Categoria: Espiritismo

O aporte da alteridade como valor e referência

A dinâmica interna do Espiritismo tende a incorporar naturalmente os avanços do conhecimento, dentro de um movimento que, de ordinário, não espera por decisões de ordem moral para se realizar. Isso pode parecer a alguns um contra-senso na medida que a realidade da doutrina contrapõe indivíduos e estabelece conflitos para aquilo que pode, deve ou é aceito como coerente frente aos postulados balizadores do saber espírita, ou seja, os seus princípios básicos. Mas a idéia de aporte natural dos novos conhecimentos possui sua lógica, independentemente e para além dos conflitos, e funciona em paralelo a esses conflitos. Ou seja, em meio às disputas pela adoção dos novos saberes se desenvolve um movimento que produz aportes enriquecedores e proporciona a que a doutrina continue fazendo sentido. O lugar aonde esse movimento se processa é a práxis do cotidiano, em que os indivíduos não só se inter-relacionam como de fato estão em contato com informações de todo tipo e ordem. Os aportes se dão de forma natural e espontânea na mesma medida e ordem em que são, também, combatidos pelo pensamento ortodoxo, ou seja, a ortodoxia que combate o novo também valida a sua discussão.
Ao aceitar esse tipo de raciocínio se poderia concluir que os embates entre o novo e o velho estariam localizados no terreno da irracionalidade, pois o novo não depende contemporaneamente do juízo da ortodoxia. Em parte, isso é certo. Inundados pela informação cotidiana, os indivíduos em sua diversidade tendem a conviver com o conflito gerado pelas próprias informações, dentro de um espectro de convivência em escala da aceitação pura até a o combate total, numa graduação quase infinita. Assim, quando o novo recebe a aprovação daqueles que estão no trecho da escala compreendido entre o seu início e mais ou menos o seu meio, a reprovação dos demais tem pouca ou nenhuma força contra o aporte. Este se dá por uma questão de esgotamento de forças contrárias ou sua pouca capacidade de impedir que informações vistas como importantes sejam adotadas como verdades. Por outro lado, é preciso convir que com a racionalidade científica trabalhando em regime de permanente fragmentação e de submissão parcial à sociedade do espetáculo, a informação nova estará sempre plena de contradições e conflitos, sendo, portanto, natural que se estabeleça uma divisão e oponha apoiadores e combatedores. O que fica claro é que, independentemente do embate que se estabelece e da existência da parcela que lhe nega veracidade (completa ou parcialmente) a simples existência de uma outra parcela que lhe confere lógica é suficiente para que o aporte ocorra, mesmo que entre estes existam aqueles cuja aceitação do novo não passa por outro critério de verdade que não seja a da aparência de verdade contida no novo. Explica-se assim, em parte, a dinâmica interna do Espiritismo enquanto movimento permanentemente relacionado com a produção do conhecimento.
Dito desta forma fica esclarecido porque consideramos que o aporte da alteridade, que se concretiza diariamente, já foi realizado pela parcela dos espíritas que lhe confere valor e importância, restando-lhe apenas (talvez seja esta a parte mais difícil) a tarefa do convencimento da parcela (a maior?) que não a tem na mesma medida, seja por total desconhecimento da filosofia alteritária seja por não ver sentido nesse aporte, uma vez que está convencida de que o necessário em termos éticos já se encontra presente na doutrina.
Em vista do exposto, vamos trabalhar tanto com o raciocínio do aporte concretizado quanto com a necessidade de conceituação da alteridade para fins de justificação, para então concluir com a ética alteritária, suas relações com o Espiritismo e o seu impacto na mídia de massa.
  
Conexões entre alteridade e ética espírita
  
O uso da noção de alteridade como balizadora da comunicação que se realiza pelos meios técnicos (mídia) comporta uma ampla gama de elementos de grande valor. É bem verdade que estes elementos não dizem respeito apenas ou somente à comunicação de massa, mas a todo e qualquer tipo de interação humana. Mas o trato da alteridade com vistas ao seu emprego na práxis midiática torna estes elementos fundamentais, seja por conta das reflexões que propiciam seja pelo posicionamento diferenciado em que se colocam. Por outro lado, em trabalho da natureza deste, em que se pretende abordar o valor universal da alteridade e as suas possibilidades de conexão com o saber espírita e, portanto, também com a práxis cotidiana da mídia especializada em espiritismo, será preciso buscar os pontos de contato que as duas doutrinas oferecem.
Vejamos, portanto, de forma descritiva, alguns elementos fundamentais da noção de alteridade e as reflexões que propiciam.
Em primeiro lugar será preciso fazer referência àquele que está acima de qualquer elemento: o outro. E aqui aparecem dois aspectos igualmente importantes: o outro é tanto a individualidade humana quanto a coletividade que resulta da junção de muitos outros. Como é também indispensável perceber que o outro é sentido e objetivo da mídia, independente de ser ela massiva ou seletiva. Ao tocar na questão do outro temos por interesse chamar a atenção para a idéia de que o outro é mais importante do que o eu em questões de alteridade, pois é pelo outro que o eu se realiza. Neste aspecto, desde já está claro que o outro alteritário quase nunca faz sentido quando se trata de analisar o olhar da mídia, naturalmente focado antes no eu (o eu do lucro ou da dominação) do que em qualquer outra coisa. Em geral, o olhar midiático é um olhar inverso ao olhar alteritário. Tudo o que a alteridade valoriza a mídia contraria e, por conseqüência, nega.
Senão, vejamos.
A noção alteritária estabelece que o outro é uma presença de alteridade, ou seja, é diferença, estranheza, novidade, contrariedade, infinitude, ignorância. De fato, estar na presença não só do que é diferente, mas da própria diferença implica constatar a diferença para compreendê-la a partir de um estranhamento que indaga, analisa, respeita e valoriza, ou seja, não olha o outro a partir de critérios de valor pré-existentes, mas de uma postura aberta e indagadora, à procura de descobrir valores, potenciais, desejos, sonhos e utopias elegidas pelo outro. Daí a certeza de que nesta interação alteritária e dialógica, o outro não só reafirma sua diferença como se demonstra capaz de surpreender e valorizar a individualidade que com ele interage. Com isto, o outro será sempre a possibilidade da relação solidária, do afeto em movimento, do saber que se alterna e flui nas duas direções: do eu para o outro e do outro para o eu. Sendo sempre um fluxo contínuo, a interação com o outro alteritário se mantém permanentemente distante da impaciência e da intolerância, bem como de qualquer tipo de violência e dominação.
Como se depreende de Lèvinas, o olhar alteritário supera o espelhamento, a expectativa de ver no outro o reflexo do próprio eu, para estabelecer um reconhecimento de sua importância e valor. A perspectiva que se apresenta é de um diálogo em que os atores se colocam em posição de igualdade onde o outro se torna mais importante que o eu, pois é o outro que possui a capacidade de fazer crescer o eu. No espelhamento está presente o ingrediente básico da dominação, enquanto que a relação alteritária não se submete a qualquer tipo de dominação, nem a interesses que normalmente motivam o eu e o colocam em posição de superioridade frente ao outro. Esta relação, portanto, se coloca em clima de des-inter-esse, ou seja, de desejos e intenções que permeiam e impedem a solução dos conflitos naturais às relações humanas.
A alteridade não pressupõe a inexistência de conflitos, mas a criação de condições para superação permanente deles, uma vez que a paz é sua condicionante e objetivo. Por isso, a alteridade também não pressupõe a passividade e a complacência, mas a relação que enriquece a partir da postura conscientemente assumida segundo a qual o outro é que produz a paz da qual o eu se beneficia. Os papéis se invertem. Tradicionalmente, a idéia de construção do bem é dada ao eu. Aqui é o eu que busca compreender o outro para que a paz possa ser possível. Ou seja, sem a compreensão do valor do outro não há possibilidade de qualquer clima real de construção da paz.
Já a partir dessas reflexões tem-se por oportuno tentar responder a uma indagação de ordem: em que medida a proposição da alteridade interessa ao Espiritismo enquanto valor a ser agregado à ética inerente à sua doutrina? Afora qualquer sentimento de que o Espiritismo se basta a si mesmo em questões de ética (a qual permeia o pensamento geral predominante), a ética alteritária pode ser analisada em seu ponto de contato com a noção do próximo contida na ética cristã da qual a doutrina espírita se coloca como herdeira. E esse ponto de contato permite verificar que o outro da alteridade é o próximo do Espiritismo na medida que a ética espírita estabelece que o receptor da compreensão e dos desejos do eu é o próximo. Mesmo quando a idéia de próximo traz incorporado o clímax da solidariedade e, portanto, do amor, a sua reflexão através dos pressupostos alteritários permite um acréscimo extraordinário ao alargar a visão da construção de um estado de paz e crescimento que interessa diretamente ao ser humano. Mesmo que o aporte da alteridade não signifique modificar a essência do amor presente na mensagem da ética espírita, nem sua capacidade indiscutível de contribuir para a construção de uma sociedade justa e humana, os valores alteritários se apresentam como importantes fragmentos de uma ética que caminha na mesma direção e com iguais objetivos. O acréscimo vem por conta da capacidade da filosofia alteritária de estabelecer um olhar pela racionalidade que vai ao cerne das questões fundamentais, conseguindo reunir fragmentos importantes para a constatação de que o caminho da paz e do bem não pode desconsiderá-los.
A preocupação com a diferença presente na ética da alteridade é em si mesma uma razão forte para que o estudo da ética cristã, sob o olhar espírita, realize o seu aproveitamento e supere a própria presença da diferença, que por certo está no Espiritismo de modo difuso e não centrado. Sendo da filosofia alteritária que o outro é relação de distinção, diferença e contraste e que é preciso estabelecer esta consideração para que o diálogo se faça produtivo, a idéia de próximo ganha em status e identidade, sentido e realidade, em especial neste momento em que a fragmentação na sociedade contemporânea se faz presente com toda a força de conduzir as individualidades à exacerbação do eu, marcando ainda mais a própria ética espírita que considera o eu narcísico como fundamento e causa dos males que nos assolam.
  
