Categoria: Comunicação-Cultura

O flash e a imagem, ou divulgar nem sempre comunica com eficiência

A palavra evangelizar, por exemplo, não está presente no dicionário das obras básicas, sequer tem acento em O Evangelho segundo o Espiritismo, o livro de cunho moral em que Kardec estuda os ensinos de Jesus. Foi a divulgação que consagrou o termo evangelizar no espiritismo brasileiro.

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Esta série de imagens utilizadas na evangelização infantil espírita oferece uma boa ideia da centralidade do Evangelho nesta atividade e de como os espíritas entenderam o que deveria prevalecer enquanto atividade educadora.

Não muito tempo atrás, o estudo do uso do termo divulgar como sinônimo de comunicar causou furor e descontentamento nos meios abradeanos[i]. Sem ilusão e indo direto ao ponto: causou verdadeira divisão e teve consequências que até hoje se vê presentes. Teóricos da comunicação defendiam que a palavra divulgar não contempla o cerne da comunicação, ou seja, a possibilidade de diálogo como meio para o entendimento nas relações comunicativas que os espíritas pretendem estabelecer com a sociedade. Os práticos da comunicação entendiam, como ainda entendem, que a divulgação basta a si mesma.

E assim é. Divulgar está mais para o monólogo, como ação de convencimento do outro, de conquista de mentes e corações e, por que não, do proselitismo. Comunicar, pelo contrário, implica dialogar, ouvir, criar consciência, desenvolver pela reflexão a capacidade crítica e permitir-se despojar do sentimento de propriedade da verdade.

A divulgação está para o flash da câmera fotográfica assim como a imagem está para a comunicação. Ou seja, a imagem implica o diálogo enquanto que o flash apenas clareia a imagem.

Por exemplo. Uma ação publicitária mais do que comunicar pretende divulgar. A mensagem aí se vale de dois elementos completamente nocivos à comunicação dialógica se empregados como finalidade, ou seja, sedução e a persuasão. Por isso mesmo, a possibilidade de diálogo numa mensagem publicitária é zero, mesmo que ela se utilize de argumentos que aparentemente valorizem o diálogo e lhe dê foro de superioridade. A força da mensagem publicitária está na sua capacidade de persuadir e seduzir para o consumo, única verdade que lhe interessa.

No fundo é o seguinte: todo conhecimento só alcança verdadeiro efeito se construído pelo diálogo. O contrário também é verdadeiro: nenhum conhecimento será fundamentado somente pela divulgação. A divulgação não comunica, apenas informa sobre a existência do conhecimento. No entanto, se a divulgação se utiliza do elemento persuasivo, como no modelo publicitário, mais do que informar pretende convencer, mas o convencimento sem o diálogo é o caminho para a crença cega. Daí o confronto inevitável com a razão espírita.

Tomemos o termo evangelizar para reflexão. Trata-se de uma palavra que não tem presença na obra de Allan Kardec e aparece em toda ela uma única vez, na Revista Espírita de março de 1861, como menção ao trabalho dos missionários católicos junto às tribos indígenas. No entanto, o termo ganhou terreno no espiritismo brasileiro de tal modo que está presente na maioria dos centros e federações espíritas. Onde está a causa disso? Na divulgação intensa de seu emprego como expressão significativa da ação espírita junto à infância. Neste caso, a divulgação funcionou como a anticomunicação, ou seja, houve um convencimento altamente persuasivo de que evangelizar é uma ação imediata, necessária e urgente, e para designar tal ação emprega-se o substantivo evangelização.

Assim, quando se divulga o trabalho de educação infantil de um determinado centro espírita empregando-se a expressão Evangelização Infantil, ficam implicadas várias significações e a primeira delas é que a evangelização se assemelha àquela executada pelos jesuítas junto às tribos indígenas, com a diferença de que agora o livro base é O Evangelho segundo o Espiritismo. Um segundo significado é o de esconder uma verdade indiscutível: O Evangelho segundo o Espiritismo não existe fora de O livro dos Espíritos. Atribuir a ele, isoladamente, a função educadora pode significar, junto ao público-alvo, que o livro possui uma espécie de capacidade mágica de resolver o problema da educação do ser humano.

Se, em lugar de divulgar, houvesse a intenção de comunicar, provavelmente o termo evangelizar teria sido substituído por outro, que melhor expressasse esta ação de educar as crianças segundo as noções espíritas da vida. E foi este sentido que, intencionalmente, levou Kardec a abdicar deste e de outros termos para melhor comunicar a nova doutrina que entregou ao mundo.

De uma coisa se está certo: a divulgação não consegue ultrapassar os limites do simbólico, só a comunicação tem esse poder. É o símbolo que age persuasivamente, ferindo e marcando o público que pouco ou nada sabe sobre determinado conhecimento. Por isso, muita gente se coloca no campo da divulgação de crenças, utilizando interpretações particulares dos símbolos que lhe foram oferecidos, sem perceber a extensão real de suas ações e ilusões.

Entre as noções básicas da comunicação está a do emprego de termos em seu significado claro, preciso, de modo a não permitir confusões de sentido e dar à mensagem a objetividade necessária. O uso de palavras devastadas por muitos sentidos para designar um conhecimento novo implica em imensas dificuldades, às vezes intransponíveis, para informar e comunicar esse conhecimento. No meio do caminho se encontram as confusões entre os sentidos consagrados e os novos significados, que a boa comunicação evitaria com naturalidade.

Não se pode negar que houve um intenso trabalho de convencimento dos espíritas para o emprego do termo evangelizar, convencimento que estava atrelado à noção de que a ação por si só justificava o uso dessa palavra, mas que, no fundo, derivava da cultura herdada de velhas tradições religiosas.

Junto ao termo evangelizar se encontram outros, com semelhante situação, tais como templo, céu, inferno, umbral, alma, anjos, demônios etc., a depender de clareza conceitual sempre que empregados.

Recordando, quando das disputas estabelecidas pelos teóricos da comunicação da Abrade entre comunicar e divulgar, restou no final a incerteza e um imenso vazio. Os teóricos, sempre muito atrevidos, ficaram sem espaço e os práticos, na defesa insana da divulgação, ficaram sem a comunicação. O traço que existe entre os dois lados hoje não é de união, senão de separação e separação atada a uma cruel eternidade em sua duração.

