Categoria: Comunicação-Cultura

“Auto-observação é cura”

O LIVRO DO SAMPAINHO*

Capa SampainhoDe há muito se sabe que escrever é também uma maneira elegante de conversar consigo mesmo. Não só elegante mais viril, ainda. Quando não encontra o parceiro ideal para diálogos demasiado cansativos, o ser pode se tornar escritor e assim resolver o seu problema. E parceiro ideal, convenhamos, só mesmo no campo virginal da utopia.

O problema se agrava quando o ser se descobre num turbilhão de pensamentos estranhos e parecidos entre si. E por se enredar como presa nesse continuum o ser ou fala ou escreve, senão enlouquece. Evidentemente, as idiossincrasias se somam e dão uma dimensão maior, pressionando ainda mais a necessidade de diálogo.

É bom que se diga que não há ouvidos humanos capazes de atender à necessidade desse tipo de ser, para que nossos amigos e nossos amados familiares não fiquem consternados, constrangidos e decepcionados. O escritor é assim mesmo, solitário em meio à multidão. Envergonhado diante do elogio. Vaidoso sem nem sempre admitir. Necessitado daquilo que não pode alcançar em plenitude senão no papel: dialogar. Porque papel se amassa e atira ao lixo e gente se ama.

Falo isso a propósito do livro do meu amigo Sampainho, cujo título é: De repente a coisa modifica. O solo árido da capa aí acima com seu lírio não deve surpreender, mas interrogar.

A constante de lidar com a comunicação criou um hábito (ou defeito?) em mim. Quando leio ou vejo qualquer coisa artística me pergunto: qual é a mensagem? Agora não foi diferente. Acostumado a ter sua presença em nossas reuniões espíritas familiares, tomei do exemplar e procurei por Sampainho página por página com a finalidade maior de extrair o sentido do seu texto ou a mensagem final.

Como tenho quase o dobro da idade dele, conto com essa suposta vantagem para analisar o seu diálogo ficcional. Concentro-me na mensagem e deixo ao leu as preocupações com o apuro textual.

Sampainho é o sábio que procura a sabedoria. E sabe que ela se encontra disfarçada nos seres do mundo, nas coisas do mundo, no dia a dia da vida. Esse tipo de sabedoria é difícil de perceber porque vive no anonimato ou na pele das pessoas comuns, nem sempre capazes de serem confrontadas.

Primeiro surge o Sebastião, um senhor ansioso, experiente e portador de muitos conflitos. Em Sebastião, Sampainho coloca virtudes e a maior delas é o silêncio. Este permite observar a vida, os seres, os desejos, as ambições, crenças e vícios. Sem perder o objetivo maior: aprender.

Sebastião procura a experiência que Sampainho também procura.

Depois, surgem outros personagens, mas são todos eles o mesmo Sebastião. A diferença está na roupagem, que não altera a mensagem: observar e mudar, mudar e observar. O passado é, o presente será. E justifica a frase que mais me tocou: “Auto-observação é cura”.

Sexo, bebida, filosofia e poesia, tudo ao alcance das mãos, essas mãos que pegam e ao mesmo tempo se preparam para alcançar. Tudo isso pode ser visto pelo olhar pragmático ou através das metáforas tentadas e tentadoras, que fustigam constantemente a resistência do autor.

A maior dúvida, contudo, que me fica ao final do texto do Sampainho é: o livro é autorretrato ou outro retrato? Para contrastar com essa dúvida, minha certeza: o autor e amigo fez livro bom e fará melhor ainda quando seu tempo de vida dobrar e ele alcançar a curva da estrada, onde tem um pé de araçá, como constata o poeta.

* A edição é do autor e pode ser adquirida diretamente com ele. Contato: sasampaio2@hotmail.com

Como estar por dentro sem estar dentro? Ou como estar dentro e ficar por dentro?

 

Se seu amigo lhe fizer uma dessas perguntas, ou as duas, saiba que ele está querendo lhe complicar. Fuja. Depois de tecida, a rede praticamente elimina a possibilidade de você encontrar o verdadeiro fio da meada. É por isso que muitos dos que estão fora jamais conseguirão ficar por dentro. E muitos dos que estão dentro também.

Não bastasse a complexidade da vida em sua combinação espírito-corpo, há ainda a complexidade da mente humana na sua relação sócio comunicativa. Que pode ser afetiva ou simplesmente não. Uma complexidade complexa. E por isso terrível.

Estando fora, podemos ficar por dentro em parte, e isso com muita argúcia e um pouco de esperteza. A trama da rede lhe oferece ene possibilidades e muitos caminhos falsos. Por isso é rede e para isso é tecida.

Se lhe interessa desvendar a rede, qualquer rede, cuida de não se iludir com os balões de ensaio e as falsas indicações. Os balões e as indicações costumam ser preparados ao mesmo tempo em que se tece a rede. Na verdade, fazem parte da rede.

A comunicação é uma rede que está na rede e a tecnologia é um aparato da rede que não pode ser analisado ou compreendido fora da rede. O senso comum toma a mídia como sinônimo de tecnologia, o que nem sempre é de bom senso. Não há tecnologia sem rede nem rede sem tecnologia. Desde sempre.

O ser humano é o tecelão da rede, mas também sujeito dela. Está nela enquanto a tece, sem ocupar um lugar fixo visto que se movimenta como um aracnídeo em seu vai e vem constante. Isso explica sua onipresença parcial e sua profunda incapacidade de sempre estar por dentro, embora esteja dentro.

Escutar é do ato comunicativo dialógico praticado na rede, contudo tomou-se providências para regular a escuta. Ela ou é legal ou não. A regulação não é da natureza da rede, mas do seu ocupante e do desejo abissal que o ser tem de dominá-la.

Eis então duas ilusões simultâneas: a possibilidade do domínio da rede é uma, a outra é controlar as escutas. Em qualquer nível ou ponto da rede. A razão disso está nas vozes que circulam na rede.

A voz e a escuta são assim os dois fundamentos da comunicação e explicam porque o controle de uma e outra o tempo todo é absolutamente impossível. Como parar as vozes sem violência? E como manter a violência sem as vozes? Pois se há voz há escuta implícita na relação comunicativa. Se legal ou ilegal é pouco significativo para um ato, o comunicativo, que está na base de tessitura da rede.