Espetáculo a serviço do interesse do sistema
 
Feitas as reflexões, podemos voltar nosso olhar para os demais objetivos fundamentais deste texto. Desde logo se coloca a seguinte questão: é possível pensar uma relação mídia e sociedade sob os princípios da interação alteritária? Por extensão, cabe também questionar: a mídia especializada em Espiritismo possui condições de atender à ética da alteridade, considerando-se os seus postulados acima descritos? São duas questões inter-relacionadas e para as quais não se podem pretender respostas imediatas, mesmo que sejamos tentados a apresentá-las ou nos pareça tê-las na ponta da língua. Não sem antes estabelecermos uma boa reflexão sobre aspectos importantes da realidade midiática contemporânea, visando superar uma certa ingenuidade que assola a própria individualidade.
Comecemos por tocar na questão da enorme atração que a mídia exerce sobre as massas. Trata-se de um poder já bastante analisado por estudiosos diversos e demonstrado em pesquisas inúmeras, mas nossas reflexões aqui se estabelecem a partir da concepção de uma sociedade voltada ao espetáculo colocada com muita propriedade por Guy Debord , onde os meios técnicos de comunicação ocupam posição privilegiada. Temos, portanto, dois aspectos igualmente importantes à análise: a espetacularização da sociedade e a mídia. Já não é possível mais pensar um deles sem considerar o outro. Espetáculo e mídia se entrelaçam num entrecruzamento em que a mídia passa a conduzir o espetáculo e o exacerba para a sociedade, produzindo um sentido de convencimento de tal ordem que o ideal de sociedade deixa de possuir as características tradicionais para se transformar em ideal de espetáculo. O eu e o outro estão convencidos de que a identidade só se torna possível através da visibilidade midiática, proporcionando à mídia o nobre objetivo de tornar possível ao eu e ao outro alcançarem a sua identidade. O contraponto necessário aí é a percepção de que o ideal de felicidade assentado no espetáculo que a mídia incorpora não é o objetivo da mídia, pois a esta interessa o resultado que interessa ao capital investido. O ideal de felicidade que perpassa a mídia é fundado no consumo permanente, daí porque as mensagens publicitárias tratam de renovar sempre as necessidades e as possibilidades de serem atendidas. Mesmo a mídia enquanto produto que se vende a si mesmo não está aquém desta proposta de felicidade, pois reflete e reproduz o próprio sentido presente na proposta de consumo para alcançar a felicidade.
Em Debord, a idéia de uma sociedade do espetáculo se estende para além de interesses fragmentados deste ou daquele grupo, até mesmo da ação da mídia como parte econômica interessada. Conquanto a mídia ocupe aí lugar estratégivo e privilegiado, “o espectáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade, e como instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ele é expressamente o sector que concentra todo o olhar e toda a consciência. Pelo próprio facto de este sector ser separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; e a unificação que realiza não é outra coisa senão uma linguagem oficial da separação generalizada” .
Não será de todo inverídico afirmar que desde o instante em que o jornalismo adotou a técnica das grandes manchetes e proporcionou a si mesmo um salto quantitativo, amparado pelo desenvolvimento tecnológico das máquinas de imprimir, o desenvolvimento da mídia foi traçado de forma a caminhar em direção ao próprio espetáculo, pois o emprego de manchetes sensacionalistas, independentemente de quaisquer outras análises, constitui a entrada no mundo do espetáculo visível e visual por parte do único meio técnico de comunicação de massa de fato existente então. A exacerbação do espetáculo na contemporaneidade encontra no jornalismo sensacionalista um dos seus marcos iniciais.
Não está em questão uma discussão conceitual ou filosófica do sistema capitalista, mas a compreensão de que objetivos capitalistas predominantes na mídia se tornam inadequados à convivência não conflitual com a proposta de uma ética alteritária, pois esta é fundamentalmente uma proposta de subversão de todo e qualquer interesse que conflite com o respeito integral e absoluto ao outro. O interesse midiático, enquanto submetido ao interesse do capital, torna-se inapropriado à consecução de uma relação interativa em que o interesse do outro se constitui em ponto de partida e de chegada, pois que o interesse midiático só pode se realizar sendo ele mesmo ponto de partida e de chegada.
A espetacularização dos meios de comunicação, portanto, pode ser vista como perfeitamente adequada e coerente com os objetivos do sistema que os mantém, mas não pode receber a mesma consideração daqueles cujo verdadeiro interesse está centrado na valorização do outro e, portanto, de sua intimidade. A constatação de que, parodiando McLuhan, a mídia é o espetáculo não constitui apenas a crítica da mídia, mas uma outra constatação: a de que os meios técnicos levam à última conseqüência o seu empenho para alcançar e manter o domínio sobre a audiência.
Este olhar crítico se faz ainda mais oportuno quando se considera que duas doutrinas que transitam fundamentalmente pela trilha da ética de valorização do que há de mais humano e legítimo no cidadão podem se legitimar também enquanto conceitos que se identificam. Tanto a ética alteritária quanto a ética espírita se torna incompatível com a espetacularização da vida humana e a única forma de superar essa incompatibilidade está na noção de prevalência do outro enquanto individualidade ou enquanto sociedade. A questão, portanto, não pode ser resolvida no ambiente dos interesses do capital, onde os meios técnicos de comunicação se situam e onde sobrevivem como império dominante, porque os interesses do capital não foram concebidos para dividir o poder. A única maneira de se resolver isso é com a transgressão das normas estatuídas pelo sistema.
Enquanto isso, uma questão de fato reclama reflexão: de que forma as doutrinas éticas podem transitar pelos meios técnicos de comunicação sem ver abalada a sua integridade? Esta questão se faz ainda mais presente quando se tem como indiscutível o fato de a mídia de massa ser o caminho único para se falar a grandes audiências em tempo real.
A discussão aí assume outros contornos e passa inevitavelmente pela questão econômica, onde costuma predominar. Contudo, a discussão precisa se concentrar no sentido da espetacularização e do sistema predominante, que constituem, em última análise, uma questão de construção de uma consciência na forma de capacitação para compreender as condições em que a apropriação dos meios técnicos está sendo possível. Ou seja, torna-se necessário enfrentar a realidade da espetacularização como condição imposta pela mídia para seu funcionamento.
O que existe atualmente como prevalência é uma consciência moldada nos interesses e objetivos colocados, ou seja, de forma geral se considera que o espetáculo e a mídia são inerentes um ao outro como se fossem interdependentes e naturais ao sistema. Pois a noção de espetacularização passa exatamente pela compreensão dessa realidade, uma vez que, segundo coloca Debord, prevalece quase sempre a idéia de que o que é bom está na mídia e o que está na mídia é bom. A esta tal consciência é preciso interpor uma outra, a de que a utilização dos meios técnicos de comunicação dentro das regras impostas pelo sistema torna-se impraticável quando o que se pretende é uma ação comprometida com a alteridade.
Na mesma linha de raciocínio se coloca a questão de uma visão instrumental da mídia ou qualquer proposta que pretenda resolver as dificuldades de acesso à mídia de massa, pois a consideração meramente instrumental, de uso dos meios técnicos sob a visão imperativa de sua necessidade para difusão dos ideais ético-doutrinários reforça apenas a incosnciência quanto às condições de produção da comunicação aí colocadas.
Mais uma vez: alteridade e espetacularização da vida humana são inconciliáveis. Resta, então, encontrar, até mesmo antes dos recursos econômicos e financeiros de sustentação do uso dos meios técnicos, o ponto de equilíbrio entre o uso criterioso desses meios e a ética que o motiva. Tem-se necessidade de responder a questões cruciais, portanto, tais como: sobre que base e condições serão produzidos e apresentados, por exemplo, programas de rádio e especialmente de televisão que atendam ao mesmo tempo os interesses que conduzem os espíritas aos meios técnicos e o suporte ético imanente? De que forma a noção de sociedade do espetáculo pode nortear a ação sobre a mídia para minimizar os efeitos da dominação pelo próprio espetáculo. Uma vez que o espetáculo se apresenta atualmente de forma insinuante, convincente, como uma forma de vida natural e naturalizada, a tendência da consciência se faz no sentido de unicamente lutar para alcançar os meios técnicos de comunicação e fazer o melhor uso deles em benefício da filosofia de vida norteadora da individualidade. Mas cidadãos comprometidos com a ética alteritária e espírita não podem se satisfazer com isso apenas, sob pena de aumentarem o vazio entre o as condições da práxis cotidiana e o ideal de felicidade humana.
  
Conclusão
 
A consciência promanada da ética da alteridade e da ética espírita, em suas interconexões, juntamente com a análise das condições colocadas pela noção de uma sociedade voltada à espetacularização da vida humana, contribui para a compreensão de que o acesso ao mundo midiático é apenas um caminho para o enfrentamento de outros conflitos, principalmente o conflito entre o espetáculo e o outro. A luta pelo domínio do mundo midiático é uma luta de poder e o comum, historicamente, tem sido o homem lutar pelo poder e, ao alcançá-lo, submeter-se às suas condições. Provado está que, quase nunca, a tomada do poder significa mudança do status quo. E aí, então, caberia fazer uma última pergunta: qual é a vantagem de tomar o poder e continuar o exercício de dominação que o poder confere? Em termos espíritas se poderia perguntar: de que vale poder falar a grandes audiências se estas audiências apenas mudam de canal, mas não de mensagem?
  
Bibliografia
BAKHTIN, Mikail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, 8a, Hucitec, 1997.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo, Lisboa, Edições Mobilis in Móbile, 1991.
GARCIA, Wilson. A dinâmica cultural na comunicação de massa: uma análise das expressões populares na publicidade e editorial da revista Veja (2003). Dissertação de Mestrado na Faculdade Cásper Líbero.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, Capivari, Ed. EME, trad. Herculano Pires, 1997.

Os espíritas, quantos são?