[i] Refiro-me aos membros da Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo (Abrade).

O jornalismo espírita diante do mundo contemporâneo

O just in time e o real time do momento cultural humano pedem ações em que o time não se perca no esquecimento do que existe e é.

O jornalismo periódico em que o tempo entre uma edição e outra mantém as fórmulas tradicionais – quinzenais, mensais, bimestrais e semestrais – está, e já não é de hoje, a solicitar uma mudança radical na publicação da notícia e dos artigos. Já Machado de Assis, em seu século, dizia que a notícia da manhã lida à tarde perdia importância. O sentido imediato de notícia é a novidade e num mundo em que os meios ligaram a máquina de escrever à rede, os segundos determinam a novidade ou a caducidade da notícia. Ou seja, determinam a surpresa e o interesse do destinatário, o seu prazer pelo conhecimento do que acontece, ou, então, o leva ao desprezo pela ausência da novidade, uma vez que o acesso à notícia ou não ocorreu no tempo ideal ou já aconteceu por outras fontes.

O mesmo ocorre com uma centena de artigos e crônicas escritos com base no factual, com o objetivo de refletir e expressar opinião sobre ou a respeito de acontecimentos que geram interesse no autor e em parte da sociedade. O tempo se mostra cada vez mais premido pelo imediato, como meio de garantir a relação entre a ocorrência e o contexto, pois funcionam como imagens que vão perdendo significado à medida em que se distanciam do momento fixado.

Já não se pode atribuir, como antes, diferença fundamental entre aquilo que é visual e aquilo que é textual, pois texto e imagem se confundem num mundo em que o olhar parece ser cada vez mais o orientador dos sentidos. O texto factual – artigos, crônicas, notícias – são cada vez mais imagens que se unem a outras visualidades para produzir sentidos e atender aos desejos de interpretação do mundo, segundo a realidade relativa do momento.

Claro, não estamos produzindo uma generalização. Há estudos e pesquisas para os quais o just in time é mais adequado do que o real time, de maneira que os periódicos destinados a difundi-los podem continuar gozando de periodicidade específica, diferenciada ou dentro da tradição conhecida. Não apenas o tempo é mais condescendente aí como também o espaço que estes produtos solicitam.

Qual é, pois, o desafio dos espíritas que se lançam no campo da comunicação?

Em primeiro lugar, entender o seu tempo para adequar-se a este. Objetivamente, agir em consonância com o tempo a fim de obter os resultados planejados. No caso dos jornais impressos e seus correlatos, um caminho a seguir é dotá-los de um espaço digital – sítio – em que o material vai sendo disponibilizado à leitura à medida em que chega às mãos do editor ou é por esse produzido, dando conhecimento disso ao seu público por meio de envio de versões reduzidas do jornal. Ou seja, inverter a lógica atualmente aplicada, em que o jornal digital surge após a publicação do jornal impresso, sendo dele uma fotografia e ao mesmo tempo um arquivo disponível para pesquisa.

Desta maneira, o jornal digital deixa de lado ou pode dispensar fatores como quantidade de páginas, por exemplo, uma vez que sua circulação obedece mais à necessidade do real time, que, neste caso se torna um aliado do editor.

Para aqueles que, por medida econômica ou por adequação aos novos tempos, já não publicam a versão impressa, apenas a digital, a inversão da lógica também se apresenta como auxiliar dinâmica, ou seja, muitos, embora publicando somente jornais digitais, mantém a ideia do veículo completo, periódico, para então torná-lo público, disponível aos seus leitores. A dinâmica da comunicação não só permite como se coloca a favor de uma distribuição sem periodicidade fixa, ocorrendo sempre que novos artigos e notícias sejam produzidos, de modo que a presença do veículo junto ao leitor alcança maior intimidade e, sem dúvida, contribui para a elevação da credibilidade do veículo e de seu corpo editorial.

É verdade que um jornal completo, com muitas páginas, apresenta maior robustez e confere um peso acentuado junto à categoria dos leitores tradicionais, assim como o veículo impresso ainda se constitui na preferência de considerável parcela de consumidores de informação, na mesma linha do que ocorre com os livros impressos. Para atender a demandas dessa ordem, o jornal completo pode continuar sendo distribuído na sua periodicidade normal, costumeira, mas então, não será mais aquele veículo com conteúdo original integral, pois parte dele já terá sido dado à publicidade nas ocasiões anteriores, o que em nada diminuirá sua importância. É provável que esta fragmentação venha a favor do próprio jornal por alcançar a outra gama de leitores que prefere textos menores ou em menor quantidade e dá notória importância ao real time.

Notícias e estudos dão conta de que os veículos e os sítios mais visitados são aqueles que apresentam maior dinâmica em seu conteúdo, com novidades e material de interesse do público alvo constantemente (se não, diariamente) atualizado. O diferencial mais importante, contudo, continua sendo a qualidade do material publicado, aí considerado, em primeiro lugar, o conteúdo, a credibilidade de seus autores e do próprio conteúdo geral. Não se deixe de lado, porém, a importância da apresentação estética e do sempre necessário estilo, que deixa sua marca com força.

A adoção dessa nova dinâmica na veiculação de notícias, artigos, estudos e matérias de opinião de um lado coloca o veículo em linha com a realidade da comunicação contemporânea e, de outro, elimina o indesejado espaço entre o recebimento do material e sua publicação. Além disso, atende a uma necessidade dupla, ou seja, nem quem escreve gosta mais de esperar longamente para ver seu texto publicado, nem quem lê deseja aguardar um dispensável tempo para se colocar a par de fatos e ideias que já estão prontos para circular.

E este telefone que não toca…

O mito, o significado e o sentido num mundo em que o ser humano jamais esteve desconectado da vida interexistencial.

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Isto significa isso?

Que me desculpe Herculano Pires e outros pensadores deste tempo, mas é preciso às vezes ciscar como as galinhas em busca de migalhas, especialmente quando as migalhas parecem ser o único alimento viável para uma geração de corações simplórios e facilmente iludíveis. É o caso do telefone do Chico, popularizado como aquele que só recebe ligações, não faz.