Sem comunicação impossível tecer a rede. Onde ela para, a rede se rompe ou estanca. A trama prossegue sempre sob o comando comunicativo, na direção que este lhe imprime. Assim, muitas vozes, muitas escutas, direções diversas.

Se tomarmos um ponto demarcado da rede, significativo em termos de universo de observação, ainda assim veremos uma situação caótica pela complexidade comunicativa. Estamos dentro sem necessariamente estarmos por dentro, ou seja, sabemos pouco ou nada de muito, mesmo que pouco e muito sejam termos indefiníveis.

Por outro lado, para nos apropriarmos da rede precisamos dar visibilidade a ela. O que só pode ocorrer pelo simbolismo. Mas isso é conversa para outra ocasião.

Importa destacar o fato de o ser estar presente na rede como seu autor ao mesmo tempo em que a compreensão disso o desafia e solicita esforço enorme para estar por dentro, situando-se próximo ou distante dos pontos da rede onde os acontecimentos ocorrem.

Em suma, necessita do saber para um agir consciente mínimo. E para além de qualquer ilusão.

Sobre editoras, romances, capitalismo e afins

 

Luiz Gonzaga Pinheiro*

Li recentemente um artigo do amigo Wilson Garcia sobre o mercado de livros espíritas no Brasil e me reconheci naquele recado gráfico, naquela velha ferida gangrenada que desisti de por unguentos. Há muito tempo os escritores sabem que a caridade, o ideal de divulgar a doutrina, o questionamento sério, a atualização científica doutrinária e outros temas congêneres, não mais interessa à grande maioria de editores preocupados mais com o crescimento de suas empresas do que com a reforma moral da Humanidade.

Andam a caça de romances açucarados que não forcem a mente do aprendiz, mas que vende muito, sem proporcionar resultados práticos na aprendizagem qual ocorre com estudos ou pesquisas. Romances adocicados, alguns são realmente bons, apenas visam o deleite do aprendiz que se sente gratificado por encontrar provas de que a reencarnação, as leis de causa e efeito e outras particularidades espíritas existem mesmo, pois um Espírito está lhes dando atestado através de uma obra.

Todavia, o fato de ter uma prova, geralmente proporciona mais responsabilidade a quem a recebe. Não entendo porque um romance, simplesmente por ser mediúnico, tenha maior valor do que outro vivido, estudado e acontecido na casa espírita levado a público por um pesquisador. Os pesquisadores, que são raros, diante dessa insensatez que é a invasão na literatura espírita de romances melífluos, mas que nada adicionam à Doutrina, se retraem e continuam seus trabalhos longe desse cenário.

A atualização científica da Doutrina, por exemplo, assunto do interesse de Kardec e de inúmeros desencarnados honestos e progressistas não recebe o interesse dos editores, porque segundo eles, é um assunto antipático, anti-doutrinário e não vende. Será?

Posso garantir que nesses tempos de transição é no que os Espíritos interessados no progresso e na evolução doutrinária mais falam. Não se trabalha mais para o progresso do Espiritismo, mas para agradar parcelas do movimento que se acomodam em literatura inócua, repetida dezenas de vezes sob o nome de autoajuda ou sob a forma de romances que se assemelham como se fosse cópias.

A realidade nua e crua do lado obscuro do astral inferior, alvo de todas as atenções dos Espíritos iluminados, o trabalho dos missionários que têm como objetivo higienizar o planeta, o dia a dia da desobsessão que se alastra pelo mundo, a pesquisa séria levada a efeito por grupos de estudiosos e de pesquisadores, os questionamentos, as nuanças e a evolução da mediunidade não interessam a algumas editoras por estarem amarradas ao que Kardec disse ou não disse, pela fobia ao novo. Argumentam o conceito de pureza doutrinária, mas no fundo negam a lei do progresso, pois a Doutrina é evolutiva; outras editam para um público ávido por novelas quixotescas.

Temas como doutrinação, perispírito, mediunidade, obsessão, corpos espirituais, física quântica, tecnologia dos desencarnados e outros escancaradamente apresentados pelos mentores nas reuniões sérias são deixados de lado para que tópicos secundários que nada acrescentam ao corpo doutrinário sejam divulgados.

É comum escritores espíritas doarem seus direitos autorais para Centros Espíritas e obras sociais. Não seguem este exemplo as editoras. A começar pelos direitos autorais de apenas 10% para quem escreve e 90% para quem edita. Somente este fato já demonstra o dedo capitalista nesta fatia. Seria mais natural que os escritores se unissem, formassem uma cooperativa e subtraído os custos da obra doassem seus lucros para entidades filantrópicas e Centros Espíritas que fazem trabalhos sérios.         Alguns donos de editoras têm um discurso pronto citando os custos, os empregados, os encargos sociais, a canseira com o trabalho, mas esquecem de citar a margem de lucro. Nesse mar de insensatez louvo a Editora EME que sempre se norteou pela excelência na apresentação da obra, no menor custo para o público e na coerência doutrinária. Jamais fui abordado por ela para mudar a essência do que escrevi para satisfazer a quem quer que seja. Um dono de editora não tem o direito de distorcer a mensagem espírita de um autor encarnado ou desencarnado para satisfazer a seu público. Não pode induzir para que alguém escreva um romance desta ou daquela natureza ou estilo só porque vende mais ou é do agrado de determinado público. Os mentores não estão à disposição de médiuns que exijam romances ao seu gosto, principalmente quando o objetivo é a ganância.

Ando um pouco afastado e silencioso ultimamente devido a decepções causadas justamente por este tema. Como um amigo o abordou, imediatamente me solidarizo com ele. Lembremos de que somos testemunhas de um período em que tais procedimentos são analisados profundamente pelos mentores, um período de separação do que é de Deus e do que não é. E para tudo que é de Deus não haverá impedimentos. Igualmente, para tudo que não é de Deus será banido da face do planeta.

* Luiz Gonzaga Pinheiro é natural de Fortaleza-CE, onde exerce a profissão de professor de Ciências e de Matemática, na rede pública do Estado. É engenheiro pela Universidade Federal do Ceará e licenciado em Ciências pela Universidade Federal do Ceará. Tem mais de uma dezena de livros publicados, entre os quais os consagrados Terapia das Obsessões, Pérolas da Infância e Mediunidade – Tire suas Dúvidas, entre outros.

