualidade, aceitasse, adotasse e recomendasse, para inteligência integral de tudo o que nos Evangelhos se encerra e em especial no de João, a aludida Revelação da Revelação, sem se perturbar com as opiniões personalistas dos que, sem a conhecerem, por não a terem estudado convenientemente, condenam, combatem, repudiam e achincalham essa obra sábia, que completa admiravelmente a de Kardec, imprimindo à Revelação Espírita o seu cunho mais relevante – o de complementar a Revelação Cristã”.
Para finalizar, algumas informações necessárias ao livro em questão. A introdução e o resumo histórico ocupam cerca de 50 páginas do livro. As demais são divididas em duas partes, a primeira delas contendo a transcrição de comunicações mediúnicas recebidas no período aludido e a segunda parte contendo outras comunicações, mas acompanhadas de comentários do autor do livro. Traduzindo em números, são 32 mensagens assinadas na primeira parte e 31 na segunda parte. Entre estas, porém, aparecem algumas outras de espíritos em regime de orientação, sobre cuja presença e participação se tecem comentários. Todas as mensagens assinadas, porém, são dadas, em sua maioria, por espíritos que fizeram parte do grupo quando encarnados. Assim, temos Bittencourt Sampaio com 24 mensagens, Pedro Richard com 18, Romualdo com 9 e Bezerra com 3. Os demais espíritos nomeados que aparecem assinam 1 mensagem cada um. Há de se notar que estes espíritos são as antigas lideranças que parecem ter permanecido ali, sem arredar o pé, na continuidade de uma luta que começou lá atrás, no Grupo Confúcio. Por fim, registre-se que as mensagens de ambas as fases oferecem material para análise crítica e questionamento em todos os aspectos do processo mediúnico, desde a autoria ao conteúdo, o médium e o meio em que os fenômenos descritos ocorrem. Este é um trabalho a fazer, necessário, que permanece em aberto.
Cosme Mariño e sua importância para o espiritismo na Argentina
Mariño foi presenteado com o título de “o Kardec argentino” e o livro a seguir, por ele escrito, revela sua atuação e o desenvolvimento da doutrina em terras portenhas.
El espiritismo em la Argentina (1963) – Cosme Mariño – Esta edição é, na verdade, a 2ª edição, e vem acrescida de um Apêndice antecedido por uma Nota explicativa, que estende o período histórico abordado por Mariño correspondente aos anos 1870-1923 para até 1932. O autor do texto do Apêndice não é mencionado. O prefácio feito para esta edição é assinado por Carlos Luis Chiesa, presidente da Associação Espírita Constancia. Mariño deixou o corpo físico em 1927, aos 80 anos e é considerado um dos maiores defensores do espiritismo na Argentina. Neste seu livro, relata ele os fatos que viveu diretamente, que presenciou ou de que tomou conhecimento durante os quase 50 anos em que viveu na defesa e divulgação do espiritismo, cujo marco inicial foi o ano de 1879, ou seja, dois anos após a fundação da mais antiga associação espírita ainda viva da América Latina, a Sociedade Espírita Constancia de Buenos Aires, que Mariño elegeu por seu local privilegiado de atuação. É conhecido em seu país com o “Kardec argentino”. Os que desejam se inteirar do espiritismo naquele país portenho terão, sem dúvida, neste livro um material excelente e indispensável, porque aborda muitos e muitos episódios, personagens e pensamentos que expõem o modo de ser e de interpretar a doutrina espírita na Argentina, com evidentes desdobramentos nas práticas doutrinárias e na sociedade como um todo. Sem deixar de mencionar as inúmeras semelhanças e dessemelhanças guardadas com o espiritismo brasileiro, como ainda hoje o conhecemos. Vale abordar alguns desses episódios. Vamos começar logo com um fato conflituoso, sem deixar de assinalar que não desejamos com isso estabelecer uma marca negativa para o livro, pois outros muitos fatos extraordinários o sucederão.
É que assim nos desincumbimos desse fato ligado diretamente à minha própria atividade. Quem leu o meu livro O corpo fluídico há de lembrar-se que Rizzini, no prefácio, alude a A vida de Jesus ditada por ele mesmo como uma obra que atenta contra a mediunidade e os princípios espíritas de forma geral, livro que surgiu na França em 1885, foi traduzido para o italiano e ressurgiu na Argentina, com tradução de Ovídio Rebaudi, tendo este lhe acrescentado uma segunda parte cujo texto teria sido psicografado pelo próprio Rebaudi. Rizzini reforça sua crítica com informações sobre Rebaudi e sua forma de pensar que, no caso específico, conflita com o espiritismo. Pois bem, Cosme Mariño abre espaço considerável para relatar as atividades e o perfil de Ovídio Rebaudi na Argentina, para onde se transferiu – era paraguaio de nascimento e fez seus estudos universitários na Itália – deixando entrever aí dois pontos: o primeiro é de que em todo o relato que ocupa nada menos do que 26 páginas, Mariño não faz referência alguma ao livro apontado por Rizzini. Quem o faz é o próprio Rebaudi, mas apenas de passagem ao confirmar que traduziu a obra do italiano, sem maiores comentários ou menção a uma segunda parte por ele psicografada, no longo depoimento que fez a Mariño e que este reproduziu no livro; o segundo é que Mariño mostra Rebaudi com uma personalidade completamente contrária à que Rizzini, em poucos traços, é verdade, deixa entrever. Isso não significa que Rizzini não esteja correto quando demonstra, inclusive, com transcrições do livro de Rebaudi os conflitos entre este e Kardec na obra específica, pois Rizzini foi em busca do fato constatável para subsidiar sua análise. Diz, por exemplo, que Rebaudi afirma: “As honras da mediunidade não se adquirem sem causar transtornos ao organismo humano e esses transtornos determinam frequentemente o desequilíbrio das faculdades mentais”. Vê-se, claramente, que o espiritismo ensina exatamente o contrário do que diz Rebaudi. Contudo, sobre as atividades e personalidade de Rebaudi, a dar-se o crédito que Mariño reivindica – e não há porque colocar em dúvida seu caráter aí – há que se rever a imagem do indivíduo Ovídio Rebaudi. Mariño afirma logo de início que “devemos deter-nos sobre a personalidade deste honrado apóstolo da ideia espírita (Rebaudi), porque podemos dizer sem medo de equivocarmos que é a personalidade de maior destaque que temos em nossos quadros”. Era o ano de 1887 e Rebaudi acabava de se unir aos colaboradores da Revista Constancia.