Antes, uma reflexão que mais à frente fará sentido. Os estudiosos das teorias que privilegiam a significação vão entender de imediato o que desejo quando aponto para o título de um livro da semiótica da comunicação que diz: “Isto significa isso, isso significa aquilo”. Não é difícil compreender, basta recordar que muitas expressões utilizadas para comunicar ideias têm seu significado semântico, mas não o representam, ou seja, são tomadas de empréstimo para carregar outro sentido. Talvez seja o que mais ocorre na comunicação humana.

Não é preciso ficar apenas no campo da linguística. Podemos transitar por todas as linguagens, tais como a visual, representada pelas imagens, a gestual e a dos sinais. Raras são as ocasiões em que o símbolo utilizado não está a dizer coisa diferente daquilo que originalmente significa.

Vejamos o exemplo do telefone. Embora utilizemos essa palavra com o sentido de aparelho que permite falar com outra pessoa, o seu significado se ampliou exponencialmente. De imediato, tem-se nítida preferência para o termo celular (“me dê o número do seu celular”, diz-se comumente) quando não se trata de telefone fixo (que é cada vez menos utilizado). Mas a palavra celular também já não dá conta do próprio sentido, pois está a significar algo muito mais amplo do que o simples aparelho de telefonia. Trata-se, agora, de um computador de mão, com múltiplas funções convergentes e o fato de permitir ser usado como telefone perde cada vez mais importância para as outras funções.

Dito isso, vamos ao que interessa. A frase atribuída a Chico Xavier pela qual ele afirma que “o telefone só toca de lá para cá” ganha cada dia mais popularidade. Está hoje na boca de palestrantes e oradores, nos textos de articulistas e escritores, nas rodas de conversa e muitos outros cantos, de modo que se pode, sem medo de errar, dizer que se tornou um verdadeiro paradigma se tomada em seu sentido literal. Mas eu diria que parece um verdadeiro chamamento do mito, dado que recorda quando usada a face daquele que a teria cunhado e se posiciona assim como um discurso de autoridade a estabelecer uma verdade definitiva. Ou seja, o médium não tem poder algum para evocar o espírito e dele receber mensagens, somente o fará se o espírito vier espontaneamente.

Será que é realmente isso que Chico diz? Com certeza, não!

Vamos ao contexto. Diante dos pedidos feitos constantemente por pais de jovens falecidos, que desejavam receber comunicações deles, Chico responderia: “o telefone só toca de lá para cá”. O sentido literal aí aplicado inevitavelmente implicará uma contradição doutrinária, uma vez que Kardec ensina que os espíritos podem atender ao chamado dos que aqui ficaram, tanto quanto podem vir falar com eles espontaneamente. Os livros básicos da doutrina estão repletos desses dois tipos de mensagens assinadas por espíritos das mais diferentes condições morais. Quanto a isso não há divergência possível.

Chico conhecia esse ponto importante da doutrina? Evidentemente. Inúmeras vezes foi convencido a evocar espíritos por diferentes razões, seja de ordem particular dele, seja de ordem doutrinária demandado que era pelos amigos e dirigentes que a ele recorriam. Emmanuel atendeu a diversas solicitações de Chico, fazendo-se presente em momentos graves ou não tanto, bem como outros espíritos. Mas Chico também recorreu a parentes seus, especialmente sua mãe, para resolver questões pontuais que lhe traziam inúmeras dificuldades.

Evocar espíritos constitui um dos pontos das práticas mediúnicas ensinadas por Kardec, ensino esse que, didaticamente, pontua as condições em que os espíritos se encontram após a morte do seu corpo físico, as relações que continuam estabelecendo com os encarnados em termos de comunicação pelo pensamento, as emoções que os dominam, culminando com a disponibilidade dos médiuns para estabelecerem relações mediúnicas sempre muito complexas. Quando evocados, os espíritos podem ou não estar disponíveis, podem ou não ter vontade de atender ao chamado, enfim, podem ou não contar com condições favoráveis para o fazer.

Então, o que poderia querer dizer Chico Xavier com a frase famosa? Que não tinha tempo para evocar os espíritos objetos de pedidos que recebia? Claro que não, pois gastava tempo em muitas outras coisas miúdas, do dia a dia. Que eram muitos os pedidos que recebia, impossibilitando-o a ser justo e atender a todos? Em parte, é possível que sim porque as evocações demandam tempo e paciência, coisas que para alguém premido por muitos afazeres pode não ser fácil. Mas talvez devamos crer que, orientado ou não por seus mentores, Chico preferisse deixar vir espontaneamente os manifestantes, a partir de uma seleção prévia feita pela equipe espiritual, a ter que se ocupar com desgastante atividade de resultados incertos e não raro escassos.

Recentemente, escutamos de um médium que atua na recepção de mensagens de jovens e espíritos recém desencarnados, que mensagens desse tipo, mesmo quando recepcionadas por Chico Xavier, costumam ocorrer em quantidades médias de 10 a 12 por sessão, o que, se confirmado, deve-se considerar de pequena monta em virtude das plateias sempre repletas em ocasiões assim.

Para concluir, a expressão “o telefone só toca de lá para cá” não pode e não deve ser elevada à categoria de proibição de evocar espíritos, menos ainda ser vista como uma verdade das práticas mediúnicas, nas quais apenas espontaneamente os espíritos se comunicariam. Tomar nesse sentido tal expressão é desconsiderar a realidade do mundo ensinada pelo Espiritismo, em que os seres humanos vivem em regime interexistencial permanente, uns à procura dos outros, consciente ou inconscientemente, pelo pensamento. A mediunidade é um dos meios possíveis de contato com os que partiram e assim como encontramos acesso livre ou acesso interditado momentaneamente para os contatos comunicativos entre nós, também assim ocorre quando se trata de espíritos desencarnados.

Apenas os néscios e os estouvados acreditam na falácia da proibição de chamar os espíritos para uma conversa agradável e amigável.

O espírito da liberdade e a liberdade sem espírito

A essência da liberdade é a essência afetiva do bem e da justiça. Tudo o mais é liberdade sem espírito.

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Onde a liberdade do outro é por nós cerceada é um pouco da nossa liberdade que o é.