A comunidade espírita brasileira aceitou passivamente os dados do último censo. Segundo o IBGE, o número de espíritas praticamente não cresceu no Brasil. Foi o que demonstrou a medição. Para se saber quem é espírita, pergunta-se qual é a religião do entrevistado. Sob este ângulo, não há o que contestar: os dados do famoso instituto estão certos. Numericamente, não éramos muito expressivos; continuamos não sendo.
Fica no ar um certo desapontamento. Numa população de cerca de 170 milhões de pessoas, somos pouco mais de um por cento. Para ser exato, 1,8 por cento ou algo em torno de três milhões de espíritas declarados. Deveríamos ser mais. Gostaríamos de ser mais. Pensamos que temos uma grande história de conquista de espaço. E de fato temos. Desde Travassos, ouvimos que do Espiritismo do século XIX aos nossos dias realiza uma trajetória digna de admiração, fornecendo um cenário admirável de pujança. Não um cenário qualquer, mas algo grandioso que deveria refletir-se em quantidade. Temos na mente uma sensação quantitativa muito expressiva. Porém, os números do IBGE são implacáveis.
Surgem alguns consolos. Por exemplo, a idéia da qualidade versus quantidade. Amparados em Kardec, reafirmamos sempre que o proselitismo numérico não é um objetivo da doutrina; devemos lutar pela qualidade. Ninguém, em sã consciência, ficará contra esta idéia de que a qualidade é mais importante que a quantidade. Mas isso não retira um certo desapontamento quando os números nos colocam em posição inferior à religião tradicional e aos diversos ramos evangélicos. Até mesmo os ateus declarados formam um contingente maior que o nosso.
Ah a frieza dos números… Mas o que eles escondem? O que não dá para ver se botamos nossos olhos apenas no valor gráfico? Há algo muito importante, digno de reflexão. Por exemplo, a realidade do cotidiano espírita. Sim, é preciso considerar diversos aspectos do nosso dia-a-dia que influem em qualquer pesquisa desse gênero e com essas características. Vou dar um exemplo: outro dia, durante o intervalo de um jogo de futebol na Globo, a famosa jogadora de vôlei de praia Sandra foi mostrada lendo um livro de André Luiz e Chico Xavier. Seu nome: Nosso Lar. Quem assiste futebol na Globo sabe que ultimamente a emissora vem dedicando um espaço à promoção do hábito de leitura, colocando no ar indicações feitas por atletas de diversas modalidades esportivas. Pois é, apareceu a Sandra, campeã olímpica, com o mais lido livro psicografado de todos os tempos (pena que esta excelente idéia tenha sido retirada do ar). Alguém sabia que ela gostava de leituras espíritas? Pois a Sandra integra um grupo de simpatizantes da doutrina que, se perguntados qual é sua religião dirão que não têm. E outros, ainda hoje, responderão que sua religião é a católica.
Ninguém se espante com essa constatação. Há simpatizantes espíritas que simplesmente gostam das nossas teses fundamentais, e dos nossos livros. Outros admiram o fato de poderem se encontrar com pessoas queridas que já partiram. Muitos se encantam com as novelas globais inspiradas nos fatos espíritas: pessoas que aparecem a outras, o retorno ao convívio com os vivos; previsões, reencarnações. Pois é, grande parte dessas pessoas continua freqüentando suas religiões e se declarando adeptos delas quando procurados pelo IBGE.
Some-se a elas aqueles que não consideram religião o Espiritismo. Mas que são espíritas, como se diz, de corpo e alma. Todos eles, se perguntados qual é a sua religião, dirão que não têm. Simplesmente. Mas aceitam os princípios fundamentais como a reencarnação, a relação entre vivos e mortos, a existência de Deus entre outros. E lutam pela divulgação do Espiritismo, acreditando na sua força para modificar a sociedade.
Há, também, muitos que jamais diriam que são espíritas. Trata-se de uma contaminação do preconceito. Explico: eles freqüentam muitas vezes os centros, tomam passe, ouvem palestras, mas não podem aparecer como espíritas perante a sociedade. Quando não se incluem entre estes, são do tipo que gostam dos temas inspirados no Espiritismo, mas não fizeram uma adesão formal à doutrina nem pretendem fazê-lo.
A propósito, alguém sabe quantos espíritas estão entre aqueles milhões de brasileiros que deram à novela A Viagem a maior audiência da TV brasileira? Pois é, se 50 por cento dos telespectadores dissessem ao IBGE que eram espíritas seríamos hoje, provavelmente, o segundo contingente do país.
A busca frenética pelos números, essa obsessão norte-americana, nos faz às vezes deixar de lado o aspecto qualitativo, que só aparece quando refletimos sobre o contexto e as realidades que eles, os números, não revelam. Quando milhões de pessoas consomem livros de temática espírita, colocando-os nos primeiros lugares das listas por várias semanas, elas conferem um valor ao Espiritismo que ninguém pode desconsiderar.
Isto é um consolo? Uma leitura equivocada dos fatos? Pode ser. Mas é preciso ser bastante ingênuo para acreditar que o processo de influência do Espiritismo na sociedade deve ser analisado a partir da quantidade de adeptos revelada pelo IBGE. Aquilo que não é mensurável, que não pode ser somado, que não pode ser apresentado em caracteres alfanuméricos tem um peso muito significativo no quadro geral das análises. Estou convicto de que é um peso maior, imensamente maior do que os próprios números. E porque essa questão de dizer qual é sua religião tem complexidades enormes, tem implicações históricas e conseqüências culturais diretas na vida dos indivíduos, a valorização da qualidade ganha ainda mais importância para o Espiritismo. Fornecer conteúdos vale mais do que contar adeptos. Muito mais!

O primeiro centro espírita da história?

Allan Kardec fundou a primeira sociedade legalmente organizada.Em geral, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, conhecida como SPEE, é vista e citada como o primeiro centro espírita da história do Espiritismo. Foi fundada em Paris no ano de 1858 por Allan Kardec e alguns amigos. Entretanto, será mais correto afirmar que a SPEE foi a primeira sociedade espírita legalmente organizada, uma vez que suas correlações com o centro espírita têm muito pouco em comum. Em meu livro “Nosso Centro, Casa de Serviços e Cultura Espírita” faço esse registro a fim de contribuir para a formação de uma consciência a respeito da doutrina e a evolução de suas práticas nos quase cento e cinquenta anos de sua história. Permito-me aqui reproduzir as reflexões inseridas no referido livro sobre este interessante assunto. “O centro espírita não se limita a consolar os aflitos com palavras”. A afirmação de Herculano Pires revela o que é concebido de forma geral nos meios espíritas, mas presta-se também a reflexões oportunas, uma vez que o centro espírita como tal encontra-se ainda a caminho de sua melhor definição. A Kardec coube apenas conhecer os primeiros passos da SPEE que, então, nem era conhecida por centro espírita. A expressão centro espírita evoluiu com a própria instituição e é hoje a que indica o local onde se reúnem os seus adeptos para a prática da doutrina. Centro espírita é designativo, pois, deste local e pouco importa se em sua denominação oficial está consignada associação, sociedade, instituição, casa ou outra qualquer. Será sempre indicado por centro espírita.
Desconhece-se qualquer instituição nos primórdios do Espiritismo na França que fosse designada por centro espírita. A expressão foi, certamente, criação brasileira e serviu tanto para popularizar a doutrina quanto para se tornar sua própria designação. Centro espírita é quase sinônimo de Espiritismo.
No início, faziam-se reuniões para estudo e pesquisa dos fenômenos mediúnicos. Compreendê-los era o grande desafio dos pesquisadores da segunda metade do século XIX. Ao publicar o primeiro livro da doutrina Kardec apresentou inúmeras outras possibilidades e o desafio se desdobrou dos fenômenos para os princípios básicos. Tudo era novidade e era preciso descobrir, progressivamente, as possibilidades oferecidas pela doutrina.
A passagem das reuniões mediúnicas praticamente informais para as de uma sociedade organizada, interessada em prosseguir nas pesquisas, mas, também, em aplicar a teoria à prática do cotidiano, forneceu diversos e interessantes desdobramentos. Com a filosofia básica estabelecida, o Espiritismo não poderia se contentar apenas com os fenômenos e sua compreensão. Caso o fizesse, correria o risco de ter o número de interessados reduzido paulatinamente. A mais convincente razão, contudo, estava na própria realidade doutrinária, plena de novas perspectivas capazes de sobrepor-se ao marasmo das repetitivas reuniões de pesquisa.
Kardec não teve tempo nem possibilidade de fornecer algo próximo de um modelo de centro espírita capaz de atender ao desejo do homem do século seguinte. O estatuto que oferece no “Livro dos Médiuns” expressa a intenção de auxiliar através de instruções derivadas especificamente da experiência com a SPEE, fundada fazia pouco tempo, cuja estrutura difere bastante do centro espírita da atualidade.
Por ser a primeira instituição legalmente organizada visando à aplicação prática do Espiritismo e por haver surgido quase um ano após o lançamento de “O Livro dos Espíritos”, a SPEE é tipicamente uma associação disposta ao estudo dos fenômenos mediúnicos, interessada na sua compreensão e nos conhecimentos advindos da relação com as inteligências invisíveis. O artigo primeiro do seu estatuto assegura: “A sociedade tem por objeto o estudo de todos os fenômenos referentes às manifestações espíritas e sua aplicação às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas”.
A sociedade foi, de fato, a primeira instituição espírita legalmente fundada a funcionar como estimuladora do aparecimento de outras dentro e fora da França. Limitava-se, contudo, aos objetivos expostos no seu regulamento, nada possuindo daquilo que foi, com o tempo, incorporado como serviço ao centro espírita. O regulamento é uma peça bastante curiosa, mas é também severa do ponto de vista da disciplina ao garantir direitos e estabelecer penalidades para aqueles sócios que porventura viessem a praticar atos que colocassem em risco o nome da sociedade.
Pelo regulamento se fica sabendo que ninguém poderia se tornar sócio sem a indicação de dois membros titulares e a aprovação da diretoria. De certa forma, ainda hoje tal preceito se encontra em boa parte dos estatutos dos centros espíritas, mas com pequena aplicação prática.
A SPEE jamais realizava reuniões públicas. Todas as suas sessões eram privativas dos sócios e vedadas aos curiosos. Quem delas quisesse participar deveria obter autorização do presidente e ainda assim participaria apenas da sessão para a qual a autorização tivesse sido liberada. Os médiuns não detinham direitos sobre as comunicações que obtinham; só lhes era permitido tirar cópia das comunicações, mantendo o original na sociedade. Assim, a SPEE se reservava o direito de uso das comunicações, seja para fins de publicação na Revista Espírita seja para outras finalidades.
As reuniões ocorriam uma vez por semana, às sextas-feiras às 20 horas, alternando sessões particulares e gerais. As primeiras eram vedadas aos não sócios e as gerais admitia a presença de convidados devidamente autorizados, mas os convidados não podiam fazer uso da palavra senão em casos excepcionais.
Os sócios não podiam utilizar o título de membros da SPEE, inclusive nas suas produções intelectuais. Caso fosse de interesse de algum deles fazer essa menção deveria submeter o trabalho à apreciação e aprovação da comissão respectiva.
O regulamento garantia à SPEE o direito de fazer “exame crítico das diversas obras publicadas sobre o Espiritismo” e entre essas mencionava as que fossem publicadas “por um membro da sociedade sob o véu do anonimato e sem nenhuma menção que possa torná-lo conhecido como tal”. O exame era registrado em documento que, a critério da presidência, poderia ser levado à publicação na Revista Espírita.
Como se vê, a SPEE era uma instituição com objetivos diferentes dos de um centro espírita moderno e, embora se tenha bastante o que aprender com ela, especialmente no campo mediúnico do trato com os Espíritos, não se pode compreendê-la senão sob o viés de sua realidade histórica.