 

Nossas editoras entraram num caminho comum. E agora?

A OPINIÃO DE JOSEVAL CARNEIRO, SALVADOR, BA

(Resposta enviada ao editor e diretor da Editora EME, Capivari, SP)

Obrigado, caro amigo, por homenagear-me com um texto bem elaborado, que será objeto das nossas reflexões.
Todavia permita-me, acho que ingressamos numa Nova Era Psicológica, Joana de Ângelis e Divaldo Franco, à frente.
É que a psique humana vem sendo objeto, cada vez, mais, com os avanços, inclusive, da neuropsicopatologia, de investigações, como se retornássemos à La Salpetrére, com Jean Marie Charcot., Richard Richet, Crooks e tantos outros investigadores da fenomenologia, agora aprofundando a sonda nos escaninhos da alma e da conduta psicológica humana. Por isso venho me dedicando à autoajuda. Com a ajuda inestimável do nosso prestimoso editor, Arnaldo Camargo.
No dia 17,. na Mansão do Caminho, Divaldo e um grupo de psicólogos, estará mais uma vez adentrando o imenso terreno da psicologia, com um Seminário, entrada franca, mediante alimentos não perecíveis. A Série Psicológica avança. E eu costumo acreditar em tudo que Divaldo faz. A era romanceada, adocicada, vem cedendo lugar ao estudo da psique, na busca de respostas para os ingentes problemas do homem de hoje, como a ansiedade, o estresse e a depressão, que avultarão, segundo a OMS, como primeira causa mortis no mundo, até o ano 2025.
E a rearrumação etnicogeográfica, dos povos do oriente, certamente acrescentarão um novo tempero à Nova Era de Regeneração Planetária.

Nossas editoras entraram num caminho comum. E agora?

 

Recebo informações diárias das editoras espíritas, das distribuidoras, como todo mundo que colocou lá seu e-mail. Ofertas e mais ofertas diárias. O espantoso é que elas fazem o mesmo que as editoras comerciais: oferecem descontos, frete grátis e coisas do gênero. Precisam vender, o mercado está restritivo, a economia encolheu e o consumidor parece que sumiu.

É preciso pagar as despesas, ter lucro e… disputar o mercado. Num regime capitalista, o mercado sempre existiu, mas assume características próprias segundo o momento. Quando o primeiro livro espírita foi traduzido e editado no Brasil, o mercado para esse tipo de produto não existia: foi preciso desenvolvê-lo. Portanto, se concorrência havia, era com produtos similares, mas não diretamente. Nem por isso as vendas eram fáceis. Naquela ocasião, leitores formavam uma elite no Brasil e grande parte dos consumidores era, ainda, analfabeta ou quase, além do poder aquisitivo restrito.

Quando Chico Xavier surgiu pelas asas editoriais da Feb, o mercado do livro espírita já estava se estabelecendo. Sua obra deu um impulso grande a este mercado, mas, ainda assim continuava restrito e a Feb não tinha quase concorrência, o que implicava em produtos de custos baixos e embalagem deficiente, ou seja, capa, miolo e acabamento ruins.

Na década de 1970, a Feb dominava os principais títulos de Chico Xavier, mas havia perdido o domínio dos direitos autorais das obras a partir de então psicografadas pelo famoso médium mineiro. Chico libertou-se editorialmente de sua fiel escudeira e passou a publicar seus livros para editoras novas e algumas já com certo grau de experiência. O que, diga-se, a bem da verdade, despertou uma quase guerra pela conquista de seus títulos entre alguns editores.

O mercado, então, havia sofrido mudanças profundas e o consumidor de livros espíritas já fazia comparações entre o produto que adquiria e aqueles que eram oferecidos pelas editoras comerciais. A Feb descobriu que precisava mudar a qualidade do seu produto, caso quisesse continuar a participar do mercado com presença forte. Como já antevira Kardec muito tempo atrás e não por conta das questões de mercado, o conteúdo é importante, mas a apresentação tem sua equivalência.

Na década de 1980 observou-se um fenômeno ascendente no mercado do livro espírita: as três ou quatro editoras comerciais, de propriedade de espíritas, mas destinadas a produzir lucro para seus detentores começaram a enfrentar uma forte concorrência dos novos empresários interessados nesse mercado. Embora aqueles proprietários visassem lucros, tinham eles uma característica especial própria dos empresários que desejavam e dedicavam-se a investir muito mais interessados na expansão do conhecimento espírita, preocupando-se menos com sua sobrevivência enquanto empresários.

Três exemplos nestes ares rareados: A Lake, fundada por Batista Lino, passou para outras mãos após sua morte e deixou de lado, em parte, essa característica; A Edicel, de propriedade do dedicado editor Gianninni, que quase foi à falência por lançar, principalmente, a volumosa Revista Espírita comandada por Kardec, também mudou de condições após sua morte; e a Editora Calvário, uma espécie de apêndice da Editora Saraiva, viu seus dias encerrados com a morte de seu idealizador.

A década de 1990 vai consolidar o mercado do livro espírita. Inúmeros empresários vislumbram o potencial desse mercado e resolvem investir fortemente; algumas editoras já consolidadas criam departamentos e selos especiais para livros espíritas, contratando profissionais conhecedores desse mercado, todos espíritas. E os editores espíritas se vêm obrigados a adaptarem-se à nova realidade de um mercado altamente concorrente. A ideia do produto barato e de apresentação simples já não mais se sustentava frente às novas realidades.

Assim, os anos 1990 sepultam definitivamente a era romântica do mercado editorial espírita. A quantidade de editoras mais que triplicou e o receio de empreender neste mercado segundo as regras do capitalismo foi superado, até mesmo por aquelas editoras espíritas remanescentes da era romântica, que logo viram-se obrigadas a adaptarem-se para não desaparecerem.

O mercado do livro espírita está hoje profissionalizado, mas também estruturado segundo os melhores princípios da administração e aqueles que eventualmente teimam em se manter próximo da era romântica estão fadados ao fracasso. Setores antes descuidados sofreram profundas mudanças, tais como os do planejamento editorial, editoração, impressão e acabamento. Ao mesmo tempo, um dos principais gargalos que era a área de logística não só encontrou soluções rápidas com as mudanças tecnológicas, mas principalmente com o aparecimento de distribuidoras de livros espíritas nos moldes das melhores empresas do mercado editorial brasileiro.