Para Mariño, Rebaudi era um homem múltiplo: era doutor em química, estudioso do magnetismo com obras publicadas e consagradas, era médium psicógrafo, de cura e de efeitos físicos, vidente e audiente. Aqui, um detalhe interessante que talvez possa explicar a infeliz opinião de Rebaudi sobre o “perigo” de a mediunidade causar doença mental: Mariño relata, em relação à mediunidade de cura, que ele “não a pôde exercer com toda a intensidade que desejou porque cada cura que fazia custava-lhe uma enfermidade. A última que fez o colocou às portas da morte”. Talvez, essa experiência o tenha levado ao equívoco da generalização. Mariño acrescenta que Rebaudi tinha uma constituição física bastante frágil e que a influência às vezes de espíritos atrasados moralmente o faziam adoecer com certa gravidade. Segundo Mariño, Rebaudi fora materialista convicto e sua adesão ao espiritismo teria vindo por meio de experiências de que participou, a contragosto, com as famosas mesinhas de três pés, ou trípodes, como eram conhecidas na Argentina. Foram elas portadoras de mensagens que lhe enviaram, numa mesma ocasião, a mãe, o pai e os avós, todos então desencarnados e o fato curioso aí é que o único que estava sentado à mesa era ele mesmo, tendo os demais haviam se retirado por “imposição” dela, a mesa, de modo que não teve como deixar de perceber que algo para além da matéria estava ali a estabelecer um diálogo inteligente e revelador. Por fim, registre-se que Mariño relaciona um sem número de atividades intelectuais e experimentais exercidas por Rebaudi, algumas descobertas importantes no campo da química, que ele era um nome conhecidíssimo e respeitado na Europa e nos Estados Unidos, que realizou grandes obras no campo da saúde na Argentina e no Paraguai, enfim, que por tudo isso foi um homem admirável.
El espiritismo em la Argentina é um livro da história da mais antiga sociedade espírita daquele país ainda em funcionamento, a Sociedade Espírita Constancia, nascida nos anos 1870, na qual o autor ingressou pouco tempo depois de fundada e à qual permaneceu ligado até o seu desencarne. Esta sociedade ficou também muito conhecida por publicar a Revista Constancia, periódico que contou em suas colunas com trabalhos de inúmeros espíritas da fala espanhola, da Argentina e do exterior. Em 1882, Cosme Mariño assumiu a direção da revista, conduzindo-a por mais de quarenta anos. Segundo Mariño, a revista tinha um caráter de certo modo eclético e abrigava grandes polêmicas divido aos ataques constantes desferidos então contra o Espiritismo, principalmente pelo clero,mas também aos seus posicionamentos especialmente em relação à Sociologia, à Política, etc., dando espaço também para ideias teosóficas, nas quais via ligações com os propósitos espíritas. Além disso, contava, desde o segundo ano de sua fundação, com a palavra respeitável da grande dama do espiritismo espanhol, Amália Domingos y Soler a quem Mariño destinava um valor mensal como contribuição para suas obras assistenciais e de divulgação da doutrina em Barcelona. Em 1891, a revista passa a circular semanalmente.
O livro de Mariño dá conta que já em 1890 teve início o projeto de fundação da Confederação Espírita da Argentina, mas a iniciativa, que chegou a funcionar, durou pouco tempo em virtude de desavenças. Por estes tempos, crescia a fama de Pancho Sierra, sobre cuja personalidade temos o livro de Humberto Mariotti. E Mariño relata que em três de abril de 1892 fora atacado por uma senhora beata, parente do arcebispo local, que deu tiros nele logo após o encerramento de uma palestra de Rebaudi nos salões da Sociedade Constancia. A senhora deu dois tiros em Mariño, sendo que o primeiro passou raspando em sua cabeça e o segundo ficou alojado na altura dos seus rins. Esclareça-se: as maiores polêmicas enfrentadas por Mariño, pelas colunas da revista, se davam com os católicos, à semelhança do que ocorria em várias partes do mundo, no Brasil, inclusive.