Os matizes do Espiritismo

Os países de língua portuguesa, notadamente Brasil e Portugal, têm como pano de fundo religioso a doutrina da Igreja Católica, também conhecida popularmente como Cristianismo. Assim, Catolicismo e Cristianismo quase sempre se referem à mesma coisa. É bem verdade que em Espiritismo tenta-se, sem muito sucesso, separar as coisas. Um dos livros clássicos do Espiritismo tem por título “O cristianismo do Cristo e o dos seus vigários”. Querem os autores espíritas, ao referir-se ao Cristianismo, dizer da doutrina originada dos ensinos cristãos cujo fio condutor inicia-se com o Cristo. Cristo, cristãos, Cristianismo, eis a idéia. A dificuldade é eminentemente de ordem cultural. Assim como muitos outros termos, a palavra Cristianismo assumiu, ao longo dos dois últimos milênios, uma conotação de ensino da Igreja onde se misturam leis, regras, princípios estabelecidos a partir interpretações dos ensinamentos contidos no Evangelho. Mas, também, de interesses diversos do poder temporal que a Igreja desenvolveu.
Uma outra palavra de difícil compreensão semântica atualmente é o termo “religião”. Há muito interesse nos meios espíritas em separar o seu significado histórico do significado semântico, ou seja, daquele significado original, se assim se pode exprimir. Religião é palavra cujo significado atual remete a um corpo de doutrina e à sua prática através de ritos, dogmas, crenças e cultos. Nos países ocidentais, em especial, assim como Cristianismo remete ao Catolicismo, Religião também quase sempre remete às práticas ritualizadas. Mesmo quando não o faz, o termo Religião cultural e historicamente diz respeito às práticas ritualizadas de cultos dedicados a Deus.
A tentativa de separar esse significado histórico do sentido semântico interessa ao Espiritismo por diversas razões. A principal delas é que se há uma Religião Espírita, essa religião tem a ver com o significado semântico e não com o significado cultural. Mas é quase uma luta inglória, ou seja, impossível de ser vencida. Como pertencer a uma Religião que a princípio não possui um sistema estruturado de crenças, não possui práticas destinadas ao culto a Deus e não ritualiza de modo sistemático os seus procedimentos ditos espirituais? Como, por exemplo, responder aos censores do IBGE sobre a religião que se adota, se quando perguntam eles se referem à Religião de significado histórico? Temos, pois, uma imensa dificuldade de definir nossa identidade dentro da sociedade, quando o que está em jogo é a nossa referência religiosa.
Um outro termo complicado é a palavra “dogma”. As religiões, de modo geral, possuem seus dogmas, ou seja, suas verdades. Mas no Catolicismo o dogma ultrapassou os limites daquilo que poderia ser uma simples verdade para assumir a posição de verdade indiscutível proveniente da revelação divina. Os dogmas aí são dogmas de fé, elementos fundadores que devem ser aceitos sem questionamento, porque qualquer questionamento do dogma terá como significado último uma demonstração de descrença em relação à verdade revelada, o que no caso é imperdoável. Então, historicamente, o termo dogma não interessa aos espíritas. E não interessa porque não temos dogmas de fé. Todos os princípios espíritas, básicos ou não, devem se assentar na lógica e se possível na comprovação. Essa é a racionalidade espírita. Quando, enfim, se diz que a reencarnação, por exemplo, é um dogma espírita esbarra-se na questão cultural: dogma como verdade indiscutível. O princípio da reencarnação, como os demais existentes no Espiritismo, não dispensa a reflexão ou a prova, portanto, não pode ser tido como dogma em seu sentido histórico.
Veja bem, falamos de três termos cujo trajeto histórico realiza a interligação entre eles: Cristianismo, Religião, Dogma. E começamos com uma referência à língua portuguesa do Brasil e de Portugal. Por quê? Bem, parece mesmo surpreendente que países como estes dois, onde a presença da Religião em seus termos históricos está na base da cultura, tenham tamanha abertura para uma doutrina nascida das entranhas racionais da cultura européia, melhor dito, do caldo cultural francês com forte acento do racionalismo cartesiano. A princípio, a lógica espírita deveria encontrar melhor terreno ali, onde nasceu, e nas adjacências. Estranhamente, porém, foi ali que logo pereceu e agora luta por se reencontrar com imensas dificuldades. Mas onde a cultura estava aparentemente destinada a recusar a difusão de conhecimentos de base racional, como o Brasil, foi onde o Espiritismo encontrou disposição para sobreviver. Mais do que isto, para crescer e estender raízes profundas.
Não haverá certamente uma explicação única para a difusão da cultura espírita no Brasil e em Portugal. Não há na vida, para nada, uma explicação isolada. A complexidade não pode ser explicada numa única frase. Mas é certo que, já em Kardec, os elementos comuns e – eu diria, com ênfase – facilitadores da absorção do Espiritismo em países como estes estavam presentes. Pode-se dizer que o Cristianismo histórico como que reclama com ansiedade pela presença dos princípios racionais contidos no Espiritismo. Talvez por isso, no inconsciente das práticas religiosas dos nossos povos, a relação com os mortos, a perspectiva de retornar à vida no corpo físico, a expectativa de prosseguir com a personalidade individual no outro mundo encontrem novo frescor com a doutrina que coloca estes princípios como elementos fundamentais da existência humana.
Não há nada de novo debaixo do Sol. Ou há?

A credibilidade da informação na Internet

A disposição dos espíritas para compreender a importante questão da informação na Internet e, em especial, os fatores e os desdobramentos da sua credibilidade, têm o significado maior de se saber que o avanço das tecnologias da informação exige dos cidadãos e das organizações sua integração à realidade do mundo contemporâneo, às novas estruturas e possibilidades comunicativas. A sociedade da informação a tudo abrange e a tudo engloba, altera e influencia, sendo por isso considerada a mais nova grande revolução que introduz a humanidade na Economia Digital de silício, computadores e redes, em substituição à Economia Industrial baseada no aço, nos automóveis e nas estradas1. Por isso mesmo, antes de entrar na análise da credibilidade da informação na grande rede mundial, convém fazer um passeio pelas principais vias oferecidas, principalmente para verificar que a rede e, portanto, o que por ela transita, alcançam níveis que vão do ser humano como indivíduo anônimo até às grandes corporações mundiais.
Já há algum tempo, quando a rede era apenas uma evidência mais do que palpável, especialistas discutiam com agudez a questão, perguntando-se pelas possíveis conseqüências do impacto que ela causaria nas futuras gerações e em todo o espectro social por ela abrangido. As questões levantadas e a abrangência percebida despertavam dúvidas como:
1. Que mundo resultará da nova realidade? Um mundo onde a divisão social se faria ainda mais profunda, colocando em lados diferentes aqueles que possuem participação na rede e estabelecendo o que se denominou “divisão digital”? A perspectiva de instalação de uma divisão real nesse sentido se verifica, dado que a participação na rede, em larga medida, ainda hoje favorece as classes sociais mais abastadas.
2. Qual o seu impacto na economia mundial, em termos de geração e extinção de empregos?
3. A rede invadirá de forma irrefreável a intimidade das pessoas, transformando definitivamente a nossa capacidade de decidir sobre quais informações desejamos e permitimos que nos sejam enviadas? E de que forma aceitamos sejam as informações pessoais utilizadas?
4. Em termos de qualidade de vida, haverá ganho real, as pessoas serão mais solidárias e participativas ou se isolarão no silêncio de suas residências, eliminando a separação sempre importante entre o trabalho e o lazer ou tempo livre? O que a Economia Digital reservaria para a humanidade em termos de trabalho?
5. Por extensão, qual o impacto das novas tecnologias da informação e sua fusão com os outros meios de comunicação, sobre as famílias? Reviveremos a época em que a família estava mais junta e, portanto, dispensava cuidados diferentes aos jovens e aos idosos, planejava seus cotidianos solidariamente, cuidava da educação, das compras e do lazer? Ou a solidão do indivíduo em virtude dessa característica individualista da rede se aprofundará, em contraponto às suas necessidades sociais?
6. Que tipo de controle será possível fazer sobre as informações altamente negativas, como os sites pornográficos, a pederastia, a exploração sexual de menores, o racismo e a violência? É possível estabelecer algum tipo de censura na rede e, acrescentando, é saudável algum tipo de censura?
7. Que forma de relação advirá da nova tecnologia para setores fundamentais da economia e da vida social, como empregados e patrões, sindicatos e empresas etc.?
8. Finalmente, como serão as relações do governo com a nova sociedade que nasce ou se transforma a partir da Economia Digital? Como será encarado o cidadão do ciberespaço, atuante em um novo lugar com regras próprias, organização específica etc.? Sendo obrigado a considerar e se integrar à nova situação, o governo e a sociedade melhorarão as condições de democracia e criarão uma outra democracia, mais aperfeiçoada?

