A poeira, o tempo e o momento

RESENHA

Livro: Leopoldo Cirne

          Vida e propostas por um mundo melhor

Autor: Antonio Cesar Perri de Carvalho

Formato: 23cm X 16cm, Capa cores, miolo P/B

194 pp.

Edição: CCDPE-MC / Cocriação

 A trova antiga revela: o tempo não me dá tempo/ de bem o tempo fruir/ e nesta falta de tempo/ não vejo o tempo fugir.

As motivações humanas para as ações cotidianas são, deveras, fruto do contexto, efeitos do momento e da identidade que se revela às vezes de modo inesperado, estando o ser frente ao fenômeno que aprofunda sua condição psicológica e o leva a se ver no outro.

Para o livro em epígrafe, cabe esse raciocínio se feita a pergunta: o que levou o autor de Leopoldo Cirne, livro recém-lançado em São Paulo, a se debruçar sobre a vida de uma das muitas figuras interessantes da história do espiritismo brasileiro, envoltas na poeira do tempo pela distância da duração?

Se o leitor responder que a resposta está no subtítulo Vida e propostas para um mundo melhor, lamento dizer que se enganou, pois, para que este faça tal sentido será preciso subvertê-lo a ponto de levá-lo a uma insignificância mortal e depois ressuscitá-lo antes que se transforme em poeira definitiva.

Vamos lá.

O livro é bom e revelador para ambas as partes, autor e biografado. E, tão importante quanto: para o espírita que tenha o mínimo de interesse pela história, vendo nela um fator fundamental para (in)compreender o mundo.

Se quem fala do outro, fala de si, Cesar Perri se revela ao revelar parte da personalidade de Leopoldo Cirne. Até aqui, nenhuma surpresa. Se elas há, e há, vamos à sua cata, feito um jornalista preocupado com os fatos que valem notícia, oferecendo-a sem demora, como num lide já quase em desuso neste tempo de inteligências artificiais.

Primeira constatação: Cesar foi a mais recente vítima de uma política institucional da FEB, vendo seu desejo de prosseguir no cargo de presidente se esfacelar de modo contundente e duramente inesperado. Em instantes assim, a dor alcança a mente e se soma ao sentimento de fracasso, acúmulo justo de mágoas, pondo em risco o ideal de um mundo melhor. Mesmo porque, a política que o vitimou tem por pano de fundo a crença de base sobre os valores defendidos por um francês que se tornou o primeiro grande espinho doutrinário na vida do fundador do espiritismo, Allan Kardec. O nome do francês: João Batista Roustaing.

Segunda constatação: o biografado, Carlos Cirne, teria sido a primeira vítima, um século antes, em 1.914. Cesar revela que tomou conhecimento do livro do Cirne, que serve de motivação para este seu presente trabalho, livro intitulado Anticristo, senhor do mundo, antes mesmo do golpe político que sofreu. Esse livro é o coração desta biografia e libelo final do Cirne, antes que a morte física o alcançasse.

As circunstâncias que ligam as duas eleições separadas por algo próximo de 100 anos são as mesmas: Cirne era então presidente da FEB, estava vivendo o período de novas eleições, tinha por certo que deveria ser reeleito, mas o conturbado pleito terminou como um golpe nas pretensões do candidato. Traições, campanha sórdida, mentiras, maledicências, houve de tudo.

O pano de fundo era o mesmo 100 anos depois: a crença roustainguista. Com uma diferença entre os dois candidatos: embora sem se pronunciar publicamente, Cesar Perri não endossava a doutrina de Roustaing, enquanto Leopoldo Cirne a defendia. Então, o que motivou a queda de Cirne? Exatamente, o enfraquecimento nele da crença em Roustaing, junto à sua atitude de não a colocar em primeiro lugar na sua atuação presidencial, como era propósito indispensável da FEB. Cirne continuou acreditando nos valores roustainguistas, mas não tanto. Terminou sua vida aceitando a tese do corpo fluídico de Jesus, corpo tão combatido por Kardec.