Em agosto de 1895, Mariño lança uma campanha para a fundação de um partido político na Argentina, de nome Partido Democrata Liberal, para cuja concretização foi formada uma comissão durante reunião na residência do próprio Mariño, com a consequente apresentação das Bases do partido, subordinada à concepção de que seus membros pertenciam à “corrente progressista das ideias filosóficos-socialistas” e protestavam contra “à preponderância do clero que pretende deter a expansão do livre pensamento e da liberdade de consciência”. Depois de um início promissor, descobriu-se que os defensores dessas ideias foram perdendo o entusiasmo diante das barreiras políticas que se colocavam, levando à extinção do partido.
O livro de Mariño relata os fatos até o ano de 1923. Quatro anos depois, 1927, Mariño desencarna. Para esta segunda edição, os continuadores da obra desenvolvida pela Sociedade Constancia incluem um apêndice que busca relacionar alguns fatos ocorridos até 1932, entre eles a desencarnação d Cosme Mariño, ocorrida em 18 de agosto de 1927, bem como a inauguração do novo prédio da Sociedade Constancia, ocorrida em 28 de maio de 1932. Trata-se de um edifício imponente para os padrões da época. A instituição permanece ativa até os dias atuais.
Sob duas sombras: a história e o invisível
Eis aí um líder que só aceitava a liderança de alguém que possuísse as características do grande líder. Allan Kardec foi um deles. Tornou-se um espírita tardio e dos poucos que, nestas alturas da vida, logrou penetrar com rara lucidez no abrangente conteúdo do mestre lionês.
“A minha alma não é propriedade do Estado, nem das seitas. Tenho sobre ela jurisdição absoluta. Não tolero que a guiem contra a minha vontade. Hei de salvá-la eu mesmo, ou ela estará perdida. A menos que forças, livremente aceitas, lhe mudem a direção, ela resistirá aos decretos emanados do poder humano”.
Essa feliz e comovente declaração faz parte da profissão de fé contida no livro Um punhado de verdades, livro escrito por Américo Werneck e publicado em 1923, no Rio de Janeiro. E quem era Américo Werneck? Quando me presenteou com o exemplar desse livro em 1981, meu amigo Francisco Klörs Werneck, o grande tradutor das obras de Ernesto Bozzano para o português, me disse em bilhete separado: “Meu tio Américo Werneck, engenheiro civil, deputado estadual pelo estado do Rio, foi convidado pelo presidente do estado de Minas Gerais, Silviano Brandão, para ocupar o cargo de Secretário de Agricultura, Viação, Obras Públicas, Indústria e Comércio, que aceitou. Foi construtor de Lambari e prefeito interino de Belo Horizonte. Em Lambari, a rua principal tem o seu nome e o seu busto. Famoso pelo seu trabalho em Minas Gerais, como o seu primo dr. Hugo Werneck”. Até aí, muito pouco. Alguma coisa sobre a participação política dele e nada sobre o espiritismo. É que não havia tempo na ocasião para as devidas ampliações, pois, quando conversamos em seu apartamento no Rio de Janeiro, tínhamos tanta coisa a dizer, mais ele do que eu, que a maior parte do tempo era gasta com informações assim, breves, porém muito, muito variadas. Ademais, Francisco estava então com cerca de 75 anos de idade e vivia a dura experiência de mais de uma década a cuidar da esposa enferma e presa ao leito, onde faleceu algum tempo depois. Ainda assim, sua conversa era tão ágil quanto seu raciocínio lúcido. Pois vamos lá.
Sobre a vida política de Américo Werneck, o tio, faço um resumo, já que bom material há hoje disponível na Internet, como neste e em outros endereços virtuais. Américo Werneck teve uma vida política intensa desde cedo, defendia ideias abolicionistas e republicanas, nascera em 1855 e era filho de abastados fazendeiros do interior do estado do Rio de Janeiro. Além de secretário de governo em Minas Gerais e prefeito de Belo Horizonte por um curto período, deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, sua vida política mais intensa vai se concentrar no sul do estado mineiro, onde também se torna fazendeiro e vai ser o grande batalhador pela implantação uma das principais estâncias hidrominerais da região, tornando-se o responsável pelo desenvolvimento de Lambari, então chamada Águas Virtuosas do Lambary, onde quase tudo o que ocorreu em termos de progresso e conquistas se deve a ele. Isso é, inclusive, tema de trabalho acadêmico, como este.
É naquela estância nome da principal rua, de um museu, possui um busto (foto) e outros destaques mais. Além disso, seu nome está, também, a designar diversos logradouros em cidades e capitais estaduais do Brasil, como é exemplo a própria capital mineira.
Como curiosidade, assinale-se que Américo Werneck teve por alguns anos uma contenda jurídica com o governo de Minas Gerais por conta de conflitos gerados pelo não cumprimento do contrato de arrendamento para exploração da Estância de Águas Virtuosas, por 90 anos, firmado por aquele governo e a prefeitura de Lambari, sob a gestão de Werneck, resolvendo este desfazer tal contrato. Para encurtar a pendenga jurídica, entenderam as partes fazer um acordo por arbitragem, por sugestão do governo mineiro. No entanto, este próprio governo, em virtude de ter de arcar com boa quantia financeira a favor de Lambari, decidiu contestar na justiça o acordo e para tanto contratou ninguém menos do que o famoso advogado Rui Barbosa. Nem assim conseguiu sucesso, sendo esta conhecida como uma das poucas derrotas de Rui. O fato ficou conhecido como a Questão Minas X Werneck.