Ao mesmo tempo em que a profissionalização do mercado editorial espírita trouxe ganhos para a disseminação social dos princípios doutrinários, impôs condições de concorrência dura. Profissionais de marketing, de gestão empresarial, de logística e outros aportaram nas nossas organizações editoriais e dotaram-nas de planejamento estratégico com vistas a alcançarem objetivos específicos do sistema capitalista, ou seja, o lucro. E quando se fala em lucro fica difícil apartar-se da mais valia.

As consequências disso é a busca pelo mercado, onde os termos lealdade e deslealdade encontram significados próprios e nem sempre em acordo com os princípios éticos defendidos pelo espiritismo.

Ações agressivas de marketing num mercado acostumado a uma espécie de caridade e desprendimento geram reações de desconforto; campanhas publicitárias planejadas segundo os princípios da persuasão e da sedução ocasionam constrangimentos, mas vão convencendo um público acostumado às mensagens pagas de uma cultura de consumo na qual foram educados.

O editor espírita olha para o seu público alvo como qualquer empresário do mundo capitalista e vê desejos, necessidades existentes ou potenciais, fazendo com que os cilindros das impressoras girem no ritmo das pesquisas indicadoras dos números da demanda. Enquanto o editor da era romântica se preocupava com o equilíbrio da oferta, especialmente relativo aos títulos, o editor do novo mercado imagina, principalmente, a capacidade do público de consumir. Qualquer encalhe será considerado danoso para o negócio.

Estamos no mundo do capital, em que editores, distribuidores e pontos de venda (livrarias) pressionam uns aos outros em busca do máximo lucro. O editor planeja o lançamento de uma nova obra e consulta seus distribuidores, oferecendo-lhes descontos progressivos; os distribuidores, munidos de instrumentos de negociação poderosos, condicionam a compra a uma operação casada: publicidade em seus catálogos de livros a preços não poucas vezes salgados. O quadro coloca o editor espírita diante de uma situação sem saída; precisam dos distribuidores, mas sabem que o custo do produto precisa considerar essa situação, uma vez que seu poder de alcançar diretamente o público consumidor é diminuto.

Na ponta encontram-se as livrarias, com suas exigências de margens de lucro que muitas vezes as próprias editoras não possuem. O seu poder de negociação é também considerável e os descontos sobre o preço de capa tendem a se situar na faixa de 30% a 50%, quando não exigem, como certas distribuidoras, receber o produto em consignação, situação em que nada precisam investir para vender. Os riscos do negócio estão todos nas mãos do editor.

As condições impostas por um mundo capitalista costumam ser, e são, altamente danosas quando se trata de egoísmo lucrativo. Já não se precisa mais de pesquisas para saber que o público consumidor de livros espíritas dá preferência aos romances e são estes que dominam o atual mercado editorial espírita. Na ânsia da sobrevivência comercial, as editoras disputam os médiuns e estes parecem brotar das entranhas do fenômeno numa profusão incalculável, com obras de conteúdo, o mais das vezes, duvidosos, para não dizer do estilo quase digital de seus textos sem brilho.

As mensagens publicitárias persuasivas que os apresentam ao consumidor falam de um conteúdo rico de dramas e sonhos, em contraste com a preocupação dessas obras de apresentarem, o mais das vezes, tramas enlaçadas em situações reencarnatórias submetidas à lei de causa e efeito que beira à de Talião. Aí, o equilíbrio dos princípios que harmonizam a vida se esconde sob o tapete da ilusão, ajudando a criar quadros traumáticos em lugar de oferecer esperanças e consolações baseadas na razão espírita.

O mundo literário espírita atual trabalha para formar uma cultura do livro consumível, com tramas ficcionais frágeis e ingênuas. O espírita forjado nessa cultura ignora por completo a literatura clássica e não sabe dizer quem foram Leon Denis, Gabriel Dellanne, Alexandre Aksakof, William Crockes e outros tantos, que ajudaram a traçar as bases da razão espírita. Até mesmo autores contemporâneos de envergadura, como Deolindo Amorim e J. Herculano Pires, vão sendo paulatinamente esquecidos diante da fúria editorial dos romances mediúnicos.

Resta, com muita sorte, as obras de Kardec, mas nem todas. Por claras razões preferenciais e afetivas, “O evangelho segundo o espiritismo” desponta como o livro básico mais vendido e, portanto, editado, vindo na sua esteira, muito distante, “O livro dos espíritos”. Já “O livro dos médiuns” entra numa falta de interesse editorial junto com “O céu e o inferno” e “A gênese”, por causa do pequeno público desejoso de seu consumo. Mas é preciso deixar patenteado que “O evangelho segundo o espiritismo” não existe sem “O livro dos espíritos”, o que não é fácil convencer, assim como não existe um “espiritismo segundo o evangelho” como – pasmem – parece se cristalizar dia a dia.

Eu não culpo os editores, distribuidores e livreiros espíritas por esse quadro caótico da literatura espírita. Eu me culpo a mim mesmo por acreditar teimosamente que a era romântica deveria andar lado a lado com o capitalismo, reduzindo a desenfreada busca pelo lucro e a mais valia e colocando um pouco da alma humana na ingente tarefa de oferecer também conhecimento ao público ávido de distração. Enfim, não me perdoarei jamais por pensar assim.

Cinema: partida e chegada. E o desafio Tornatore

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Roman Polanski e Gérard Depardieu protagonizam o suspense de Tornatore.

A temática espírita esplendidamente colocada nas telas da arte do real por um profissional reconhecido pela crítica.

A sala estava em silenciosa expectativa. Meus alunos de Teoria da Imagem deveriam resolver dois mistérios: primeiro, como assistir com atenção um filme que se passa a maior parte do tempo num quadrilátero diminuto e, segundo, qual é o discurso final do filme, a partir da localização do fator intencional do conhecido diretor Giuseppe Tornatore.

“Uma Simples Formalidade” tem sido um filme desafiador há mais de vinte anos. Diminuta porcentagem daqueles que o assistem consegue atinar com os propósitos do autor e com a realidade que apresenta. Todos concordam que se trata de uma excelente produção daquele que é considerado um dos grandes cineastas italianos da atualidade; ninguém duvida de que os dois principais protagonistas da história – Gérard Depardieu e Roman Polanski – têm um desempenho extraordinário. Mas o filme não foi sucesso comercial e costuma não aparecer entre os mais destacados de Tornatore.