É absolutamente impensável adotar os princípios espíritas como base teórica do pensamento e não considerar o alto conceito de liberdade de que são dotados esses princípios. Esclarecendo, é impensável do ponto de vista da coerência, da lógica e das práticas no mundo da vida. A Liberdade – não a palavra, pois como se sabe nenhuma palavra tem relação direta com o seu objeto – é o bem maior, o fruto mais expressivo das leis da natureza e aquele que está na base da justiça e do progresso individual do ser humano.

Ser livre é respeitar, sempre. Não é apenas associar a uma doutrina, ideologia ou grupo social, família, partido ou clube esportivo. Nem mesmo manter ou deixar de manter ligação afetiva com as correntes de pensamento, sempre numerosas, dentro das associações, quando aquelas correntes se distanciam de nossas crenças. O respeito é laço, mas não prisão; oportunidade, mas não subserviência, forma de estar sem ser, em suma, concepção de liberdade e liberdade de manter concepções.

No discurso da liberdade, a teoria tem ocupado lugar precioso, mas não definitivo. Este só ocorre quando a teoria desce ao terreno das relações humanas e provoca ações simétricas, ou seja, se transforma em bem saber fazer bem, fazer saber, saber fazer. No estágio teórico, a liberdade é letra, no estágio completo a liberdade é o estado do bem, onde o que não é bem não é nada, não se consuma, não encontra espaço.

Ainda no plano teórico, a liberdade é um bem de que se tem posse quando se habita o plano humano. Ter liberdade não é ser livre, mas ter possibilidade de exercer o ato da escolha na relatividade do ser. E não há contradição quando a escolha recai na decisão de estar entre iguais e contrários ao mesmo tempo, pois é a lei natural que coloca o ser entre seus iguais e contrários como base do exercício do livre arbítrio. A tendência do ser é fugir dos contrários e estar entre os iguais, mas a plenitude possível da liberdade não se realiza quando se está apenas entre os iguais, onde a lei natural é parcialmente obstada.

O exercício da liberdade em seu estágio superior é um sofrimento atroz para aqueles que ainda precisam desse exercício para ampliar a própria liberdade. O ser e o estar contrário que ao outro satisfaz é o desafio da própria liberdade individual, pois provoca reações pouco afetivas, que não raro agridem a liberdade enquanto direito do outro. A administração das emoções quando o outro é o nosso contrário não é perda de parte da liberdade, mas desejo de mais liberdade, pois onde a liberdade do outro é por nós cerceada é um pouco da nossa liberdade que o é. Sentimentos mesquinhos, como ódios, são laços afetivos que mutilam duas liberdades: a minha e a do outro. Desfazer esses laços é aumentar a afetividade e conquistar mais poder de liberdade.

Estar entre iguais e contrários ao mesmo tempo é escolha quando se compreende que é o aspecto mais sábio da lei natural, pois podemos estar entre iguais e contrários sem que seja da nossa escolha ali estar, mas da lei que ali nos coloca. Pode-se saber estar e utilizar da liberdade para decidir estar com vistas a saber fazer saber querer, pois em minha liberdade de decidir eu posso dizer que quero para saber fazer a mim mesmo querer. Aí, a liberdade do mundo da vida, onde o ser resulta do fazer, que é sofrimento a princípio e felicidade como fim.

Estar entre os iguais também leva à descoberta de que se está entre os contrários ao mesmo tempo, pois os iguais se mostram diferentes quando pensam e decidem por coisas que, mesmo que surpreendam, estão no seu poder de decidir. A descoberta da liberdade de pensar como liberdade indominável e incontrolável é a confirmação de que o outro, que nos parece igual a nós, não deseja ceder naquilo que é o único bem que não se pode tirar a ninguém e, assim, sente-se diferente sem que a diferença divida e separe naquele instante.

Aquilo que une é aquilo que também separa. A desigualdade é a essência da igualdade que somente o ser livre pode compreender. Por isso mesmo, a liberdade é o respeito às diferenças no plano da justiça e do bem, onde o que o outro é, é porque é livre no seu direito de ser e decidir. A liberdade está para a justiça assim como o bem está para a liberdade. É na afetividade que o bem se concretiza, assim como a justiça. A essência da liberdade é a essência afetiva do bem e da justiça. Tudo o mais é liberdade sem espírito.

***

Com as reflexões acima, presto minha homenagem a uma pessoa que muito admiro, literalmente dedicada à liberdade, à justiça e ao bem: Jacira Jacinto da Silva, que acaba de ser eleita para presidência da Cepa, um espaço onde a liberdade, com todos os seus empenhos desempenhos, continua modelar num mundo ocupado em diminuí-la.

A audácia de Kardec e a atrofia dos nossos tempos

A consciência que tarda é a lacuna que permite e convida à permanência do velho.

A ideia nova precisa da palavra adequada.
A ideia nova precisa da palavra adequada.

A teimosia, ao lado de outros fatores como a preguiça intelectual e o orgulho prepotente, marca as ações de muitas lideranças do Espiritismo brasileiro. A mudança está no cerne do progresso do homem e onde não há a presença da mudança, há ausência de progresso. Mudar, já diziam os gregos, é o que justifica a permanência. No Espiritismo aprende-se que a vida se constitui de mutabilidade e de imutabilidade, assim como compreendia, também, Saussure no campo da linguística. As leis naturais são imutáveis, mas a natureza e tudo o mais são mutáveis, com o homem no centro das ações a impulsionar o progresso.

A considerar os tempos de Kardec, este terá sido de uma coragem imensa ao assumir a condução de um processo fadado a atrair forças contrárias de grande poder, e ao mesmo tempo a derrubar barreiras tão grandes quanto nos átrios das igrejas e nos depósitos do saber.

No entanto, a comparar a apatia que assola nossos tempos e as lideranças espíritas de forma geral, Kardec terá sido audacioso quando resolve adotar uma nova nomenclatura para a doutrina em gestação. Escolheu o termo Espiritismo, que, ao que se sabe, já estava presente em pelo menos um dicionário inglês, mas não tinha emprego corrente e não sofria da polissemia que costuma assolar as palavras depois de muito utilizadas, sob a lógica do próprio sentido daquilo que tinha em mãos. Para novas coisas, novos termos, diria.