Quanto à sua condição de espírita, ele mesmo nos conta no primeiro de uma série de 4 livros em que a doutrina espírita é o tema. E esse primeiro livro é exatamente o que aqui abordo – Um punhado de verdades. Eis como o autor esclarece: “…a minha obra se integralizou em quatro volumes, sob o título geral: “O Espiritismo perante a ciência” […] No primeiro volume – Um punhado de verdades – encaro a questão sob o aspecto político, jurídico, social e religioso. No segundo – Através de Lombroso – exponho os estudos do grande psiquiatra; no terceiro sob o título – No campo das hipóteses – analiso as teorias de Sage e outros, e no último apresento as minhas próprias experiências realizadas com o médium José de Araújo”.
Informações dão conta de que este último livro não chegou a ser publicado. Mas foi isso que ele tanto desejou, pois queria dizer do espiritismo não apenas com a convicção filosófica, que demonstra não deixar a desejar, mas possuidor também de provas materiais, como homem de ciências. Uma vez não logrando provisoriamente êxito aí, especialmente por não haver encontrado então um médium de condições indiscutíveis para os fenômenos necessários, não perdeu tempo e pôs-se a analisar com acuidade as obras de quantos lhe eram admirados, como os estudiosos e pesquisadores já citados. Porém, a sua hora chegaria, como se verá mais à frente.
No museu que leva seu nome, em Lambari, não consta nenhum exemplar desse último livro, mas de Um punhado de verdades há um único exemplar obtido em doação. O político de participação intensa, porém, teve uma atividade literária considerável, também, pois assina romances, livros de cunho jurídicos, tributários, financeiros, transportes etc. Assim como sua atuação tardia de espírita está hoje esquecida, a sua obra literária seguiu igual caminho e os reconhecidos intelectuais Eugênio Werneck e Nelson de Werneck Sodré são testemunhas disso, conforme se observa no texto a seguir, extraído daqui. Antecipe-se, porém, que as raízes familiares desses três personagens de mesmo sobrenome Werneck não estão devidamente esclarecidas, podendo-se presumir que os três têm como fonte a mesma família de origem alemã que chegou ao Brasil ainda no século XVIII.
“A Antologia Brasileira, de Eugênio Werneck, cuja primeira edição foi publicada em 1900, como parte da comemoração pelo quarto centenário do Brasil, foi um dos livros didáticos para ensino de literatura brasileira mais populares de sua época, tendo atingido a 17a. edição em 1935 e a 22a. em 1942. Composta de duas partes, a primeira dedicada à prosa e a segunda à poesia, o livro pretendia introduzir à juventude brasileira trechos notáveis das obras dos mais importantes autores brasileiros, dos tempos coloniais ao fim do século XIX, sobre os mais diversos assuntos e sob as mais diversas formas literárias. Cada excerto vem precedido de uma nota biobibliográfica sobre o autor.
“Dessa obra de Eugênio Werneck consta o texto intitulado A derribada, correspondente ao capítulo XLII de Graciema. A propósito disso, diz Nélson de Werneck Sodré, na pág. 7 do primeiro volume de suas memórias de escritor, que
(…) aqui interessa justamente aquela atividade de Américo Werneck que ficou esquecida: a de escritor. Esse esquecimento é injusto, sob alguns aspectos: na obra de Américo Werneck, variada e relativamente extensa, há coisas que mereciam ser guardadas. Uma só de suas páginas, entretanto, foi salva do esquecimento: na antologia da língua portuguesa organizada pelo Prof. Eugênio Werneck, e que rivaliza, ainda hoje, com aquela organizada por Carlos de Laet e Fausto Barreto, na preferência dos mestres do ensino médio — figura trecho do romance Graciema, de Américo Werneck, descrevendo a derrubada. É, realmente, aquilo que se convencionou conhecer como página antológica (…)”
Um punhado de verdades é um livro ao mesmo tempo altamente crítico de inúmeras questões culturais, sociais e políticas, mas também de conteúdo espírita. Ao incluir um capítulo específico sobre o espiritismo e ter os princípios doutrinários imbricados nos diversos assuntos posteriores, Werneck não só revela uma visão ampla da doutrina como faz uso daquilo que é seu bem mais precioso, mencionado no pensamento expresso na abertura deste artigo, qual seja, a liberdade individual da qual não abre mão sob hipótese nenhuma, e com a qual assume as rédeas de sua conduta de vida consciente de que é o melhor que pode obter dos ensinos deixados por Kardec. Este valor supremo dado com notável desassombro à liberdade e esse assumir das consequências do livre-arbítrio o coloca em condições de sentir-se consciente das próprias responsabilidades perante o destino, mas também o revela destemido e corajoso para enfrentar os temas mais delicados ainda quando atingia as portas da velhice, tendo então ultrapassado os 70 anos de idade.