De fato, trata-se de um filme inapropriado para consumo de massa e, talvez por isso, os espíritas não tenham se interessado por ele como podiam e deveriam, pois Tornatore faz um filme doutrinário sem dar na pinta e o faz com maestria, arte e imagens.

Os críticos e admiradores da arte do real produziram muitos textos sobre o filme de Tornatore, mas são na maioria inconclusivos, alguns lindamente ordenados, com abordagens psicológicas profundas, mas sem chegar a lugar algum, porque para chegar onde o autor pretendia seria preciso adotar, até mesmo por ética intelectual, uma ideia que não é apreciada pelo mundo acadêmico: pertence ao mundo do sagrado.

Entremos no filme: estamos numa delegacia de algum lugar isolado da Itália. Velha, suja, com pessoas estranhas. Frente a frente surgem o delegado, durão e o tempo quase todo irônico, e um escritor, suspeito de assassinato. O papel do delegado é fazer o escritor confessar o crime e o do suspeito é negar, negar, negar até…

Muitos elementos simbólicos estão presentes na imagem e a maioria deles, quando identificada, só o é depois que o filme acaba; às vezes – e não poucas – mesmo depois do fim o espectador sai sem perceber sua presença e seu significado específico. Ignorados, desconhecidos, esses símbolos acabam remetendo ao lugar comum do suspense, da simples trama policial, escondendo os sentidos e os fins pelos quais foram ali colocados.

Vejamos alguns:

  1. Chuva – permanente e torrencial, seu barulho é uma espécie de índice da necessidade de confessar, aceitar e assumir o crime cometido. Quando isso se concretiza, a chuva cessa imediatamente e o novo dia nasce.
  2. Delegacia – tudo ali é sinal de conturbação. A mente do acusado está confusa como o lugar onde se encontra: chove lá fora, dentro também por conta de inúmeras goteiras, que na verdade são buracos na mente por onde passam frações de lembranças dos fatos recentes. A delegacia é o espelho de uma consciência perturbada.
  3. Máquina de escrever – o depoimento infindável do acusado é registrado no papel pelo escrevente. O barulho das teclas e do carrinho da máquina no seu vai e vem apressado está avisando que a memória pode liberar a informação que está sendo exigida pelo delegado.
  4. Papel – as folhas de papel são substituídas na máquina de escrever numa sucessão contínua, mas elas permanecem em branco, assim como a memória do acusado. Elas são como um aviso do vazio a ser preenchido pelo escritor em apuros.
  5. Delegado – símbolo social da segurança, está ali não como condutor de um inquérito simplesmente, mas como um magistrado que sabe por antecipação da culpa do acusado e cujo veredito está pronto. É preciso, no entanto, levar o acusado à confissão, pois só a partir dela ele poderá ser compreendido.
  6. Vinho – símbolo de vida (o Espiritismo tomou a cepa como ícone), surge aos olhos do acusado que o sorve aos goles frenéticos. A seiva da uva age para diminuir as resistências conscienciais do acusado. Sendo simbólico, não é concreto mas imaginário. Logo desaparecerá junto com os demais símbolos.
  7. Inundação – no clímax da negação pelo acusado a chuva aumenta e os baldes, espalhados pelos diversos compartimentos da delegacia, são insuficientes para coletar a água das goteiras. É preciso tirar a água de dentro antes que tudo se alague, como quem retira da consciência o remorso e a dor resultantes do crime.
  8. Onoff – esse é o nome do escritor. Seu simbolismo é evidente e denuncia a intenção de Tornatore. Ligado/desligado, significa vida e morte. O escritor está vivo mas já morreu sem, no entanto ter perdido a vida. Quando foi preso ele estava On, vivo, mas queria estar Off, morto, por isso corria, sempre para frente, como quem foge de On ou como quem quer se afastar das lembranças perturbadoras dos últimos acontecimentos.

A dupla função de delegado e juiz atribuída por Tornatore ao personagem de Polanski fica clara na forma pela qual ele conduz o depoimento de Onoff. Ele tem ciência dos acontecimentos e de tudo o que diz respeito à vida e à obra do Onoff, conhece de memória os livros que este escreveu e pode reproduzir nos mínimos detalhes cada um. De posse desse arsenal, cerca de todos os lados o depoente para não deixá-lo dormir nem escapar de si mesmo e, enfim, levá-lo a assumir o crime.

Onoff se recusa a acessar a memória e deixar subir à tona os fatos ali arquivados, mas o delegado coloca-os diante dele na forma de centenas de imagens que o perturbam. Pouco antes, ao olhar pela janela, Onoff as havia visto chegar em um saco imenso, mas confundiu o conteúdo do saco com o de um corpo, possivelmente o de sua vítima. Tomando de algumas dessas fotos lembranças, Onoff se desarma, perde as resistências, cede.

Aos poucos, clareia o dia, cessa a chuva, a delegacia e os seus ocupantes entram num momento de sensível calmaria. Onoff está arrasado e ao mesmo tempo consciente de ter cometido o suicídio. É hora de ir; agora é ele que não quer deixar para traz as lembranças; insiste em levá-las consigo. O lugar que o aguarda não é uma cadeia ou presídio de segurança máxima; talvez uma clínica psicológica.

Antes, porém, de deixar a delegacia, uma surpresa: um novo acusado ali aparece em situação semelhante à qual ele chegou. Curioso, toma conhecimento de que todos os que lá trabalham, o delegado, inclusive, chegaram ali da mesma forma e pelo mesmo motivo: o suicídio.

Onoff segue em frente; agora é tão-somente ON. E o desafio Tornatore se explica: fez ele sua interpretação espiritual dos suicidas e de sua chegada ao além após colocarem fim em seus corpos físicos. Sob a capa de uma perturbação mental de fuga da realidade, escondem e se escondem da verdade, mas precisam dela para se livrarem da tormenta que os aflige. E quando a enfrentam, depois de encurralados, acordam mais leves diante da possibilidade de um outro recomeço.