Entendia Kardec, como entendem os homens dotados de saber, que as descobertas, as invenções, as tecnologias, as doutrinas, os conhecimentos quando amadurecidos pelos estudos e as pesquisas carecem de palavras específicas para se apresentar, cujo sentido seja o mais claro possível e, por consequência, de menor polissemia para que a consciência sobre e deles não pese senão na sua medida exata. Kardec fugiu do termo espiritualismo exatamente pela imensa quantidade de significados que compreendia e dotou sua doutrina do termo Espiritismo, ao adepto denominou espírita, o corpo espiritual chamou de perispírito e por essa trilha seguiu até o fim.

Ninguém de bom-senso poderia exigir que a sociedade humana tomasse o Espiritismo por sua doutrina, mas, efetivamente, ninguém que ouve o termo que identifica essa doutrina o confunde com outra, senão quando preso nas redes da ignorância ou quando atado à corrente da desonestidade.

A providência de Kardec na adoção dos novos termos o levaria a esperar que o mesmo procedimento fosse adotado por seus pósteros enquanto líderes dessa doutrina? Sem dúvida, essa é a lógica do pensamento fundador e está explicitada na ideia básica do progresso. Entretanto, mesmo que o fundador não se expressasse a respeito, a força interna dos novos conhecimentos conduz por si mesma à busca de palavras, novas ou de menor uso, para dar sentido às ideias que são colocadas e evitar as confusões prejudiciais dos significados diversos, especialmente no âmbito do senso comum.

O ser humano, vale repisar, vive da e na linguagem, ou seja, existe na linguagem e não sobrevive fora dela. Toda comunicação se faz pela linguagem e, embora não se possa alcançar uma comunicação com absoluta precisão, pode-se comunicar com alto grau de precisão, especialmente quando se cuida de cercar a mensagem de clareza de modo a evitar a multiplicidade de sentidos.

A doutrina, por seus inúmeros pilares, toca mais ou menos em grande parte dos conhecimentos humanos, e por o fazer conduz a mudanças continuamente, mudanças no viés da compreensão, ou seja, da consciência sobre a coisa, e mudanças nas formas de expressão para identificar tais coisas e sua relação com as novas ideias sobre elas mesmas. Assim, a adoção ou manutenção de velhas formas de expressão para designar as novas ideias não só facilita a confusão dos sentidos como impede que o processo de mudança se dê na velocidade necessária. Sem dizer que é terrível estultice manter antigas palavras de sentidos variados para designar as novas ideias, que alteram todos aqueles sentidos acumulados. O mesmo se pode dizer das palavras dominadas por um determinado sentido construído historicamente, de tal forma que absolutamente não conseguem designar outra, senão a ideia que a domina.

Grande parte das lideranças espíritas é preguiçosa, ou demasiado orgulhosa, quando se trata de mudar para melhorar. E se essas lideranças agem dessa forma, o que não esperar daqueles que são por elas conduzidos? Por razões como essa, proliferam e reproduzem-se termos carcomidos pelo tempo, com significado dominante não raro, e por isso mesmo impróprios para as novas ideias, expressões como: evangelizar, doutrinar, culto, templo, céu e tantas outras.

Aqui se faz o “culto do evangelho no lar”, ali a “doutrinação de espíritos”, acolá a “evangelização infantil” e assim por diante. Na esteira dessas adoções inapropriadas, surgem termos que acabam vendo suas ideias originais naufragar no mar dos significados das palavras que vieram substituir, como ocorre com “umbral”, empregado para substituir “inferno” quando seu significado é portador de ideia completamente inversa. O mesmo ocorre com “Nosso Lar”, quando utilizado como sinônimo de “céu”, “água fluídica” em lugar de “água benta”, numa lista imensa de inconsequências linguísticas.

Se o verbo doutrinar em seu significado semântico indica o ato ou ação de instruir sobre determinada doutrina, é certo que também na polissemia dos sentidos em que se insere revela o ato de impor ideias em detrimento de outras, numa ação que se aproxima da tão combatida ideia kardequiana de condenação do proselitismo. Dirigentes malformados não apenas se conduzem autoritariamente nos momentos de contato afetivo com os espíritos em situação de atraso ou desespero, como lhes nega o direito do diálogo ao estabelecer exigências impossíveis de serem atendidas por eles. E agem como detentores prepotentes da verdade, numa ação “doutrinadora” inoportuna e ineficiente.

Já o verbo evangelizar possui no seu sentido o significado de converter para sua crença utilizando os Evangelhos, o que não só pode se constituir em proselitismo, como, ainda e pior, assumir uma inversão de valores de tal ordem que o “Evangelho segundo o Espiritismo” passa a ser o “Espiritismo segundo o Evangelho”, eliminando-se, assim, o conteúdo espírita que pretende dar conta do ensino moral de Jesus. Sem este conteúdo, o Evangelho volta a ser letra morta em sua generalidade. Empregado por largos séculos e escala pela Igreja, em sua ação catequizadora, o ato de evangelizar mantém-se, predominantemente, no seu significado menos interessante para as novas ideias que o Espiritismo apresenta.

O substantivo culto indica claramente o ato de adoração ritualística da divindade, ideia desde sempre combatida pelo Espiritismo, por seus argumentos e a lógica interna deles, de modo que o seu emprego na denominação de atividades, seja nos estudos particulares, seja em reuniões em centros espíritas é não apenas sinal de mau gosto, mas de total despreparo para a ação de comunicar o Espiritismo.

O “imenso esforço de igrejificar o Espiritismo”, tão alertado por Herculano Pires tem merecido o desprezo de muitas lideranças, exatamente pelo fato de ser mais fácil manter o velho e roto tecido religioso do passado que trabalhar para que a doutrina se insira, realmente, na sociedade como um corpo capaz de contribuir para uma mudança cultural sem precedentes no mundo.

Chico Xavier e o desafio do discurso biográfico

Onde se situa o mito e onde está o dever de retratar o Homem?

Chico Xavier e o livreiro Stig Roland Ibsen
Chico Xavier e o livreiro Stig Roland Ibsen

Publicado originalmente no blog da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, ABPE (clique para ler)


Alguns leitores demonstram incômodo diante dos retratos de Chico Xavier feitos pelas câmaras escuras dos seus biógrafos, indagando – e até culpando – esses biógrafos pela ausência da visão realista do ser humano existencial, prevalecendo muitas vezes a visão mítica que coloca o médium num pedestal distante e, consequentemente, o distancia do homem que ele foi. Se é certo que cada cabeça é uma sentença, os autores atuais e futuros da vida de Chico Xavier devem ser analisados na sua autonomia e objetivos; e só a partir daí sentenciados.