Um punhado de verdades não é só espiritismo, mas é tudo quanto o espiritismo proporciona, sendo então mais do que espiritismo se por espiritismo pensamos com o acanhamento do ser passivo e volátil diante das obrigações para com o mundo. Werneck abre este seu livro com um capítulo de título “O espiritismo” e tem como obrigação primeira fazer uma profissão de fé, para a seguir traçar uma linha que começa no homem que assumiu o materialismo quase que implícito no meio científico em que se desenvolveu – e esta foi sua opção primeira – até chegar ao conhecimento dos escritos de Kardec, que fez questão de estudar e demonstra haver haurido assim uma visão doutrinária muito clara, firme, que se expandiu no estudo com as grandes inteligências da época que trilharam caminhos semelhantes, como Lombroso, Crookes, Flammarion, Richet e outros. Por isso, esse primeiro capítulo é também onde se sente forte para, de modo espontâneo, fazer uma crítica segura a Roustaing e sua doutrina, e onde também revela um desejo de fortalecer sua adoção do espiritismo com experiências mediúnicas que, pensava, convicto, coroariam sua opção filosófica pelos ensinos de Kardec. Quando, no segundo subitem do primeiro capítulo escreve que “O espiritismo não é religião” está diretamente apontando para Roustaing, pois abre o primeiro parágrafo com esta segura opinião: “J. B. Roustaing meteu-se a fazer do espiritismo uma Igreja, em oposição aos princípios dessa filosofia e à influência que ela se destina a exercer na evolução do sentimento contemporâneo”. Sua visão aqui como de resto em todo o conteúdo doutrinário tem um pé firmado na racionalidade científica, de modo que em dado instante, após ter passado por aspectos contraditórios de Roustaing, afirma: “Ele não demonstra coisa alguma; excepciona, dogmatiza. Invejoso de Allan Kardec, e sem possuir o seu critério filosófico, ele ambicionou a glória de lhe corrigir a obra, dando-se afoitamente como enviado de Deus”. O capítulo assim se desenrola e termina com uma contundente crítica aos diversos detratores do espiritismo, postura somente encontrada em alguém que adquiriu seguro entendimento da proposta e das bases experimentais da doutrina.
Mas a ideia de uma liberdade individual que deu início ao livro vai prosseguir até o seu termo, levando-o – não se pode perder de vista esse detalhe – a tratar de temas como o Direito, a Saúde, a Cultura, a Raça, a Política e a Democracia, e a tudo isso permear com críticas contundentes a todos esses campos quando o momento se mostra oportuno – e críticas seguras, feitas por alguém que por muitas décadas militou na política em Minas Gerais e no Rio de Janeiro – com revelações corajosas, que raros homens públicos conseguiriam fazer. Mas o fim de tudo e onde de fato estava o seu objetivo maior era defender a função mediúnica cada dia mais atacada, de modo explícito por homens de ciência, sábios da racionalidade, mas ignorantes da espiritualidade, e por representantes da Igreja, dedicados a manter o domínio milenar e nocivo sobre o povo.
Requisitava Werneck para os médiuns em geral e os de cura em especial o direito legal de exercerem suas atividades caritativas, desinteressadas, sem cobrança de espécie alguma, ao mesmo tempo que, complementarmente, requeria para o homem comum a liberdade de escolher com quem quer se relacionar para tratar da saúde, pois era isto para ele um direito inalienável. Dizia que os médiuns receitistas não receitavam de moto próprio, senão por iniciativa dos espíritos e que se as pessoas os procuravam espontaneamente não poderiam ser cerceadas por leis absurdas; mais, afirmava que independentemente de leis cerceadoras dessa liberdade os interessados e os descrentes dos processos médicos legais continuariam a procurar, como de resto o faziam desde tempos imemoriais e o fazem ainda nos dias de hoje em que – afirme-se – as leis contra eles se tornaram ainda mais endurecidas. Reafirmava Werneck que quando a saúde do indivíduo está em risco e a solução não vem pelos médicos, seja porque não as apontam, seja porque o indivíduo não possui recursos financeiros para tal, nada o detém se decide ir ao encontro de um médium ou pessoa semelhante, vencendo as diversas barreiras que se colocam à sua frente, sejam barreiras legais, sejam culturais e até mesmo religiosas.
Américo Werneck não logrou deixar publicado seu quarto e último livro da série, conforme anunciou, mas suas incursões pela mediunidade prática ocorreram e disso é testemunha alguns textos ainda hoje disponíveis. No campo dos fenômenos físicos, teve ele a incrível oportunidade de ver diante de si, entre outras, a figura de sua jovem primeira esposa, desencarnada aos 25 anos de idade, em mais de uma oportunidade, concretizando, assim, o seu antigo desejo de experimentar nesse campo do fenômeno mediúnico. Como fizera questão de deixar claro, entendia que nessas experiências fecharia o circuito dos estudos espíritas. Não desejava ver e conversar com espíritos materializados como forma de comprovar a crença, nem para firmar ainda mais suas convicções quanto aos valores da doutrina. Não entraria em aventuras para colimar esse fim, mas tão-somente se encontrasse as condições necessárias, ideais, confiáveis, e uma dessas condições seria poder dispor de um médium à altura, tanto em capacidade mediúnica quanto em comportamento ético. E encontrou nos últimos 10 a 15 anos de sua vida, depois de voltar a residir no Rio de Janeiro. Se não há registros de Werneck que possam ser compulsados sobre essa fase experimental de sua vida, temos o relato de Leal de Souza, cujo nome completo era Antonio Eliezer Leal de Souza, jornalista e crítico literário, considerado um parnasiano e também o primeiro intelectual a escrever no Brasil sobre a Umbanda. Ele, depois de morto (1948), escreveu por Chico Xavier o poema Morte e Encarnação. O seu livro primeiro, No mundo dos espíritos, surgiu de anos de estudos e reportagens publicadas no jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro. A sua coluna do dia 16 de novembro de 1932 nesse jornal traz um relato muito interessante sobre materializações que presenciou diretamente em reunião dirigida por Américo Werneck, relato este que depois foi compor um livro seu, no capítulo Materializações.