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PS – Filme para ser visto em tela grande ou, em casa, em DVD. Mas está também disponível pelo Youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=IYelkG2pkdc

A Abrade, oficialmente, está acéfala

 

Reproduzo a entrevista que acaba de ser publicada pela Gazeta Kardec, editada e produzida pelo jornalista Carlos Barros em João Pessoa, Paraíba, em sua edição de setembro 2015.

Gazeta KARDEC PONTO COM Setembro 2015-6 300px

KPC – O que a opinião pública espírita ainda não sabe sobre a Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo?

Wilson Garcia – Tendo sido fundada em 1976, durante o Congresso de Jornalistas e Escritores Espíritas de Brasília com o nome de Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas, com a sigla ABRAJEE, teve ela o seu momento de pujança e depois de declínio, chegando ao ponto de quase desaparecer. Isso ocorreu após o IX congresso, realizado em São Paulo em 1986 e as causas dessa situação eram de visão de suas funções, de gestão deficiente e de ingestões políticas externas. Quando nada mais havia a fazer para mantê-la no seu formato original, os remanescentes da diretoria convocaram uma assembleia para a qual foram convidadas as vozes discordantes, numa atitude deveras fraterna e, assim, em 1994, foi ela transformada em Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo, com a sigla ABRADE. O novo modelo contemplava o estímulo à fundação de associações estaduais como instituições jurídicas autônomas, denominadas ADEs, a quem caberia as ações de comunicação em sua área de atuação e a formalização de laços com a ABRADE e seu Conselho Nacional que funciona como uma espécie da instância maior, cabendo às ADEs a eleição da diretoria executiva da ABRADE e a esta as ações de nível nacional.

A ABRADE, como a sua antiga ABRAJEE, alcançou o seu apogeu, realizou dois congressos nacionais e, depois, encontrou o seu declínio pelas mesmas razões que levaram a ABRAJEE ao ostracismo. Atualmente, a ABRADE é uma entidade fantasma, clandestina, que se encontra na ilegalidade total, pois não renova sua diretoria, não reúne as ADEs remanescentes (são poucas, quatro ou cinco), não atualiza seus documentos legais, em suma, pode ser objeto, a qualquer momento, de uma penalização pelos órgãos governamentais competentes.

Para completar esse quadro, a ABRADE continua se fazendo representar, por livre e espontânea decisão de uma só pessoa, junto ao esdrúxulo Conselho Nacional das Entidades Especializadas da Federação Espírita Brasileira, recentemente fundado, o que implica a própria Feb com a ilegalidade da ABRADE.

KPC – O que levou você analisar com riqueza de detalhes as discrepâncias político-administrativas da ABRADE no movimento nacional?

Wilson Garcia – A resposta a essa pergunta pede um esclarecimento. Fui eu, junto com outros amigos espíritas, participante da ABRAJEE. Fui seu vice-presidente por dois mandatos e participei fortemente na sua mudança em 1994. Senti-me e sinto-me responsável pelos seus caminhos e descaminhos, mas, principalmente, pela oportunidade que a ABRADE tem de preencher o vazio enorme da Comunicação Social Espírita, que é feita, quando feita, por uma maioria de indivíduos de boa vontade, mas carentes de conhecimentos sobre as Ciências da Comunicação. Infelizmente, depois de algumas boas gestões iniciais, a ABRADE foi assaltada por indivíduos vaidosos, interessados em títulos, despreparados para as funções, divisionários. Isto culminou com as ADEs precocemente decrépitas e algumas desaparecendo. Com a ABRADE já no estágio de ilegalidade, sem diretoria efetiva, ainda assim ela se mantinha ligada ao CFN-Conselho Federativo Nacional da Feb, que, então, criou o esdrúxulo Conselho das Entidades Especializadas, onde a ABRADE permanece.

Assim: 1) A presença ali da ABRADE é um absurdo do ponto de vista legal e institucional; 2) O Regimento Interno desse conselho é composto de normas que ferem frontalmente o ideário de independência, autonomia e liberdade da ABRADE e esse regimento só foi apresentado na ABRADE depois de votado e aprovado, ou seja, os poucos remanescentes da diretoria da ABRADE, então, sequer puderam se manifestar em relação ao regimento e tiveram que engolir um documento que jamais seria aprovado se fosse trazido no nível das discussões de projeto. O responsável por isso tem, até hoje, assento no Conselho da Feb, fala em nome de uma ABRADE que não mais existe.

Recentemente, houve uma ação, coordenada por um ex-presidente da ABRADE, Gezsler Carlos West, no sentido de movimentar os interessados em reconstruir a ABRADE. Durante três longos anos fez ele gestões nesse sentido, mas acabou desistindo por perceber que não há, da parte dos poucos indivíduos que ainda ali estão, qualquer interesse nisso. Esta é a realidade nua e crua.

KPC – Em sua opinião, a Entidade comprometeu a sua identidade e independência institucional quando se juntou ao Conselho Nacional de Entidades Especializadas, controlado pela Federação Espírita Brasileira?

Wilson Garcia – Qualquer profissional, especialista, pesquisador ou indivíduo da comunicação sabe que a atuação na área não prescinde do exercício dos princípios da liberdade que permeiam a independência na ação comunicativa. O CFN e o Conselho das Especializadas estão contaminados de duas maneiras: 1) por princípio, ou seja, pertencem à Federação Espírita Brasileira e são por ela dirigidos de maneira autocrática na forma e no conteúdo; 2) seus Regimentos Internos, que são de fato documentos legais, outorgam ao presidente do Conselho, que outro não é que o presidente da Feb, poderes totais, absolutos, superiores aos dos próprios membros dos Conselhos, pois pode aprovar ou vetar qualquer decisão, seja para a aceitação de novos membros, seja para questões gerais. Assim, as instituições participantes não possuem autonomia em relação à Feb enquanto membros dos conselhos, apenas no âmbito regional de sua atuação, ainda assim submetidas ao julgamento da Feb, que pode cassar-lhes a presença caso julgue de interesse da Feb. Ora, que poder teria uma entidade de comunicação de estabelecer análises críticas referentes à Feb ou a quaisquer outros assuntos do movimento espírita comandado pela Feb? Nenhum. Filiando-se ao conselho, aceita-se seu Regimento e submete-se a ele. Simples. Abre-se mão do princípio fundamental que rege a liberdade de expressão e pensamento, o bem mais sublime que a doutrina espírita nos oferece.