Colocadas como foram, algumas dessas preocupações já encontram suas primeiras respostas; outras, porém, se vêem agudizadas pelo desenvolvimento da tecnologia da rede, ou, então, ainda não obtiveram respostas satisfatórias. De qualquer modo, todas essas indagações interessam de perto à sociedade mundial, tocam-na de forma abrangente e por isso alcançam a comunidade espírita, porque a rede mundial não pode constituir preocupação apenas com a informação em seu fluxo receptivo, de uma só direção – aquela que vem de fora para dentro – mas deve ser considerada em seu aspecto total, como um meio pelo qual a sociedade se comunica, em regime de mão dupla, de diálogo e circularidade interativa. Talvez esteja mesmo na hora de pensar o computador não como extensão do homem como o definiria McLuham, mas como uma certa individualidade que articula ações ora como um companheiro dócil em duplicidade com o homem, ora como um indivíduo dotado de cérebro e autonomia, senão por possuir autonomia real, pelo menos por parecer dispor dela aos olhos desatentos daqueles que manipulam teclados e mouses em meio ao caos diário das informações em circulação. Esta, porém, será uma discussão teórica, fora dos propósitos deste trabalho.
De qualquer forma, temos o homem e a máquina, e ambos inseridos num complexo contexto de rede, uma teia gigantesca e incontrolável e assim se chega a um dos pontos cruciais: a questão ética. A ética se encontra na base de qualquer consideração sobre a credibilidade da informação, embora seja preciso reconhecer que ela, por si mesma, não resolve todo o espectro da informação em termos de poder assegurar a sua confiabilidade. Há um mundo de informações e conhecimentos que não podem ser analisados simplesmente pelo caráter ético se se deseja de fato compreender sua função, oportunidade, utilidade e importância, uma vez que sua origem escapa completamente ao cidadão do ciberespaço; dir-se-á mais, é completamente impossível ao cidadão dispor por si de uma capacidade total de análise de todas as informações que lhe são acessíveis ou que lhe são disponibilizadas.
A ética, contudo, considerada em seu aspecto fundamental, como um conteúdo de regras universais válidas para qualquer povo e qualquer contexto, tem a função de garantir a veracidade e a utilidade da informação. Considere-se, porém, que a questão só poderá ser convenientemente analisada quando se considerar a rede em sua totalidade e aí é preciso perceber a potencialidade dos cidadãos no uso de sua liberdade de expressão em que os interesses e o modo como operam se tornam decisivos. Em conjunto com isso, deve-se perceber também a presença das corporações, grandes e pequenas, no desejo de se fazer presente e dominar o novo meio.
Cidadãos, então, nos quais se incluem aqueles cuja ação na rede terá por motivação visível o interesse de disseminar verdades nas quais acreditam e pelas quais lutam, ao lado de outras motivações, menos visíveis mas reais, como o influir sobre os destinos das pessoas e da sociedade. O espírita deverá aí ser considerado como qualquer outro cidadão, seja na qualidade de receptor de informações, seja na condição de produtor dessas mesmas informações; no ato de recepcionar e aplicar a compreensão e na atitude de responder compreensivamente ao que recebe; sintetizando, no ato de produzir informação, colocar na rede e recepcionar a informação-resposta, o retorno.
A credibilidade da informação deve ser considerada, também, em dois aspectos igualmente importantes: na presença da informação materializada e na ausência material de informação. Expliquemos: há informação que se encontra completa, como um discurso que pode ser analisado criticamente por sua forma e seu conteúdo, assim como há informação cuja principal característica é a supressão dos fatos, de seus elementos fundamentais, porque contrapõe conteúdo à forma quando o discurso tenta produzir uma impressão ou resultado que não está explícito na informação.
Todos os discursos ideológicos, movidos pela intenção de convencimento do outro para idéias particulares, correm o risco de padecer desse mal e em geral padecem, porque a mensagem tem como compromisso maior o ato de convencer e não o ato de informar. É para este detalhe que se chama a atenção da comunidade espírita, uma vez que se é importante analisar a credibilidade e, portanto, o real valor das informações das quais se é receptor, por outro lado, dada a própria característica da rede que não opõe limites e controles aos seus integrantes e a todos transforma em sujeitos e receptores ao mesmo tempo, torna-se indispensável considerar essa dupla condição do indivíduo espírita que, sob o compromisso de divulgar sua doutrina, não pode minimizar sua capacidade de influir e participar da construção e desconstrução da informação.
As questões básicas que se colocam, portanto, quando se estuda o fluxo das informações na rede, são duas: de um lado se deseja saber como se poderá conviver com o seu extraordinário volume, e de outro, se pergunta sobre a capacidade seletiva dos indivíduos diante do fluxo e da rapidez cada vez mais acentuada com que as informações circulam em nível de intensa transformação nos diversos pontos por onde passam. Entra-se, novamente (ou, talvez, não se sai jamais), na questão ética, uma vez que a seletividade pressupõe a possibilidade de conhecer as fontes e de estabelecer um julgamento qualitativo da informação, mas reconhecendo-se que na rede, muitas vezes, ninguém é dono de nada e todos são proprietários de tudo.
Outro aspecto da questão ética reside na capacidade de consciência dos internautas, ou seja, até que ponto o internauta tem consciência clara de suas responsabilidades como membro de uma rede sem regras e sem controles centralizados. Essa questão lembra de imediato a ação de indivíduos isolados ou em grupos ao produzir e fazer circular informação para atender a interesses particulares altamente nocivos à coletividade (pederastia, ideologias políticas sectárias e fundamentalistas, invasão de privacidade etc.). Juan Luís Cebrián assinala, em tom de alerta, que “ao contrário da condução morna, esterilizada e unidirecional dos meios de comunicação de massa, ela [a rede] está criando um lugar em que se pode fazer ouvir qualquer idéia sem se importar até que ponto ela pode ameaçar a ordem contemporânea”2.
Na esfera da espiritualidade (dizemos espiritualidade com o intuito de não repetir o equívoco cometido pelos que entendem que tudo o que diz respeito ao espírito pertence ao terreno da religião, uma vez que o Espiritismo vem impor-se sob o entendimento de um domínio que une os saberes filosóficos e científicos para produzir um conhecimento unitário da totalidade), a ética considerará, de forma distinta, aquilo que é crença (“atitude de quem se persuadiu de algo pelos caracteres de verdade que ali encontrou”, conforme o Dicionário Houaiss) e como tal se expressa e aquilo que é resultado de um raciocínio lógico e assentado em dados ou evidências. É justo concluir que o internauta simplesmente crente operará segundo a ética da conveniência, pois a crença dispensa a necessidade de comprovação e se assenta no dever de produzir convencimento, ou seja, será preciso convencer o outro daquilo em que se crê, independentemente de qualquer coisa. Logo se vê que ao espírita, teoricamente, isso não interessa, não sendo preciso maiores argumentos sobre este ponto. A preocupação, contudo, é com o fato de que aquilo que não interessa teoricamente nem sempre é o que se verifica na prática, isto é, em teoria concordamos, mas a prática do cotidiano diz de forma completamente oposta. Na rede, essa realidade encontra espaço ainda maior pelo fato da inexistência de regras e filtros capazes de dizer com clareza imediata da confiabilidade dos textos e seus conteúdos diversos, mesmo quando estes textos trazem a chancela, o carimbo do Espiritismo em seu caráter formal.
O outro aspecto dessa esfera diz respeito àqueles que trabalham a informação espiritual com os rigores do método e o compromisso com os fatos, na convicção de estar contribuindo para um novo estado de coisas, ou seja, a construção de uma sociedade baseada no saber antes da crença. Neste caso, a questão caminha na direção da produção e valorização da informação que possa constituir conhecimento, ou seja, cuja credibilidade não represente objeto de dúvida. Aqui está o ponto que nos parece principal: toda informação confiável responde por uma parcela de conhecimento, o que significa que a capacidade de ser conhecimento é que estabelece o verdadeiro valor da informação.
Em resumo, a credibilidade da informação na rede mundial implica os atores, os indivíduos inseridos ou não no espaço virtual, as organizações em geral (instituições espíritas inclusas) e toda a sociedade.


1 A esse respeito, leia-se, entre outros, Juan Luis Cebrián, A Rede, Summus Editorial, 1999.
2 Idem, p. 29.

Razão e sentimento no discurso da prática

Admiro e respeito a decisão daqueles que resolvem agir mais diretamente nas casas espíritas. A duras penas se aprende que tanto a ação junto aos órgãos federativos quanto às próprias casas contém situações que levam a refletir sobre os caminhos e descaminhos da institucionalização. As federativas, muitas vezes burocratizadas e divididas em domínios, apresentam enorme perda de tempo e qualidade para aqueles que não desejam trilhar o campo da política interna. As rotinas e o excessivo apego ao missionarismo são outros tantos problemas sem solução imediata.
Aprende-se que os excessos não são exclusivos de um lado ou de outro, mas resultados dos desequilíbrios existentes nas personalidades humanas de nossa época. Digo desequilíbrios me referindo tanto à racionalidade quanto ao sentimento. Os tempos têm mostrado que o processo civilizatório é uma tentativa de promover o ajuste. Esse desequilíbrio fica demonstrado quando os espíritas, por exemplo, se aliam a uma das faces e passam a combater a outra de modo sistemático, assumindo que a sua visão é a mais correta ou coerente. Intelectuais combatem a ausência de racionalidade e os aliados do sentimento combatem o excesso de racionalidade, generalizando e taxando os intelectuais de somente obedecerem à razão.
Diante de um quadro desses, surgem perguntas inevitáveis: como, por exemplo, os partidários do amor incondicional poderão conviver com os amantes do conhecimento? E vice-versa. Como se ajusta aí o processo de convivência alteritária, cujo cerne estabelece que o outro é o foco e o eu deve servir e engrandecer o outro, em um processo que se auto-alimenta, ou seja, o viver para o outro engrandece o eu? Como se pode acreditar no amor que despreza o conhecimento, se o conhecimento é a face excelente do amor? Da mesma forma, como se poderá alcançar o conhecimento e fazer dele a mola do progresso científico e tecnológico se não o unirmos ao sentimento em sua expressão mais elevada?
A sabedoria espírita indica o caminho do equilíbrio através do amar e do conhecer, os dois vértices da evolução. Mas os homens são educados para escolher um lado e atribuir-lhe importância maior do que ao outro. Mais do que isso, são conduzidos a desprezar o outro por não lhe ver tanto valor assim. Daí a generalização da frieza como rótulo para os intelectuais e a classificação de ingênuos para os adeptos do sentimento. Ocorre que neste carreiro em que nos pomos não vamos chegar ao destino que desejamos, nem um lado nem outro.
Então, o que se deve pregar? Penso que não podemos, sob hipótese nenhuma, imaginar uma práxis sem a virtude do saber e um saber são a altivez do amor. Não há amor que resista à falta de conhecimento e não há conhecimento que supere o vazio do sentimento. O Espiritismo só se concretiza com os dois, parcimoniosamente dosados. Os excessos praticados pelos dois lados são degenerações que invalidam a prática, mas não invalidam a necessidade do saber e do sentir.
A título de justificar a sua adesão ao movimento de amor, afirmam alguns que o Espiritismo não trouxe nenhuma coisa nova que o Cristo já não houvesse trazido. É o argumento da justificação por uma opção, mas não é a verdade, pois esta está no reconhecimento explícito do saber aliado ao sentir e vice-versa. Ora, o Espiritismo não só trouxe novidades extraordinárias com o aporte dos valores sintetizados em seus princípios fundamentais como, também, instituiu objetivamente a necessidade do progresso assentado nos dois elementos: sentir e conhecer. Se não tomarmos conta desse legado, não como centuriões de olhos arregalados para pilhar o inimigo, mas como observadores de seu valor enquanto patrimônio, no seu justo equilíbrio, haveremos de ver repetir a formação de grupos defensores do amor e grupos defensores da razão. Ambos estarão certos no seu desequilíbrio, enquanto nenhum dos dois contribuirá seja para o progresso individual seja para o progresso social.
Lideranças espíritas, partidárias do sentimento como valor máximo, desejam repetir a experiência dos primeiros cristãos, sob a idéia de que esta é a necessidade a ser preenchida. E adotam o discurso de que o Espiritismo tem por precípua finalidade o desenvolvimento moral do ser e da coletividade, esta vista como conseqüência das alterações positivas conseguidas no ser individual. Com isso arriscam a que seus seguidores adotem a racionalidade apenas nas questões de conveniência e não como fator de equilíbrio na formação de uma consciência. A racionalidade de conveniência não possui mecanismos de aceitação do contrário, mas de afastamento dele, pois o contrário provoca auto-crítica e reavaliação sobre aquilo mesmo que constitui a razão de ser e de agir, o que lhe parece perigoso. A racionalidade de conveniência costuma optar pelo exclusivismo, na valorização dos que são solidários à forma de compreensão do mundo adotada, em negação àqueles que buscam sustentação da fé pela via da razão. E foi a racionalidade da conveniência que construiu o longo caminho das guerras ideológicas e materiais, dentro e fora dos recintos ditos religiosos.
A adoção da opção pelo amor não pode se servir da condenação do conhecimento. Caso o faça, estará atirando pela janela a conquista alcançada com o Espiritismo. Isso não significa que o conhecimento deva ter por sentido qualquer forma de dominação, ou que haja necessidade de sua prevalência sobre o sentimento. O equilíbrio está na compreensão da correlação de forças entre ambos. O alcance dessa visão conduzirá à outra forma de compreensão: à da importância da crítica e da reavaliação como condição para o diálogo entre os contrários, em lugar da adoção indiscriminada de uma opção isolada definitiva.

Porque Chico não é Kardec

Hilda Nami, escritora e articulista residente em São Paulo, me escreve perguntando porque este assunto continua dominando e muitos aceitam a versão de que Chico Xavier foi a reencarnação de Allan Kardec.

Caríssima Hilda.