Uma reunião de efeitos físicos
“O ilustre médico dr. Oliveira Botelho, ministro da Fazenda no último governo constitucional, viu operar-se diante de seus olhos a ressurreição transitória de uma de suas filhas, por ele conduzida ao cemitério, sendo também consagradas pelo êxito pleno outras das experiências realizadas sob fiscalização rigorosa pelo sábio engenheiro dr. Américo Werneck e algumas das quais assisti.
O dr. Werneck mandara preparar instalações adequadas à fiscalização, gradeando-as a ferro. Coube-me, de uma feita, a incumbência de exercê-la. Abri e fechei a única porta de acesso ao recanto, conservando comigo a chave; introduzi na sala as outras pessoas convidadas para a reunião; examinei o camarim destinado à retenção do médium, a mesa e as seis cadeiras existentes na sala.
Para não dar caráter religioso à reunião, o dr. Werneck não fez a prece inicial das sessões espíritas, limitando-se a pedir aos crentes que fizessem breve oração mental. Entraram no recinto sob a minha fiscalização seis pessoas além do médium, e meia hora depois éramos doze, sendo que as seis que eu não introduzi moveram-se através de sombras hercúleas, falando entre si. Duas delas, em seguida, assumiram proporções normais de estatura. Perguntou-lhes o diretor dos trabalhos se lhes seria possível fazer ressoar o teto da sala e, imediatamente, por cima de nossas cabeças, estrondearam golpes fortes, repetindo-se por muitas vezes. Aproximando-se do lugar onde eu me achava, observou uma das sombras de contorno humano:
– Está com medo que lhe roube a chave?
Eu apertava de fato por dentro do bolso a chave da porta da sala de experiências.
Dissipados esses fantasmas, o fenômeno principal da noite. Uma pulverização incessante de luar cintilou na escuridão da sala, traçando, à medida que se condensava, em desenho nítido uma figura humana, até que se transformou aos nossos olhos numa linda mulher moça, de longos cabelos soltos, vestindo um roupão branco rendado. Era, disseram-nos, a esposa do dr. Werneck falecida aos 25 anos, e não deixava de ser emocionante a sua aparência, na plenitude da mocidade ao lado do esposo septuagenário.
– A Judith tinha um caminhar embalado, disse um dos assistentes, habituado às manifestações desse espírito.
– Judith, ande um pouco, pediu o engenheiro.
E, num círculo de luz espiritual que a tornava plenamente visível, a ressurreta percorreu a ampla extensão do recinto, agitando em ondulação a brancura de suas vestes e como eu era um dos presentes que não assistira as suas materializações anteriores, acercou-se de mim.
– Veja. Será a mão de uma morta? – e tocou-me na mão.
Era tépida. Louvei as rendas de seu vestido e ela, erguendo o braço, em curva graciosa, estendeu-as, as da manga, sobre as minhas mãos:
– Pode ver. São antigas.
Ousei insinuar:
– Como seriam as sandálias no seu tempo…
– No meu tempo eram chinelas, respondeu, e caminhando até à mesa existente no fundo da sala, voltou com uma pequena bilha e um copo.
Ofereceu e serviu água a todos os assistentes, trocando frases com eles e depois de cumprimentar-nos, avisando que se retirava, repôs a bilha e o copo na mesa, e começou a esbater-se, desfazendo-se, até desaparecer.
Também no Estado do Pará, em Belém, antes das desta capital, verificaram-se e foram até oficialmente constatadas em atos assinados pelo presidente e pelo chefe de polícia do Estado, admiráveis materializações alcançadas com o médium Anna Prado. Testemunhou-as também e descreveu-as o sr. M. Quintão, que fez uma viagem ao Norte para observá-las e viu um espírito materializado modelar a mão em cera de carnaúba quente.
Os guias que trabalham com o dr. Werneck, disse-me este, eram enviados de João, o espírito que trabalhava com d. Anna Prado. Deve, pois, haver analogia entre as materializações desta capital e as de Belém, que o sr. M. Quintão assim descreve:
“A ansiedade do auditório era grande, profundo o silêncio quando alguém exclamou: – Ei-lo, o fantasma, a desenhar-se no canto da câmara escura, à direita. Não o vê? Não o víamos… Olhe agora, ali, no outro canto, junto à parede.
“De fato, no ponto indicado, à nossa frente, oscilava como que um lençol, uma massa branca, que se foi condensando, e resvalando, cosida à parede – não havia três metros da câmara ao lugar em que me encontrava – chegando ao ponto em que estavam os dois baldes já de nós conhecidos e mais uma garrafa com aguarrás, destinada a temperar a cera para a confecção dos moldes e flores.
O fantasma sempre mais sólido instala-se bem perto, estaca defronte do balde. Fixamo-lo à vontade: era um homem moreno, orçando pelos seus 40 anos, trazendo à cabeça um capacete branco. Pelas mangas largas de amplo roupão também branco, saíam-lhe as mãos trigueiras e grandes. Os pés não lhe divisamos.
“Chegou, cortejou, palpou os baldes, ergueu com mão direita o que continha a cera quente, e com a esquerda, elevando a garrafa de aguarrás à altura do rosto, como que dosou o ingrediente. Depois, virando o balde, como para confirmar o seu feito, arrastou-o no chão, produzindo o efeito característico, material. Os seus gestos e movimentos eram perfeitos, naturais, humaníssimos, como se ali estivesse uma criatura humana. Isto posto, afastou-se e conservou-se a um canto da câmara escura, enquanto do outro canto surgia uma menina de uns treze anos, que dá o nome de Annita.