KPC – O que dificultou a ABRADE, ao longo dos seus quase 20 anos de existência, a pôr em prática metas e diretrizes adequadas ao movimento de divulgação, tendo como base uma bem elaborada Política de Comunicação Social Espírita?

Wilson Garcia – Qualquer pessoa pode exercer ações comunicativas em seu nome e de forma pessoal, mas ninguém, de bom-senso, pode admitir falsos princípios do tipo “tudo é comunicação”, porque, ao fazê-lo, assina atestado de ignorância do que é comunicação. As pessoas não precisam obrigatoriamente do conhecimento especializado de comunicação, mas se elas integram uma instituição voltada à comunicação, de duas uma: ou elas buscam especializarem-se para melhor exercer seus mandatos ou se fazem assessorar de indivíduos que dominam o conhecimento da comunicação, para que estes possam orientar os planos e as ações. Aliás, isso é o que fazem os gestores das grandes corporações; eles conhecem os princípios da administração e contratam profissionais capazes para as demais áreas. Na ABRADE isso sempre constituiu tabu, ou seja, a maioria é bem-dotada de boa vontade, mas despida de conhecimento de comunicação e altamente orgulhosa quanto a reconhecer isso, daí podermos dizer que nenhuma ADE ou mesmo a ABRADE é capaz de preparar um simples plano de comunicação para sua própria instituição, quanto mais para o movimento espírita tão diverso. Então, são cegos guiando cegos. São como aqueles espíritas místicos, que acreditam na eficácia do passe em qualquer circunstância, não vendo nenhum mal dele decorrente, mesmo em situações de risco. Creem que os espíritos suprem quaisquer deficiências humanas. Não estudaram e não querem estudar. Quer um exemplo? A ADE de São Paulo apresenta um programa de rádio que ajudei a criar há quase 20 anos; até hoje o formato é o mesmo, os participantes são os mesmos, o jargão também. O mundo mudou, a linguagem mudou, o tempo e sua percepção mudaram, mas os espíritas continuam presos a uma fórmula antiga por entenderem que não é preciso mudar.

KPC – Qual o futuro da ABRADE como membro do CNEE?

Wilson Garcia – Com honestidade, não vejo a tal luz no fim do turno. Acho, inclusive, que o interesse dos atuais donos da massa falida é mesmo manter a situação neste estado para conquistar não sei o quê. Acompanho tudo o que se passa pelos canais competentes e não vislumbro sinais outros. Mas, uma coisa é certa: a responsabilidade moral e penal dos que mantém a ABRADE na situação atual é grande.

KPC – O que as Associações de Divulgadores do Espiritismo estaduais devem esperar agora da Entidade para implementar alguma política de comunicação social que contribua com a divulgação espírita em todo o País?

Wilson Garcia – A palavra está com elas. A ADE de Pernambuco acaba de dar um ultimato. As demais, que venham a público revelar sua posição.

KPC – Suas considerações finais, com o nosso sincero agradecimento pela entrevista.

Wilson Garcia – A história grandiosa dos Congressos Brasileiros de Jornalistas e Escritores Espíritas começou a ser escrita em 1939 por Deolindo Amorim e seus amigos. Essa história ninguém pode apagar. Teve ela continuidade parcial na ABRAJEE e na ABRADE. Hoje, a comunicação espírita está à deriva. Oxalá possa ser retomada, dentro dos critérios éticos que Kardec utilizou. Obrigado.


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Despedida

A vida, feita de ciclos sucessivos, conduz-nos, inevitavelmente, a mudanças.
Neste momento, estou encerrando meu ciclo de professor de Teoria da Imagem na Faculdade Maurício de Nassau, Recife, PE, depois de 9 anos completos de atividades naquela instituição de ensino superior privada.
Resolvi assumir, em definitivo, minha condição de aposentado, para a qual já vinha me preparando há algum tempo. Quando cheguei em Recife, para residir, incorporei-me à instituição, que, então, se iniciava, com cursos na área de comunicação social e de direito. Foram momentos extremamente férteis, na companhia do então coordenador José Mário Austragésilo, quando tudo estava por ser construído e o ideal da educação podia ser levado à frente como principal bandeira dos corações dispostos a participar do aprendizado das novas gerações que se formavam.
A Faculdade Mauricio de Nassau cresceu, vertigionasamente, e transformou-se no Grupo Ser Educacional, presente hoje em todos os Estados do Norte-Nordeste brasileiro. Inevitavelmente, a visão do negócio enquanto tal, se já não estava latente nos primeiros tempos, passou a status dominante, reduzindo drasticamente o ideal da educação. Para os profissionais da educação, que entregam suas vidas à carreira e dela dependem para sua sobreviência, resta guardar no âmago todos os sonhos, para não perder o impulso que garante a convicção e gera as ações que dão brilho à dignidade humana. Os jovens e seu preparo ainda justificam os melhores esforços dos que se prepararam para lhes oferecer o braço, o cérebro e o carinho do dia a dia, apesar de todas as dificuldades que se lhes são impostas no exercício da sua profissão, grande parte delas por conta dos resultados financeiros que o negócio deve gerar, como meta suprema.
A partir de agora, estou voltando minha atenção para outros projetos, todos, sem dúvida, ladeando o ideal da educação, alguns que já estavam em andamento e outros que surgem desses momentos surpreendentes e inexplicáveis, como um aceno de possibilidades a serem concretizadas.
Ao concluir esse meu ciclo e não podendo estar com todos os meus colegas, pessoalmente, venho deixar-lhes o meu abraço de reconhecimento pelo convívio, apoio e amizade, bem como dizer-lhes que continuarei a ser o amigo, sempre disponível, aquele que, mesmo distante do dia a dia, permanece com a certeza de que é possível construir um mundo justo e igualitário para todos, mundo esse em que a educação se coloca como o principal marco ou viga mestra.
Como risonhamente gostava de dizer um grande amigo: até de repente!
Com fraternidade e atenção.
Wilson Garcia
Julho de 2014

Romance mediúnico: arte ou engano?

Os romances dominam a prateleiras das livrarias
Os romances dominam a prateleiras das livrarias

A abundância de romances mediúnicos é sinal de qualidade, alta, baixa ou média? Uma resposta imediata a perguntas desse tipo é não! Nem a abundância nem a exiguidade são, em si mesmas, sinal positivo ou negativo, apenas uma questão de verificação quantitativa.