O discurso biográfico gera sempre discussões diante da percepção de cada leitor e não raras vezes aparece pleno de ambiguidades e contradições, tais como são as vidas dos próprios seres humanos. Há uma questão de resolução extremamente difícil nestes discursos, especialmente quando o pragmatismo não se mostra operativo no autor. Trata-se de decidir sobre quanto a realidade perceptível do homem enquanto ser contraditório deve receber os traços mais fortes. Quando se trata de personalidades do destaque de Chico Xavier essa questão aumenta exponencialmente.

Alguns exemplos servem de comparação. Ao pesquisarmos a vida de Cairbar Schutel[1] para o livro “O Bandeirante do Espiritismo”, que lançamos no IX Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas, em 1986, Eduardo Monteiro e eu nos deparamos com momentos de grande angústia e, por que não, de questionamentos ante fatos de sua vida que poderiam alterar parcialmente a imagem geral que dele sempre foi veiculada. O pragmatismo que nos movia era o da verdade, que se coloca acima de qualquer óbice, mas, confesso, havia momentos em que isso não era suficiente, seja porque certas evidências não podiam ser comprovadas, seja porque havia do outro lado aqueles que defendiam não ser verdade o que nos parecia ter ocorrido.

No caso da biografia de outro espírita bastante conhecido no Sudeste brasileiro, Pedro de Camargo, o Vinicius[2], o dilema não se deveu a nós, os autores, mas a familiares do biografado, que não desejavam um discurso sem um forte conteúdo emocional, do qual procurávamos nos afastar. A biografia ficou estacionada por alguns anos, até que decidimos concluí-la apesar das deficiências por falta de parte das informações, que nos foram sonegadas.

Até que ponto o realismo não torna o discurso biográfico frio e pouco atrativo? Ou é o contrário? Qual é o limite entre a dura realidade do cotidiano dos seres humanos, em que se colocam no jogo existencial com suas virtudes e deficiências, ao mesmo tempo em que se mostram capazes de realizações extraordinárias? A fotografia nua e crua de seus momentos turvos deve conviver com as imagens coloridas de suas conquistas admiráveis? Se sim, em que medida?

Quando se trata de personagens conhecidas publicamente por suas proezas e suas mazelas, as biografias encontram um tipo de liberdade discursiva que nem sempre é bem vista quando o indivíduo retratado obteve o reconhecimento social por ações que marcam o sentimento, elevando-o a uma condição mitológica. Chico Xavier encontra-se certamente entre estes. Sua vida e sua obra, indissociáveis, não podem ser retratadas sem as cores das belas imagens e o preto e branco da realidade humana, mas é neste momento que o dilema se acentua. Tratado por uns como santo e por outros como infalível, posicionado na escala dos espíritos superiores por mais alguns, Chico tornou-se uma personalidade inalcançável de tal modo que praticamente tornou impossível representar com os toques da realidade sua dimensão humana.

O terreno aí é bastante pedregoso. Adversários de sua obra não aceitam o valor que admiradores lhe atribuem por conta do homem premido pelas exigências do corpo e do meio, que inevitavelmente exercem suas influências e contribuem para ações que deveriam ser vistas com naturalidade, mas não o são, pelo menos em tipos como Chico Xavier. Que outros se comportem por padrões menores é aceitável, mas aqueles que se elevam com feitos pouco comuns, não. Estes têm a obrigação de serem incomuns em tudo.

De outro lado, os admiradores fervorosos do médium costumam tornarem-se surdos aos comportamentos comuns aos seres humanos que o médium demonstrava, preferindo atribuir isto à falta de honestidade daqueles que desejam somente diminuir sua obra com acusações sem prova.

Com isso, constroem-se duas imagens ambíguas: de um lado, a do médium e obra perfeitos e, de outro, a do médium e obra condenáveis. Ambas padecem da falta dessa coerência que solicita a compreensão profunda da dimensão humana para lhe atribuir o valor devido. O ser humano não é o espírito ou o corpo, mas a fusão de ambos, o que o leva a existir no agora, sob a influência das experiências de vidas anteriores e das exigências naturais do mundo físico de agora. Para alcançar realizações expressivas, o ser dual se esforça e sofre, dividindo sua existência entre momentos de grandezas e de fraquezas, premido por uma realidade que o leva a fazer escolhas de experiências a vivenciar. Quando os desejos mais simples não alcançam seu termo, a decepção e a tristeza; quando a obra se projeta vigorosamente no futuro, a felicidade. O homem sonha, o médium age, mas o sonho e a ação mediúnica não estão necessariamente simétricos. Os sonhos estão ligados à dimensão humana do ser, enquanto a ação mediúnica se relaciona ao compromisso livremente assumido. O médium não imagina que deve deixar de ser homem e este não deseja que apenas o médium prepondere. Os conflitos que dessa dualidade surgem não costumam ser bem compreendidos nem pelos adversários nem pelos admiradores, quando deveriam representar apenas a realidade do ser.

Tratado na condição de mito, Chico se distancia do homem; visto somente na sua condição humana, Chico se afasta do médium. Apesar disso, o médium é o homem, o homem é o médium, associação esta que se deu desde o berço e não em um determinado ponto da existência do homem, nem de forma aleatória ou ocasional. Para se entender o médium, requisita-se a dimensão humana, da mesma maneira que, no caso de Chico, para entender o homem faz-se necessária e dimensão mediúnica.

O médium que Chico foi era o espirito no corpo, fundidos, cérebro e memória espiritual conjugados na ação de interpretar os seres invisíveis no momento afetivo da comunicação mediúnica. Nesse instante sublime, o homem não abandona sua condição humana para realizar a ação mediadora, antes, utiliza-a ou coloca-a à disposição do emissor invisível. Kardec descortina essa realidade e a reforça, clamando por uma compreensão capaz de auxiliar no julgamento do produto mediúnico, a mensagem. O médium no corpo é o ser no mundo, necessário ao comunicante, pelo qual este vislumbra a possibilidade de intervir e participar objetivamente deste mundo. O médium no corpo é o ser na matéria, de quem o espírito precisa para suas intervenções aqui, no planeta, desde o lugar invisível em que se encontra.