Assim, tivemos uma dupla manifestação. Visíveis ao mesmo tempo, João, um homem e Annita – uma quase criança, enquanto ouvíamos interativamente o médium suspirar na câmara escura” – e o sr. M. Quintão largamente descreve as atitudes e a ação dos fantasmas, nessa e em outras reuniões.
De algumas das manifestações verificadas em Belém, tiveram-se fotografias mediante uma fórmula especial, constante do livro “O trabalho dos mortos”, do sr. Nogueira de Faria”.
Nota: texto extraído diretamente do jornal Diário de Notícias, 16/11/1932, Rio de Janeiro, reportagem de Leal de Souza. Posteriormente apareceu no livro O espiritismo, a magia e as sete linhas de Umbanda, cap. VI, Materialização. A primeira edição foi publicada em 1933 e pode ser obtida gratuitamente pela Internet, tomando-se cuidado, porém, com os erros gramaticais ou de digitação ali cometidos.
O que tem a ver entre si estes três personagens da história brasileira?
ARNALDO VIEIRA DE CARVALHO, HORÁCIO DE CARVALHO E CAIRBAR SCHUTEL
Nada os ligaria, em princípio, não fosse um detalhe: Arnaldo Vieira de Carvalho teria dado duas mensagens dias após sua desencarnação e foram ambas recebidas no círculo mediúnico de Cairbar Schutel, em Matão. E Horácio de Carvalho era amigo de Arnaldo, conhecia Cairbar e estudava o hipnotismo e o espiritismo. Isso tudo os uniu numa apreciação crítica das mensagens atribuídas a Arnaldo que o Horácio fez e encaminhou, em formato de livro, a Cairbar Schutel. Quase 100 anos depois podemos retomar o fato como uma parte importante da história do espiritismo no Brasil.
ESPIRITISMO. Análise de duas mensagens atribuídas a Arnaldo Vieira de Carvalho – livro de exemplar único, em escrita manual, datado de 1920, de autoria de Horácio de Carvalho, dedicado a Cairbar Schutel com a seguinte mensagem: “Ao prezado amigo e ilustre jornalista espírita, homenagem de Horácio de Carvalho”. Contém a análise, feita por Horácio, de duas mensagens recebidas mediunicamente no grupo de Cairbar Schutel em Matão, assinadas por Arnaldo Vieira de Carvalho, a primeira delas dois dias após a desencarnação do conhecido médico em São Paulo, e a segunda sete dias após. Foi o próprio Cairbar quem as enviou a Horácio, mas é preciso dizer que este não tinha nenhum parentesco com Arnaldo, sendo tão somente seu amigo antigo, apesar do sobrenome igual. No entanto, Horácio era conhecedor do espiritismo e acompanhava o que se passava tanto no Brasil quanto na Europa acerca do hipnotismo e da doutrina estruturada por Kardec. Além disso, era jornalista, poeta e uma voz influente da intelectualidade radicada na capital paulista, além de amigo do celebrado médico por cerca de 30 anos. Sem dúvida, foi por todas essas características que Cairbar desejou submeter-lhe as duas mensagens, a fim de obter um parecer seguro sobre a origem delas, bem como das possibilidades de haverem sido, de fato, escritas pelo autor mencionado. Arnaldo Vieira de Carvalho, médico influente e de grande conceito, que hoje dá nome a uma das avenidas mais importantes da capital paulista, faleceu no dia 5 de junho de 1920 e era materialista. Por incrível que possa parecer, a causa da morte precoce de Arnaldo, pois se deu quando tinha apenas 53 anos de idade, teve início em uma simples dor de garganta. Foi ele o fundador da Escola de Medicina e seu diretor, como também da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e de outras iniciativas semelhantes. Nasceu na cidade de Santos.
A história é a seguinte: assim que a notícia da morte de Arnaldo Vieira de Carvalho chegou a Matão, Cairbar teve a ideia de evocar o espírito do médico na busca de informações sobre suas condições espirituais, bem como desejando prestar-lhe algum tipo de apoio espiritual caso fosse necessário. Dessa forma, dois dias após, em 7 de junho de 1920, teria um médium do grupo recebido a primeira de duas mensagens assinadas pelo recém-falecido. Ato seguinte, por carta, Cairbar envia o original da mensagem a Horácio de Carvalho e sem declinar o nome do médium, informa que este não conhecia o médico senão de nome. Horácio recebe a mensagem, lê, copía e envia o original de volta a Cairbar, com um cartão em que solicita informações sobre o médium a fim de poder se orientar na análise. Desejava saber das condições intelectuais do médium, entre outras coisas e dizia que estava certo de que se era de fato o Arnaldo Vieira de Carvalho o autor da mensagem, ele voltaria em breve e “faria coisa melhor”. Ao final, solicitava que tais informações não chegassem ao médium para não o influenciar no caso de vir a receber outras mensagens do mesmo espírito.