Esta biografia e o livro Anticristo inevitavelmente se somam, dando a entender que este Leopoldo Cirne possa ser o libelo final do autor, Cesar Perri. Os laços entre os dois, agora vistos como personagens de um enredo semelhante, surgem atados com a fita da proposta para um mundo melhor. E para ambos, o mesmo mundo, ou seja, o movimento espírita brasileiro. As duas derrotas eleitorais, se em contextos diferentes, têm, pois, profundas ligações – os dois saíram muito machucados – e, sem nenhuma surpresa também, indicam que tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes, lá na velha instituição.

Se visto, então, como libelo final, este Leopoldo Cirne deve ser considerado como continuidade ou uma extensão do livro União dos espíritas. Para onde vamos? que Cesar Perri escreveu pouco depois de deixar a presidência da FEB.

Outras constatações não menos interessantes

1) Cesar Perri reproduz informação, dada por Luciano Klein, biógrafo de Bezerra, de como surgiu o epíteto atribuído a Bezerra de Menezes, que o qualificou como Kardec brasileiro. A expressão teria sido empregada por primeira vez numa festividade, por um indivíduo de pouca expressão pública, quase que de modo aleatório. Teria sido em 1895, com Bezerra ainda vivo. O epíteto acabou por se espalhar medianamente, escondendo um detalhe fundamental: a sua impropriedade. Kardec, racional, objetivo e claro, posicional quanto ao espiritismo e sua significação de obra feita com apoio na ciência e na filosofia; Bezerra, religioso, místico e fortemente influenciado pelas ideias católicas de João Batista Roustaing. Não há dúvida mais de que o roustainguismo aportou na FEB pelas mãos decididas de Bezerra de Menezes. Agora se sabe que prosseguiu pelas mãos de Leopoldo Cirne.

2) A considerar o relato de Cesar Perri, que se baseia em Canuto de Abreu, Carlos Cirne teria tomado contato com o espiritismo em 1894. Três anos depois, apenas, já estava na equipe diretiva da FEB, trabalhando ao lado de Bezerra de Menezes, e logo escrevia artigos doutrinários para o Reformador, com forte teor roustainguista. E mais curioso ainda: em 1895, um ano depois de assumir o espiritismo, Cirne teria participado do grupo que insistiu com Bezerra de Menezes para assumir a presidência da FEB, então em estado de penúria. E outra: em 1898, mais um ano depois, assumia a vice-presidência da FEB. Por fim, tornou-se presidente após o desenlace de Bezerra em 1900.

3) Foi na presidência de Cirne que se inaugurou a era dos presidentes de longa duração na FEB, pois ali permaneceu ele no cargo até a assembleia fatídica de 1914, que se realizou um congresso para comemorar o centenário de nascimento de Allan Kardec. Evento de pouca representatividade coletiva em termos de espiritismo no Brasil, realizado em 1904, no qual foi feito aprovar um documento que, de modo acintoso, eleva o malfadado livro Os quatro evangelhos, de João Batista Roustaing, à altura e importância de O evangelho segundo o espiritismo, de Allan Kardec. Este documento referido por Cesar Perri, denominado Bases da organização espírita, recebe do autor tal destaque que é perfeitamente possível entender que Perri o tem como uma espécie da prévia do outro documento chamado de Pacto Áureo, aprovado, como se sabe, teocraticamente, em 1949, na mesma FEB, ou seja, 35 anos depois.

4) Digno de registro também o fato de Cesar Perri reafirmar, agora pela pena de Carlos Cirne, que Bezerra de Menezes assumiu, mesmo, o cargo de presidente da FEB em 1895 com poderes totais, discricionários. O curioso é que Luciano Klein, que assina o prefácio deste novo livro do Cesar, resiste em acreditar que Bezerra tenha sido um presidente discricionário, como o registrou na época do lançamento da biografia sobre esta notável personalidade do espiritismo brasileiro.

5) Recomendo ao leitor que deseja porventura ampliar suas fontes sobre o assunto a ler o nosso livro Ponto final. O reencontro do espiritismo com Allan Kardec, publicação da Editora EME, Capivari, SP, 2020. E, ainda, o trabalho Nó de marinheiro, no endereço: https://expedienteonline.com.br/?s=n%C3%B3+de+marinheiro.

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