A rigor, o biógrafo não deveria enfrentar o dilema de um retrato em preto e branco ou somente em cores, porque, assim como as fotografias têm em sua gênese um período em preto e branco e em sua história outro em cores, as vidas humanas também têm. Pelo menos aqui no planeta onde o maior desafio é colorir o preto e branco das ações com os tons da experiência que embelezam a alma.

E o leitor? Bem, este aprenderá em algum momento que o ser no mundo é o espírito em busca da sua própria superação.


[1] Monteiro, E.C. & Garcia, W. Cairbar Schutel, o Bandeirante do Espiritismo, Ed. O Clarim, Matão, SP, 1986.

[2] Monteiro, E.C. & Garcia, W. Vinícius, educador de almas, Ed. EME, Capivari, SP, 1995.

A morte da liberdade é a morte do Homem

LiberdadeDe Leon Denis a Herculano Pires, a ideia de liberdade acompanha a do progresso ou do fracasso do Espiritismo enquanto movimento e vida. Ambos defendem que o futuro da doutrina se encontra nas mãos dos seres que a dirigem, pois é com a liberdade sagrada de pensar e agir que o homem põe e impõe sua direção.

A noção de liberdade que os dois filósofos ensinam nasce dos sulcos feitos na terra da reflexão espírita que Kardec desbravou, ao fazer surgir o espírito antecedente ao corpo e a este posterior. Estava ele contido nas nuvens tardias do nada e tornou-se, então, palpável a todos os olhares agudos. (mais…)

De repente se descobre que a mensagem mediúnica é de péssima qualidade. De quem é a culpa?

As mensagens mediúnicas têm um tripé formado pelo espírito intencional, o médium interpretante e a mensagem final. Na impossibilidade real de haver um médium perfeito, capaz de recolher a mensagem na sua fonte sem nenhum tipo de influência sua sobre essa mensagem, a análise se apresenta como necessária quando se trata de considerar o valor da mensagem. Acrescente-se a noção kardequiana do Espírito, como sendo aquele que tem seus conhecimentos limitados à sua evolução.

As partes presentes no tripé mediúnico – espírito, médium, mensagem – pedem atenção no momento da análise. Outros elementos devem ser considerados, também, mas podem ser colocados em posição de espera até que o tripé seja compreendido*.

O médium está literalmente no centro do processo mediúnico. O contato é feito com ele ou ele faz o contato com o comunicante. A expressão atribuída a Chico Xavier de que “o telefone toca de lá para cá” não deve ser vista como imperativa. Não, segundo Kardec. O médium também pode teclar para o Espírito. Kardec entendeu desde cedo a noção de comunicação como diálogo cujo equilíbrio se traduz por poder igual das partes comunicantes. (mais…)

A palmatória e a oficina destinam-se aos filhos alheios

Ficaria muito agradecido a cada um de vocês, se puderem analisar o pensamento expresso no texto abaixo, especialmente no tocante ao uso da palmatória mencionado em um ponto. Com os tempos atuais reprimindo qualquer atitude dos pais que passe por um leve castigo físico que seja, será que o Irmão X manteria a integralidade deste artigo ou as coisas também mudam de visão no mundo espiritual, adequando-se à nova realidade do mundo social?

Os questionamentos acima são do nosso amigo Marcus Vinícius Ferraz Pacheco. O texto a que se refere tem por título “Resposta do além” (ver post separado), autoria do Irmão X presente no livro “Luz no lar”, datado de 1968 e psicografado por Chico Xavier, livro que reúne páginas de diversos outros autores.

Como se observa, as dúvidas dizem respeito ao complexo tema da Educação e apontam para dois contextos diferentes: o do momento em que o texto é apresentado pelos autores e o momento atual, quase meio século depois. Não é preciso dizer que há profundas diferenças entre tais contextos e certamente isso motivou as reflexões do amigo Marcus Vinicius.

Considero o texto assinado pelo Irmão X primoroso e atemporal, embora tenha sido motivado por um questionamento particular pontual. O autor aproveita a oportunidade de uma pergunta que lhe foi dirigida por uma mãe para uma abordagem com dois vieses, justamente aqueles muito intensamente abordados na atualidade: as responsabilidades do lar e da escola na educação dos filhos. E trata o assunto com uma virilidade irretorquível.

Exemplar esta frase: “Em cada cidade do mundo pode haver um Pestalozzi que coopere na formação do caráter infantil, mas ninguém pode substituir os pais na esfera educativa do coração”.

Irmão X chama a atenção para o que denomina “velho manto das fantasias” que contamina o olhar e provoca a “cegueira do sangue”, desenvolvendo crenças falsas sobre diferenças sociais que nada mais são do que preconceitos que contaminam a mente dos filhos, traduzindo-se por heranças culturais danosas que estarão presentes no seu agir no mundo.

A postura do autor reúne sinceridade e franqueza ao colocar à sua consulente que muitas mães se deixam levar pela inversão de valores na educação dos filhos, disso só vindo a esclarecer-se após a morte, quando o véu da ilusão se desfaz e o chamado amor maternal se mostra em sua feição cruelmente egoísta.

Já, então, Irmão X é levado a referir-se às consequências dessa educação do sentimento desleixada. É quando aponta para a violência que se instala nos filhos contra os próprios pais, manifesta por desrespeito e outras formas na relação cotidiana. Confunde-se ternura e amor com ausência de energia na ação educativa. Daí no dizer do autor o vício que os pais infundem nos filhos com uma felicidade ilusória.

“Horrorizamo-nos quando alguém nos fala em corrigenda e trabalho”, pontua o autor, para a seguir nos oferecer a frase que dá título a este nosso texto: “A palmatória e a oficina destinam-se aos filhos alheios”.

À evidência, Irmão X não está falando daquele instrumento corretivo muito utilizado nas salas de aula do passado que hoje seria algo estarrecedor, abominável. Não se trata de apologia do emprego então nem sugestão absurda para o presente. A palmatória, aqui, é palavra meramente simbólica, representativa da energia que precisa ser aliada da ternura na verdadeira educação, da mesma forma que a palavra oficina, entre outros, possui o significado do labor, da experiência que dá sustentação ao aprendizado.