Carca de 5 dias depois, em carta datada de 12 de junho, Cairbar envia a segunda mensagem a Horácio, sem nada esclarecer a respeito do médium. No dia 18 de junho, Horácio prepara a carta a Cairbar com a análise das duas mensagens baseada em 4 partes: “dificuldades de identificação nas condições em que me foi ela proposta; análise gráfica das duas mensagens; análise psíquica das mesmas; conclusão”. É um trabalho sério e interessante pelo método aplicado, feito por alguém que tinha bom conhecimento do assunto. No dia 21 de junho, quando a análise já havia sido praticamente concluída, Horácio recebe de Cairbar as notícias sobre o médium, que havia anteriormente solicitado, contendo estas explicações: “O médium tem alguma instrução, conhece regularmente o espiritismo, sabe um pouco de medicina, só tem relações sociais limitadas ao meio espírita e que não conhece o morto nem mesmo através de seus escritos”. Primeiro, Horácio lamenta que não tenha sido esclarecido se o médium tivera conhecimento da resposta que enviara a Cairbar, pois não desejava que isso ocorresse para não o influenciar, conforme alertara. Após, desconfiado, diz: “Há em mim um estranho pensamento que insiste agora em me afirmar que esse médium é o senhor (o grifo é do autor). Se eu tivesse certeza disso não continuaria com essa análise, de receio de lhe ser desagradável”. Imagino que Cairbar tenha dado um leve sorriso ao receber a análise caso o médium fosse de fato ele mesmo e a possibilidade de que isso seja verdade é bastante grande, afinal, como farmacêutico prático Cairbar haveria de ter conhecimentos razoáveis de medicina e não se sabe de ninguém de seu círculo mediúnico que tivesse tais conhecimentos. Ao expor sua desconfiança, Horácio demonstra que conhecia Cairbar, bem como suas atividades profissionais e que o respeitava muito.
Na primeira parte da análise, Horácio assinala nas duas mensagens os trechos em que a personalidade do autor espiritual poderia ser identificada, comparando-as com seu estilo enquanto vivo. Na segunda, sua abordagem centra-se na compreensão da mente do autor espiritual e de quando estava no corpo físico, identificando algumas passagens que poderiam confirmar que era ele, de fato, mas apontando outras que contrariam essa hipótese ou que conduzem à conclusão de que o médium poderia facilmente haver escrito de si mesmo, ou seja, animicamente. Na terceira, fala do homem e suas crenças, seus limites culturais em que se submete à ciência materialista e compara tudo isso com o que está escrito nas duas mensagens, já deixando claro aí a sua opinião de que nada nelas poderia ser utilizado a favor da confirmação de que o seu autor fora de fato Arnaldo Vieira de Carvalho. Finalmente, na conclusão junta outros dados depois de esclarecer que “faltam elementos para que se possa afirmar que as duas mensagens tenham vindo da individualidade do Arnaldo”.
Destaque-se que Horácio é extremamente cuidadoso nessas conclusões, como de resto em todo o texto. É franco sem ser rústico. Vejamos este trecho ainda da conclusão: “Assim sendo, nem temos o direito de, feridos em nosso orgulho, apelar para um caso de mistificação. Não! – De boa-fé, distraído, todo entregue à atenção expectante, o médium foi imperceptivelmente iludido por si mesmo, isto é, pelo seu inconsciente, pela sua secreta e profunda consciência, a atuar fora e independentemente da sua consciência normal, de uma consciência que preside a todos os momentos da nossa vida”.
Horácio lamenta que o autor espiritual não apresente nenhum indício de suas preocupações de há pouco, quando ainda residia no corpo físico, e a respeito delas não oferecesse nada, absolutamente nada. Eis como se refere: “Por que não disse ele duas palavras sobre o Instituto do Radium, por cuja fundação se batia na imprensa quase que diariamente? Por que procedeu ele da mesma forma em relação à Faculdade de Medicina, de que era diretor e de que foi um dos fundadores?”. Horácio tinha diante de si razões fortes a justificar os questionamentos, afinal, as duas mensagens surgiram de circunstâncias distintas: a primeira foi resultado de uma evocação feita e a segunda teria ocorrido espontaneamente. Nesta última, preferencialmente, poderia dar indícios, como os assinalados, de sua personalidade ainda preocupada com os acontecimentos e as aspirações que o envolviam não muitos dias atrás, que deveriam continuar presentes em sua mente recém liberta da matéria densa.
Por interessante e mesmo correndo o risco de desagradar ao autor, se é que ele ainda está preocupado com este livrinho inédito, devo referir-me ao fato de que ao final da conclusão ele solicita a Cairbar para não o publicar, dando por desculpa o receio de expor o amigo recém-desencarnado ao ridículo com as corrigendas que fez sobre o estilo literário dele quando vivo, o que poderia desagradar a familiares e amigos. Pede mais, que Cairbar não veja nas suas palavras nada contra o espiritismo, uma vez que aprendeu com a doutrina a ter cuidado com tudo o que vem em seu nome.
A última menção feita por Horácio de Carvalho consta de uma nota post-scriptum em que diz: “segue conjuntamente a comunicação do seu primo, sobre a qual nada posso dizer nem a favor nem contra”. Não está claro quem é o primo, se de Cairbar ou de Arnaldo. O texto original está em minhas mãos, muito desgastado pelo tempo decorrido, quase 100 anos, cuja assinatura não me é possível identificar. Trata-se, porém, de uma mensagem de conteúdo não destinado propriamente à identificação, senão, talvez, para Cairbar ou alguém do seu círculo e por isso não tenha interessado a Horácio Carvalho.