A questão não mais está submetida à razão, mas à emoção. Quando escrevi o livro “Chico, Você é Kardec?” tive a percepção de que estava laborando num terreno difícil exatamente pela predominância da emoção. E essa percepção não nasceu apenas por conta da imensa figura que fora o médium Chico Xavier, nem mesmo da inumerável quantidade de admiradores que amealhou em sua longa existência terrena. A verdade é que a mitificação do médium conduz a multidão de seus admiradores a colocá-lo no ponto mais alto do olimpo, na expectativa de que ele, lá, brilhe de modo perene. Convenhamos, a perspectiva de que ele seja Kardec o coloca em definitivo naquele lugar mais elevado.
Maturana, pesquisador chileno, desenvolveu uma tese interessante em que defende o fato de que o homem é emocional e não racional. A razão serve muito mais para explicar a emoção do que para qualificação do ser humano. Agimos e reagimos em função desse conteúdo emocional predominante e somente depois nos damos conta de refletir sobre o comportamento e as decisões que adotamos.
Chico Xavier e seu irmão, André Luiz, em 1952

Em vista disso, estabelecem-se duas possibilidades, tomando-se o caso Chico-Kardec por referência: aqueles que aceitam a tese de uma única entidade espiritual para os dois atores sociais sempre encontram razões para reforço da tese, referendando a afirmação de que só se vê o que se deseja; por outro lado, aqueles que não encontram sustentação nessa tese mais e mais se vêem fortalecidos nas razões que contrariam os argumentos favoráveis ao Chico-Kardec.
Há apenas uma maneira de lidar com a questão de modo objetivo: pelo emprego da racionalidade. Ocorre que o conteúdo emocional sempre desconfia da razão, de modo a colocar na defensiva aqueles que se postam no lado contrário dos negadores da personalidade única para Chico e Kardec. Ainda assim, haverá sempre a possibilidade de um encontro de interesses para solução da questão, mas esse encontro só pode acontecer tendo-se por parâmetro a racionalidade, ou seja, o enfrentamento da questão precisa ocorrer sob uma perspectiva científica, metodologicamente estruturada.
Os principais argumentos de sustentação da tese Chico-Kardec encontram-se reunidos no livro, ao lado dos argumentos contrários. Pode-se notar com clareza que os defensores da tese apóiam-se em elementos que não se sustentam racionalmente. Há uma predominância total do conteúdo emocional. É por isso que estes preferem o silêncio ou a manifestação isolada ao diálogo crítico.
Os argumentos pró Chico-Kardec são: coincidência de datas, importância da obra de Chico Xavier, supostas confirmações via mediunidade, fatos originários de conversas íntimas e algumas afirmações do tipo “sei porque sei”. Os argumentos contrários estribam-se na falta de provas convincentes, nas diferenças de personalidade entre os dois atores e numa crítica à sustentação dos defensores que tem por base argumentos contraditórios.
A defesa emocional da tese coloca os seus defensores em uma posição arredia à postura racional, mas em matéria tão complexa não há como encontrar solução se não for pela racionalidade, marca do trabalho de Kardec. O ponto de partida de qualquer estudo aí terá que ser a dúvida: será Chico a reencarnação de Kardec? Veja bem, a adoção desta dúvida implica já em dizer que Chico só poderá ser considerado a reencarnação de Kardec se forem obtidas provas ou evidências insuspeitáveis, portanto, já se parte da idéia de que enquanto não houver provas (que é o que corre, de fato, atualmente) Chico não pode ser tomado por Kardec.
Os defensores da tese terão muita dificuldade em se colocar neste ponto, porque já tomam como verdade aquilo que possuem em matéria de informação, seja o que resulta das experiências pessoais, seja o que advém das informações mediúnicas, apesar da fraqueza dessas evidências e do amplo predomínio dos fatores emocionais aí encontrados. Mas todo e qualquer interessado no esclarecimento do assunto será levado a compreender que é preciso tomar a questão com tranqüilidade e estudá-lo com isenção e objetividade, para então poder alcançar um dia a verdade.
Por tudo isso é que se precisa colocar a dúvida como ponto de partida, adotando-se a criteriosa postura do estudioso consciente de que nenhuma prova ainda foi colhida para que se pudesse dizer que Chico e Kardec foram a mesma personalidade.

Grande abraço do

WGarcia

O Espiritismo na sociedade do espetáculo

De como se estrutura e se processa a comunicação na sociedade do espetáculo poucos têm consciência. Este verdadeiro “pecado” que a ignorância forja implica a existência de uma “massa” de criaturas que se identificam pelo desejo de consumo e que o sistema sabiamente utiliza, seja construindo um certo caminho da felicidade e o dispondo como o verdadeiro, seja reforçando as identidades que as tribos urbanas constroem para si mesmas como forma de se afirmarem no cenário social.
A comunidade espírita, como estrato social coerente, sustenta e alimenta o desejo de participar da construção das identidades com a oferta de um produto – o saber espírita – através de uma ação a que denominamos, por falta de melhor expressão, divulgação doutrinária.
Temos assim, de um lado, o sistema dominante que mantém as possibilidades de realização assentadas no alto consumo e, de outro, a difusão da ideologia da visibilidade como a forma de auto-afirmação possível. O jogo está formado, os atores estão no palco e as mídias são a parte fundamental do processo de viabilização dos interesses em disputa.
Neste terreno das glórias passageiras e das imagens que se substituem umas às outras, dos ídolos criados para um espetáculo exaustivo, forjados e atirados ao ostracismo com a mesma velocidade com que surgem, localiza-se a comunidade espírita à procura também de visibilidade para as suas propostas.
O espetáculo, contudo, predomina sobre a informação ou até mesmo por conta da informação, e está presente nas imagens e acima de tudo como ideologia consumada por um consenso de prática, como a dizer que só é possível ser eficiente na conquista de mentes e corações se a produção e a veiculação de mensagens obedecer aos critérios que o sentido do espetáculo impõe.
Diante disso, ao Espiritismo resta resolver o conflito de produzir a sua “divulgação” sob o império do espetáculo sem perder a capacidade de falar sobre suas propostas com a coerência e a lógica interna da doutrina. Será isso possível? É o que analisaremos a seguir.

O conceito da sociedade do espetáculo

A idéia da sociedade do espetáculo é antiga, o conceito é novo. A sociedade como afirmadora das aparências e como valorizadora do exterior tornou-se preocupação do homem desde a Grécia e a Roma antiga, passou pela Idade Média e alcançou a modernidade. Há profundas diferenças entre a idéia e o conceito contemporâneo de sociedade do espetáculo? Há diferenças, claro, mas talvez elas não sejam tão profundas quanto possa parecer. Na modernidade, o espetáculo recebeu o toque mágico dos meios de comunicação e se tornou, por isso, um espetáculo de dimensões globais. No passado, estava restrito aos ambientes localizados e tinha repercussões acanhadas, se comparado aos dias atuais. Mas não há dúvida de que o espetáculo exercia forte fascínio sobre os indivíduos e os dominava em certa medida. O espetáculo fazia parte da sociedade, era elemento dela e ocupava uma porção dos seus dias e das suas noites. Talvez esteja aí a grande diferença para a sociedade do espetáculo contemporânea, marcada pela presença da mídia e elevada ao nível do aparente transformado em real. Contudo, não se deve perder de vista essa força externa do espetáculo e sua influência: sempre que possível, feitos e comemorações, atos de bravura e interferência do irracional, tudo era motivo para a transformação em espetáculo.
O salto veio com o surgimento dos meios de comunicação de massa. A eles coube a tarefa de, numa primeira etapa, tornar o espetáculo conhecido de muitos e, numa segunda etapa, incorporá-lo como elemento interno de seu contexto, tornando-se assim, eles mesmos, um espetáculo. Entendam-se, as etapas aqui são meramente metodológicas, pois na verdade a assimilação do espetáculo ocorre em paralelo à sua transformação em razão da sociedade.
“O conceito de espetáculo” – diz Debord – “unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências desta aparência organizada socialmente, que deve, ela própria, ser reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é aafirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível“.[1]
A transformação do elemento constituinte – o espetáculo – em razão da própria sociedade significa na prática a formalização de uma cultura dominadora, a cultura do visível, do aparente e, portanto, a construção de consciências adaptadas ao consumo do que é aparente. Todos sabemos como uma cultura fortemente estabelecida é capaz de gerar consciências dispostas a assimilar e reproduzir esta cultura. A aceitação do espetáculo como razão de vida social não é apenas uma questão de gosto, mas uma condição para a inclusão nos diversos círculos sociais. Não é uma opção a fazer, mas uma determinação a cumprir.
A cultura do espetáculo é dominante por cumprir aquilo que Debord coloca: “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A crítica, portanto, da mídia do espetáculo é o reconhecimento de que ela faz do espetáculo essa razão social de viver. A notícia é espetáculo na TV, mas também nos jornais, nas revistas e nas emissoras de rádio. E é notícia sob o formato do espetáculo não apenas o fato, o acontecimento inusitado; também aquilo que antes não era, ou seja, a vida privada. O privado e o público se confundem nesse cenário difuso, assim como os interesses que dominam o público e o privado. O indivíduo permite que sua intimidade adquira visibilidade por conta de uma certa consciência da necessidade de tornar-se visível para obter reconhecimento; o espetáculo midiático é o meio pelo qual a visibilidade pode alcançar a dimensão pública mínima. A vida que se torna espetáculo deixa de ser a vida para se tornar espetáculo. Dentro desse contexto, cabe perguntar: qual é a possibilidade de ser sem tornar-se espetáculo?

Consciência na abordagem espírita

Uma discussão sobre a consciência, especialmente com vistas a clarear de alguma maneira a sua gênese e construção, parece-nos oportuna. Em Espiritismo a consciência assume posição importante e é abordada sob diversos ângulos. Não há na doutrina, porém, uma preocupação com a gênese e a construção da consciência, mas com suas funções enquanto gestora das ações da individualidade, como se quisessem os Espíritos dizer, como em outros tantos e tantos aspectos do conhecimento, que se trata de tarefa dos humanos encarnados essa descoberta. “O Livro dos Espíritos” dá um tratamento central em termos comportamentais para a consciência, estabelecendo advertências com vistas a indicar que o tipo de comportamento adotado tem grande participação no funcionamento da consciência: “Cuida que tua consciência esteja pura”[2], diz na questão 852. A preocupação comportamental, como se sabe, vai estender-se às diversas partes das obras básicas e assume posição destacada na grande maioria dos livros subsidiários, onde se acentua o caráter moral das ações humanas e suas implicações sobre a felicidade e a infelicidade das pessoas.
Além da ênfase comportamental, a questão da consciência encontra no Espiritismo, ainda, algumas outras abordagens, como por exemplo os destaques para sua importância enquanto atributo da individualidade (“A consciência de si mesmo é o que constitui o principal atributo do Espírito” – LE, 600), a consciência como noção de realidade física (“O Espírito tem consciência da distância que percorre – LE 90), a consciência como suporte da liberdade de pensamento e expressão (“A liberdade de consciência é um dos caracteres do progresso” – LE 837) etc.
O Espiritismo, portanto, não informa sobre como a consciência é gestada e menos ainda como se estrutura, se ela tem porventura uma origem anterior ao início do processo encarnatório, o que implicaria sua preexistência, como também não afirma peremptoriamente que ela sofre um processo de construção permanente nas diversas etapas evolutivas a que a individualidade está submetida, construção essa que deveria provocar alterações na sua intimidade. Isso pode, no limite, ser deduzido; sim, o raciocínio lógico nos indica que a consciência está em construção permanente, pois do contrário a individualidade não seria evolutiva. Ainda que esta lógica nos convença, ela também exige que se definam os termos da forma como a consciência é construída, por se assentar aí, com certeza, um fator importante para uma atitude compreensiva da individualidade sobre a consciência.
Embora não nos aclare quanto a este primordial conhecimento, o Espiritismo nos diz duas outras coisas sobre a consciência de grande significado: a primeira, com a afirmação que pretende ser, ao mesmo tempo, um princípio de estabelecimento de um conceito da consciência: “A consciência é um pensamento íntimo” (LE, 835). A segunda: “O homem traz em sua consciência a lei de Deus” (LE, 621). A afirmação de que a consciência é um pensamento íntimo implica também a afirmação de que ela se manifesta na forma de um pensamento, ou de pensamentos, frente às situações diversificadas do cotidiano, o que é também, na prática, o reconhecimento de que a consciência é uma forma pela qual a individualidade dialoga com o exterior. Conduz ainda ao reconhecimento de que, em sendo pensamento, é também algo que se serve de um material que já existe, pois não se poderia pensar em ser algo sem que esse algo esteja contido. E se está contido, só pode ter origem no exterior da individualidade, para que esta consciência, de alguma forma, se aproprie desse material para poder utilizá-lo.
Por outro lado, ao afirmar que o homem “traz” em sua consciência a lei de Deus, o Espiritismo está sugerindo que essa consciência preexiste ao homem encarnado. Para que a lei de Deus ali esteja, ela deve ter sido formada antes, o que conduz a outros questionamentos do tipo: quando, de que forma, sob que condições etc. Todas estas questões não podem encontrar respostas no próprio Espiritismo, uma vez que ele não as contempla, o que não significa que não devem ser objeto de pesquisa. Como a questão da consciência tem implicações diretas com o espírito, a essência humana, tem-se que o campo de conhecimento mais propício aos estudos dela seja o das ciências sociais, muito mais do que o das ciências físicas, pelo menos no que diz respeito à atualidade desses dois campos de conhecimento, uma vez que as ciências físicas não apenas têm-se mostrado incapazes de lidar com a subjetividade como de fato têm-se recusado a fazê-lo sob uma certa noção de sua inexistência. Contudo, a boa lógica nos indica que será unicamente pela integração destes dois campos do conhecimento que o homem poderá aspirar a um saber pleno, integral, da subjetividade humana e, portanto, da questão da consciência.