Estudos e pesquisas apontam hoje claramente o que corresponde ao lar e à escola na educação. O texto do Irmão X aduz o ingrediente que é ainda ausente aí: a reencarnação, que faz aportar nos novos corpos físicos espíritos multimilenários, com suas experiências passadas, necessidades futuras e potenciais a serem trabalhados a partir da família na qual se instalam.

Quando pais e mães, por incompreensão e egoísmo, não encontram a dose certa de energia e ternura na educação dos filhos e os embalam nas cantigas doces da ilusão da vida, com certeza os encontrarão mais à frente colhendo os resultados nas duras experiências do destino.

A “cegueira do sangue”, que hoje se expressa por múltiplas significações, é filha de uma cultura do equívoco. A sociedade carece de uma nova Educação. E a família de uma cultura da verdade.

Espíritos intencionais, médiuns interpretantes. Onde fica o leitor?

Mensagens mediúnicas desafiam a inteligência humana desde Kardec. Com espaço de análise crítica reduzido na comunidade espírita, o leitor se perturba entre sonhos prometidos e realidades sem garantia.

As livrarias estão abarrotadas de romances mediúnicos. Tem-se a impressão de que nada mais se escreve no orbe espírita, senão romances. Parece que a cada segundo um novo livro com tramas reencarnatórias é gestado aqui e ali, por psicógrafos desconhecidos que logo são tratados como especialistas, e conhecidos, que são colocados um passo à frente e revelados como mestres.

O mercado está dominado. O processo se inverteu. Há trinta anos, pouco mais pouco menos, era tão grande o espaço entre o lançamento de um livro e outro que o tempo permitia análises e contrapontos. Não mais. O tempo encolheu e o espaço público abriu crateras que engoliram a razão. Cimentaram, pavimentaram, pintaram faixas de segurança e placas de sinalização, instituíram pedágios e passaram a filmar o movimento dos livros, de modo a garantir que todos transitem com desenvoltura e não sofram percalços por conta da má vontade dos críticos de plantão.

Antes, havia uma cadeia de ecos que supria as deficiências dos jornais doutrinários impressos. A razão espírita expandia-se em diversas faixas auditivas, de modo que os livros mediúnicos quase chegavam aos seus destinatários ao mesmo tempo que suas respectivas análises, no contraponto necessário ao equilíbrio da razão. Evidentemente, a balança sempre pendeu para o livro mediúnico, pois seu apelo é muito mais forte e atinge com muito mais força o leitor, carregado que está do simbolismo da fonte oculta. Mas a simples presença do olhar crítico fazia com que a razão perturbasse de certa forma a emoção e o equilíbrio mínimo se desse. Não importa para onde pendesse o leitor; tinha ele sempre a oportunidade de decidir com base em duas possibilidades.

O tempo, implacável em sua duração, dobrou-se inúmeras vezes como um origami, reduzindo drasticamente o espaço da crítica e ampliando proporcionalmente o espaço do livro mediúnico, com predomínio do romance. O argumento das necessidades humanas de crescimento moral prepondera e já não precisa mais de defensores públicos, uma vez que domou o tempo e ficou preso numa das dobras do origami. Ele agora se manifesta em desprezo à crítica e reforça a visão de um religiosismo sacro. O espaço para o livro mediúnico está aberto e uma de suas garantias está no lucro, fortemente amparado pela mais valia. As editoras o querem, a mídia o aplaude e, mais forte do que tudo, o público o consome.

Ante a dura e cruel realidade, os próprios autores não mediúnicos também sucumbem, destroçando-se nas paredes da resistência editorial, à busca de também produzir seus romances, para manter-se nas prateleiras e nas listas virtuais. Com a crítica ausente, não se sabe a quantas anda a arte literária nem o conteúdo doutrinário dessas produções volumosas. Isso já não mais interessa. A fama fabricada a tudo recobre e o mundo de regeneração, na ilusão das imagens brilhantes, parece próximo, muito próximo, a surgir das brumas dos sonhos que relembram o passado distante, repetindo a saga de leões e cristãos na arena romana.

O mercado é acrítico. Quando algum desgarrado teima em enfrentar a fera dominadora, logo é enquadrado como fora de contexto, perturbador da ordem, inimigo do bem, pois o manto verde de uma paz de água estagnada está posto ante o olhar das massas feito um pêndulo nas mãos de hábil hipnotizador. Basta uma ordem para que o inimigo silencie.

Nos gabinetes, a burocracia do poder mantém os homens do comando ocupados e envoltos em obrigações. O trono do rei, constantemente ameaçado, não permite afastar um olhar furtivo sequer para observar o exterior, senão aquele permitido pelas ventanas digitais que é recolhido por câmaras adredemente postadas de modo a manter uma vigilância segura. Ao poder se atribui a única possibilidade de cumprir os desígnios sagrados que as hostes superiores outorgaram.

Nas praças, parques e avenidas a massa comunga da frágil liberdade de refrescar-se para contrabalançar as imensas pressões do dia a dia. E a essa massa é oferecida a oportunidade esplendorosa da leitura dos romances mediúnicos, de modo a mantê-la sonhando com aquele futuro de soluções mágicas e esperanças vãs. O importante não é a dura realidade de sua impossibilidade, senão alimentar sonhos, desejos e ilusões como contraponto dos conflitos que dividem e sangram.

Quando se esgotarem as reservas morais das massas e o relógio do tempo marcar a hora nona, elas se levantarão para reclamar seu lugar e seus direitos. Aí, então, os burocratas da fé se verão acuados em seus recintos resplandecentes. Todos os lugares, então, estarão ocupados e não lhes restará senão fugir para os recantos de suas próprias incapacidades e chorarem as lágrimas arrependidas dos desmandos.

Médiuns são intérpretes das ideias, afirma Kardec, mas as águas da chuva torrencial sub-literária inundam a terra da razão, abafando a voz do mestre lionês. Na era pós Chico, triunfa o produto psicográfico sob a ilusão de que os médiuns são passivos e por isso mesmo excepcionais. Como se as ideias corressem sem obstáculos pelas sinapses cerebrais e surgissem cristalinas na ponta do lápis. Ou das teclas do computador.

O rei em seu trono de fantasia só cuida de vigiar aqueles que ameaçam a paz do reino.