Os discursos da consciência

Em seu recente artigo sobre os “manipuladores cerebrais”, publicado na edição de julho de 2003 da revista “Scientific American”, Roberto Sapolsky relata alguns casos impressionantes de parasitas que desenvolveram a habilidade de “mudar o comportamento dos seus hospedeiros a seu favor”, ou seja alguns microorganismos como os vírus, por exemplo, podem levar seres animais e também seres humanos a agirem, a tomarem decisões, a comportarem-se de forma totalmente contrária àquilo que de fato normalmente fariam.
Segundo Sapolsky, roedores infectados por toxoplasma perdem o medo de gatos. O toxoplasma só pode se reproduzir nos organismos dos gatos e para tanto os gatos precisam comer os roedores infectados para que o toxoplasma ali existente possa se transferir para o seu organismo, se reproduzir e ser expelido pelas fezes, prosseguindo o ciclo. Ao gato, o toxoplasma não causa nenhum efeito, mas os roedores infectados pelo toxoplasma perdem a aversão pelos gatos e são levados a enfrentá-los, numa luta, como se sabe, inglória.
O exemplo vem a propósito. O que se quer reforçar com ele é a importância da consideração dos fatores externos para a compreensão do comportamento humano, sem nenhuma intenção de afirmar algum tipo de supremacia insuperável da parte deles. Na questão da consciência, uma compreensão possível de sua gênese e construção advém exatamente da noção clara de que a consciência, na linha do pensamento bakthiniano[3], surge e se afirma através de um diálogo com o exterior, nas relações comunicativas especialmente, em que os indivíduos interagem socialmente. Por isso, pode-se dizer que a consciência individual é um fato sociológico, ou seja, a consciência só se torna consciência, só existe depois que assimila o exterior. Daí ser necessária a noção de que o exterior tem importância para a consciência, mas não uma importância qualquer; o exterior está presente na consciência e de alguma maneira torna possível a compreensão dela, daquilo que a individualidade é, de como dialoga com o exterior, de como formula sua interpretação e compreensão do mundo, entendendo-se que o diálogo é uma forma de compreensão individual do exterior.
Segundo o sociólogo russo, “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais”, relações que se estabelecem primordialmente pela comunicação social, pelo diálogo, através do discurso dos sujeitos que interagem. Surge, portanto, um outro elemento importante no jogo da comunicação: a questão da linguagem, e aparece ela aí como que para afirmar, segundo uma linha antropológica cultural, que a linguagem é produto da cultura, mas é também ela produtora de cultura. Por isso, pode-se dizer, ainda com Bakhtin, que a palavra, entendida como elemento básico da linguagem e vista também como sinônimo de discurso, de fala, “é o modo mais puro e sensível de relação social”, estando, portanto na condição de instrumento a serviço da consciência. Por isso, diz Bakhtin, “a palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação” que a individualidade realiza cotidianamente, constituindo-se, assim, um elemento importante da análise das relações sociais, das consciências, dos contextos etc. Da mesma maneira que pela palavra a consciência adquire sentido, toda a sua ação de dialogar com o exterior revela a forma como a individualidade compreende o mundo e reproduz o que assimila do mundo.
Uma das muitas conclusões que se pode tirar disso é que a cultura individual, assimilada a partir do exterior, se revela pela palavra com que cada consciência expressa sua compreensão do mundo, mas também revela que é ela, a cultura, que estabelece para o indivíduo a visão que deve ter do mundo.

O social e a “divulgação” espírita

O desafio espírita, em tempos de intensa consciência da necessidade de fazer com que o maior número possível de pessoas conheça a doutrina, consiste na solução de um conflito ético: como divulgar sem tornar a doutrina um espetáculo de aparências? Esse desafio, contudo, só existe como tal para aqueles que concebem a existência do conflito. Os que não percebem qualquer tipo de contradição entre as condições colocadas e o sentido espírita do saber, ou que não lhes atribuem um valor considerável, não têm que se preocupar com o desafio.
A questão enlaça os dois pontos anotados: a cultura do espetáculo, que domina o cenário social, e a consciência construída por essa cultura. Uma massa de criaturas, submetida às mensagens constantes de uma “realidade” na qual todos estamos imersos, é levada à adoção de uma consciência passiva e favorável ao espetáculo. A crítica portanto, deve alcançar em primeiro lugar à cultura dominante, ao sistema que reproduz a cultura e faz dela o elemento de dominação. Sob um fluxo permanente de mensagens altamente persuasivas para valores declarados naturais, a cultura tende a se reproduzir e a assumir a aura de natural. Daí o fato de as criaturas numa sociedade do espetáculo capitularem e assumirem o espetáculo como algo intrínseco e normal e convergirem para ele naquilo que as toca. Os espíritas, sob essa consciência, são levados também a adotar o sentido do espetáculo sem qualquer constrangimento e sem nenhuma preocupação com os sentidos dominantes. Enquanto cidadãos preocupados em resolver as dificuldades técnicas e financeiras, as que mais aparecem e as que mais recebem atenção porque se encontram também no centro das novas realidades colocadas pela sociedade do espetáculo, os espíritas caminham para a busca de soluções que minimizem as dificuldades que os distanciam do núcleo midiático dominante – TV, rádio, internet e produtos impressos – e, portanto, os colocam também distantes do grande público que essas mídias alcançam. A realidade do sistema e a cultura do espetáculo não surge aí como preocupação, seja porque estão assimiladas em sua aparente naturalidade, seja porque são tratadas como elementos secundários no jogo do poder social.
Os esforços até aqui empregados para levar o Espiritismo à grande mídia apresentam duas características singulares: parte deles, talvez a menor, é empregada pelos próprios espíritas enquanto membros do chamado movimento doutrinário; outra parte constitui o interesse da própria mídia pelo tema, dada a sua repercussão junto ao público consumidor do produto espetáculo. E aí se pode observar o sentido de espetáculo dominando a ambos os esforços. Filmes, novelas, romances, peças teatrais e outros produtos da indústria cultural obedecem ao signo do espetáculo em virtude das próprias razões que dominam essa indústria, não apenas quando a temática é a espírita. Os poucos e possíveis esforços desenvolvidos pelos espíritas para produzirem produtos com a temática doutrinária apresentam, quase sempre, a característica da espetacularização, em acordo com as normas sociais vigentes. Essa mesma característica de submissão dir-se-ia quase inconsciente às regras do espetáculo, aparecem também e com força quando dos eventos em que o assunto é como resolver os problemas de acesso à mídia de massa para fins de difusão do Espiritismo. Em congressos e mesmo nas discussões recentes nos “chats” e listas da Internet, circulam mensagens que apresentam ampla preocupação com os aspectos financeiros e de convencimento dos meios de comunicação, centrando neles a atenção. Quase nenhuma preocupação sobra para com o sentido da cultura dominante e sua relação com as formas de difusão do saber espírita. A inconsciência para com essa dura realidade que a sociedade do espetáculo coloca para aqueles que pretendem realizar alguma atividade cultural explica porque esforços recentes de programas de TV com temática espírita, feitos por espíritas, apresentaram as mesmas características de tentativa de espetacularização comum à TV. A ausência de suporte financeiro serve para explicar o fracasso desses programas, bem como as suas deficiências técnicas, mas serve acima de tudo para encobrir o grave problema da submissão à forma, às aparências, tornando esse problema ou secundário ou inexistente.
É possível que se esteja perguntando se há alguma possibilidade de realizar o trabalho de difusão do Espiritismo sem a submissão às regras da sociedade do espetáculo. Mas essa é também uma questão por si mesma respondida. A sociedade do espetáculo não é uma abstração criada para justificar um estado de espírito pessimista. Ela é antes de tudo uma cultura e como tal contém em si mesma as razões de sua manutenção, pois é assim que ela se auto-reproduz. Trata-se de uma razão colocada – a de que não é possível superar a realidade dos meios quando se trata de falar com uma grande audiência, ou seja, a razão da sociedade do espetáculo é uma razão de adequação à “realidade” quando se quer ou se deseja servir dos meios técnicos para alguma finalidade pela comunicação em ampla escala, e nunca a contestação dessa realidade. A cultura do consumo não é uma mensagem publicitária, mas um sentido para formação de sentidos e como tal cria consciências predispostas a reproduzi-la.
A pergunta, portanto, deve ser invertida: o que deve ser feito para difundir o Espiritismo sem a submissão à necessidade de espetacularização colocada pela sociedade? Esse é o grande desafio que se coloca aos espíritas, e não à sociedade. Não se podem inverter as questões quando se trata de difusão do Espiritismo. Não é nem lícito nem razoável cobrar dos artistas, dos roteiristas, dos produtores de filmes e novelas, dos editores de revistas e jornais plena observação aos princípios doutrinários do Espiritismo quando esses profissionais, com nossa permissão ou sem ela, se dispõem a produzir espetáculo com a temática espírita. A eles se pode emprestar apoio e sobre os produtos por eles criados exercer o direito de crítica, inerente a qualquer cidadão. O Espiritismo é uma doutrina de caráter público e ninguém precisa de autorização para escrever ou falar sobre temas espíritas. Entretanto, todos os espíritas podem e devem resolver seus dilemas comunicativos a fim de superar os conflitos que o conteúdo espírita encontra em seus contatos com a sociedade contemporânea.

Para uma conclusão possível

No centro de toda discussão sobre comunicação social e Espiritismo na atualidade encontra-se a questão da cultura do espetáculo a serviço de uma cultura maior: a do consumo. Uma contra-consciência é, assim nos parece, a única maneira de antepor esforços de resistência à realidade que não é real, mas aparente. Ou o Espiritismo reúne-se aos diversos segmentos da sociedade que se opõem ao espetáculo e todas as suas conseqüências ou se submete à cultura do espetáculo, fazendo um Espiritismo de aparências para fins de visibilidade social. Em qualquer dos casos, estaremos fazendo uma opção: a opção pela forma e a opção pelo conteúdo.

 

[1] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo, Lisboa, Edições Mobilis in Móbile, 1991.

[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, Capivari, Ed. EME, trad. Herculano Pires, 1997

[3] BAKHTIN, Mikail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, 8a, Hucitec, 1997.

De Ética e Limitações Humanas

A condição humana limita o comportamento ético pleno, mas a disposição íntima do espírito supera os próprios limites. Em termos humanos, a dimensão do bem e do mal, do moral e do imoral, do certo e do errado esbarra sempre nestes dois problemas: o da limitação imposta e o do interesse em superá-la. Muitas vezes, quando se invoca razões como “a ÉTICA depende da ótica”, quer-se referir exatamente à condição humana, pela qual o ser se conduz ao caminho da interpretação particularizada, com vistas a alcançar seus desejos ou concretizar suas idéias.

À primeira vista, pode parecer chocante afirmar que a ÉTICA se circunscreve à ótica, mas o comportamento prático, do dia a dia, costuma confirmar aquilo que, à luz da consciência moral, o indivíduo condena. Diante das regras colocadas pela doutrina, o que se vê constrangido a condenar tudo aquilo que fere a boa moral, mas na prática diária se torna capaz de agir em contradição com o que condenou, seja porque cede às limitações humanas de que é portador, seja porque naquele instante não lhe pareceu interessante superá-las.

Ora, fica muito claro que o conhecimento espírita se destina àqueles que desejam vencer os seus limites pessoais, para se colocar num caminho de confronto com o meio quando este meio está claramente em oposição às melhores regras. A aceitação disso se faz de modo quase que imediato quando a lógica do raciocínio doutrinário é assimiladas, mas o dia-a-dia é que vai marcar definitivamente as conquistas morais esperadas. Parece indiscutível que a simples aceitação das regras espíritas, mesmo à despeito de um certo tempo transcorrido e de um certo traquejo desenvolvido para lidar com situações conflitantes, é insuficiente num primeiro momento para conferir a capacidade de superação.

Por exemplo, quando se lida com regras que esbarram na necessidade de tolerância ou de fraternidade, uma das limitações impostas diz respeito a um outro tipo de regra: as que são colocadas pelo agrupamento ao qual o indivíduo pertence. Não importa que esse agrupamento se chame centro espírita; não importa até que se norteie por uma doutrina que tem normas claras de moral e que , por uma questão de raiz histórica, tenha moral derivada da moral do Cristo.

As regras do grupo existem para ser observadas e não raro estabelecem contradições que são, em geral, resolvidas dentro das limitações humanas, portanto em afronta à moral. A superação dos limites humanos implica quase sempre a afrontar o meio para não agredir a moral, mas o meio exerce pressões de tal ordem que o indivíduo acaba cedendo por razões bem humanas.

Desta maneira, quando se fala em união e unificação no ambiente espírita (conhecido como movimento espírita), fala-se naturalmente em uma série de valores morais implicitamente relacionados: respeito, solidariedade, honestidade, etc. Mesmo porque, sem estes valores qualquer desejo de estabilidade fica comprometido e sem estabilidade, união e unificação caminham para sua própria ruína. A limitação humana neste terreno – quando menos, para atender as regras humanas colocadas no grupo – conduz a solucionar as contradições comumente  segundo o discutível conceito da ótica que estabelece a ÉTICA, e neste caso o indivíduo  aceita submeter-se a comportamento segundo a ótica que estabelece a ÉTICA, e neste caso o  indivíduo aceita submeter-se a comportamentos humanos limitados. Eis quando surgem mentiras  travestidas de verdades, desrespeito parecendo honestidade, intolerância sob a justificativa  de defesa de ideais.

No campo dos interesses que atendem apenas a indivíduos e agrupamentos isolados, dos quais ficam implicitamente excluídas certas parcelas, forjam-se voláteis, promessas irrealizáveis e uma série de outras ilusões que, por uma questão de conseqüência irrefreável, despencam sobre os excluídos na forma violência. Mas não somente isto: levam ao desastre todos os valores recolhidos da filosofia doutrinária, cavando o próprio fosso onde o progresso será enterrado.

Há que se estudar os prejuízos advindos daí, em contraposição aos lucros aparentes e muito exaltados, especialmente em termos de futuro para o ser e para o grupo. A história da humanidade tem demonstrado que, no plano geral, os prejuízos são evidentes e ocorrem em grande escala. E, chamando a doutrina aqui, nesta análise, pode-se dizer que a história do espíritos, em sua longa saga no caminho da superação das limitações humanas, tem demonstrado  também, tão extensos quando penosos prejuízos.

O futuro da doutrina depende do presente do homem: ou se submete à suas ilusões e cria uma satisfação de aparências, ou rompe os limites e alcança a plenitude ÉTICA, firmando-se definitivamente.

Antiga e velha, mas ainda tão nova

Codificador, autor, criador e até mesmo inventor são alguns dos termos utilizados para designar a relação de Allan Kardec com a Doutrina Espírita. Às vezes em tom de crítica à popularização do adjetivo codificador, que sem dúvida encontrou espaço maior no campo do movimento, às vezes por conta de estudos sérios que buscam compreender a doutrina lançada a público a partir de 1857, na França.

O mineiro Augusto Araújo tem debatido pelas listas da Cepa este e outros temas vinculados aos seus interesses de estudo, enquanto produz sua tese de doutoramento baseada “na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec”1. Tem ele reiterado em algumas oportunidades não ser adepto do espiritismo, mas suas intervenções têm revelado sempre respeito e admiração e recebido por parte dos listeiros grande atenção e interesse, além do espaço de discussão bastante profícuo.

No texto que fez publicar no jornal Opinião abaixo mencionado, Araújo expõe suas razões histórico-metodológicas pelas quais entende ser Allan Kardec o autor da doutrina dos espíritos, preferindo este termo aos demais. Baseia-se num raciocínio lógico em que compara as produções filosóficas atribuídas aos pré-socráticos e aquela realizada por Allan Kardec no século XIX. Lamenta o desaparecimento das fontes utilizadas por Kardec (as comunicações dos espíritos), razão pela qual se sente impedido de reconhecer a face “científica” do espiritismo. Ou seja, já não se tem mais condições de analisar comparativamente o pensamento dos autores espirituais e o de Kardec no seu trabalho de produção da doutrina.

Por mais que os espíritas profundamente ciosos de suas crenças justifiquem a pouca importância que atribuem a isso, na opinião de que o conhecimento que a doutrina oferece tem valor maior, afirmando mesmo às vezes que é o que interessa, não se pode negar os fatos. Isso não diminui o valor do espiritismo, absolutamente, mas a lacuna deixada pelo desaparecimento das fontes primárias impede um trabalho mais amplo de análise comparativa. O caminho aí, portanto, embora não estacione, bifurca-se.

A questão da codificação-autoria levantada por Araújo permite outros raciocínios. O termo “codificador”, bastante criticado por alguns, não está em oposição ao que se conhece em comunicação na contemporaneidade. O termo sofreu desgastes, é verdade, com seu uso generalizado por incorporar outras significações, como, por exemplo, a idéia implícita de que o codificador foi apenas um ordenador cuja participação não passou deste limite, o que conferiria maior autoridade às mensagens originais e colocaria Kardec no papel de intermediário isento.

Em sua significação semântica o termo codificar é empregado para designar a ação de produzir mensagem através do código lingüístico que deverá ser “decodificado” pelo destinatário. Em princípio, todo emissor é um codificador e todo destinatário é um decodificador. Mas a idéia de uma comunicação circular nos leva a compreensão de que emissor e destinatário se alternam nestas duas posições, ou seja, Kardec foi decodificador quando estudou as mensagens e codificador quando as ordenou. Nesse processo, evidentemente, sua intervenção deixou as marcas da sua individualidade mostradas pelas evidências.

Assim, Kardec terá sido um codificador ativo, participante e, como é consenso entre os espíritas, autorizado pelas fontes. Se na ausência dos documentos originais contendo as mensagens se afirmará que ele, Kardec, é o autor, para os espíritas deverá ser visto como co-autor, ou seja, o material fornecido pelas fontes espirituais recebeu a impressão do pensamento de Kardec.

Mesmo que Kardec tivesse sido uma espécie de coordenador passivo, ainda assim suas marcas estariam presentes no produto final, porque selecionar e ordenar o material implica em tomar decisões e fazer opções, incluir e excluir, dar voz e retirar a voz, o que, em última palavra, significa participar do e definir o produto final.

Kardec, porém, foi muito além disso. Foi também intérprete das vozes espirituais, liderou um processo, produziu questionamentos, direcionou temas, solucionou contradições, superou dilemas, concordou e discordou até chegar a um ponto consensual com as fontes espirituais.

Talvez aqui devamos tocar na transcrição que Araújo faz de um dos diversos trechos em que Kardec fala sobre a sua participação na obra doutrinária, texto que serve a Araújo para reforçar sua convicção sobre a posição autoral de Kardec. Ei-lo.

“Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857.”

Araújo questiona o emprego do verbo “retocar” como tradução do francês “remanier”, entendendo que maior precisão haveria se fosse usado o verbo reparar, modificar ou refazer. Apesar das justificativas etimológicas oferecidas por Araújo, parece-me que em nenhum desses casos, ou seja, o emprego de qualquer dos verbos sugeridos ou a manutenção do verbo escolhido pelo tradutor não resolveria a questão da intencionalidade de Kardec.

Não há como dimensionar a ação de Kardec em relação às mensagens por ele comparadas e fundidas, senão especular. Aqui, com certeza, o desaparecimento dos originais se torna mais significativo do ponto de vista do interesse do pesquisador, ao impossibilitar qualquer avanço no desejado estudo comparativo.

O que significa, de fato, comparar, fundir e retocar “no silêncio da meditação”? Qual é a extensão disso em relação às idéias e respostas dadas pelos autores espirituais? A declaração de Kardec tem o objetivo simples de chamar para si a responsabilidade do produto final ou vai além? Qualquer resposta objetiva aqui será mera conjectura.

Estou curioso com a tese que o Augusto Araújo está produzindo e pelo que tenho acompanhado deverá apresentar boa contribuição à compreensão do espiritismo. Da mesma forma, estou convicto de que a questão codificador-autor deveria ser vista com mais naturalidade, na perspectiva de que como codificador é também co-autor e como co-autor é ainda assim o codificador de uma mensagem tão complexa quanto extraordinária.

1 Jornal Opinião, p4, Porto Alegre, julho de 2010.