Um outro fator, aí, pode ser relacionado: o tipo fenomênico – a psicografia – como fonte de obras literárias assinadas por individualidades invisíveis, em franca expansão e se destacando dos demais tipos, até mesmo acobertando-os. Tem-se a impressão – verdadeira ou falsa? – de que a mediunidade tornou-se sinônimo de psicografia, tal a quantidade de obras e mensagens esparsas produzidas por essa via.

Ontem (quatro de janeiro de 2014), estive por alguns instantes em diminuta livraria do Aeroporto dos Guararapes, Recife, tempo suficiente para perceber e registrar (foto acima), entre livros de autoajuda econômica, financeira e psicológica inúmeros romances mediúnicos em posição paritária de destaque.

Confesso, não conheço nenhum deles e sequer sabia de sua existência, portanto, nada tenho a comentar sobre qualidade literária ou mediúnica dessas obras. Mas elas estão lá, foram editadas, publicadas e vendidas. Não se pode desconhecer isso.

A questão da qualidade é diferente da questão do gosto, pois não é este, o gosto, que garante a qualidade de uma obra literária. Sabe-se, perfeitamente, que inúmeras obras literárias, mediúnicas ou não, de qualidade atestadamente ruim são campeãs de vendas aqui, no Brasil, e mundo afora. No caso dos romances mediúnicos, a qualidade não se restringe às questões literárias, simplesmente, mas incluem a própria condição de recepção mediúnica como um fator relevante a qualquer análise.

E deixa ainda no ar uma outra indagação que tem sido feita ao longo dos tempos por pensadores espíritas: o romance mediúnico é capaz de oferecer noções concretas de doutrina espírita? Aqui não é difícil refletir: um leitor neófito, aquele que não conhece com segurança as obras básicas não será capaz de recolher dessas obras ficcionais uma visão minimamente clara dos princípios que norteiam o espiritismo. Já não ocorre o mesmo com um leitor experiente, com boa base doutrinária: este poderá construir uma análise da obra e julgá-la em seus diversos aspectos, inclusive aqueles que eventualmente estejam em divergência com esses mesmos princípios.

Quando um romance mediúnico alcança a condição de obra alinhada com o pensamento espírita passa, automaticamente, para a relação dos bons livros. Mas quando o seu conteúdo sofre contestações por conta de licenças literárias danosas ou pontos de vista que vão de encontro aos princípios doutrinários entra em cena o processo de recepção mediúnica. Por que? A razão é simples, conquanto pouco percebida: o médium tem participação ativa, direta, na construção do discurso ou texto final e, sendo assim, parte maior, menor ou total da qualidade da obra pode ser-lhe atribuída.

Não se trata de um tribunal acusatório, de condenação do médium. Trata-se, acima de tudo, de levar em consideração a participação mediúnica do intermediário, daquele que se coloca entre o espírito autor e o leitor, participação essa considerada por Kardec da máxima importância e no caso específico do fenômeno psicográfico a particularidade de o médium atuar como intérprete do espírito se acentua e torna-se decisiva para o produto final.

Ao falar em interpretação estamos nos referindo ao fato de haver alguém – o médium – que se coloca entre as ideias do espírito autor e as ideias do leitor, exercendo uma função que não é apenas “técnica”, ou seja, que não se circunscreve a “receber” um texto pronto e colocá-lo no papel, mas é eminentemente interpretativa; o médium necessita de entender as ideias que lhes são trazidas e precisa passá-las adiante, de forma codificada, textual.

Trata-se de um processo complexo, no qual o médium experimenta o desafio de “traduzir” de uma linguagem para outra aquilo que lhe chega como ideia, demandando, portanto, conhecimentos, repertório, habilidade de lidar com a língua e, não raro, vivências passadas e presentes.

Quanto ao fenômeno da psicografia e sua ascensão a sinônimo de mediunidade, é um caso para se pensar. Mas é fato que a psicografia vem ocupando cada vez mais espaço no cenário mediúnico e, curiosamente, vai se tornando um fenômeno caseiro, ou seja, dado que muitos centros espíritas não dispõem de infraestrutura doutrinária e psicológica para oferecer aos médiuns, estes acabam, em boa medida, se recolhendo aos seus lares e ali, distantes do convívio com outros médiuns, realizam seu trabalho. E se têm um bom texto, não encontram dificuldades para publicar seus livros, pois, de um lado há um público ávido desse tipo de obra e, de outro, editores e clubes de livros também ávidos por publicar e disponibilizar a literatura mediúnica ficcional.

O sonho (impossível e desnecessário) de um Espiritismo planetário

O desejo de um Espiritismo adotado por toda a sociedade humana, apesar de toda a utopia que contém, não se restringe unicamente aos objetivos das grandes instituições espíritas (federativas e similares). Ele pode ser, na verdade, localizado como ponto de origem no indivíduo. As preocupações em escala macro se vinculam ao micro, vale dizer, o que ocorre nos centros espíritas se estende às federativas e vice-versa.

Cabe, portanto, discutir as questões importantes sob o prisma de seu alcance, sempre tendo por perto essa ideia de que o centro espírita é ponto de partida delas. Ai se inclui esse desejo, essa aspiração, que parece existir em cada um dos adeptos do Espiritismo e, consequentemente, é incorporada aos centros espíritas, de ver sua doutrina colocada em um plano de divulgação tal que alcance os mais distantes setores da sociedade, através de uma mensagem com alto teor de persuasão. A intenção, bem se vê, é conquistar mentes e corações e nela está embutida a ideia de que a adoção dos princípios e conceitos espíritas fundamentará a transformação da sociedade (para melhor, é claro), de modo irretorquível como não o faria nenhuma outra filosofia existente.

Há um sentido subjacente aí que merece ser anotado: considerável parcela de espíritas parece entender que a filosofia que a alcançou com certa força de profundidade fará idêntico trabalho no outro, desde que esse outro possa tomar ciência dela como estes adeptos o fizeram, algo mais ou menos como aquilo que foi bom para mim será inevitavelmente bom para as demais pessoas. Isso parece reforçar um certo descontentamento perceptível de que o que está de fato faltando é uma divulgação eficiente do Espiritismo.

Muitos adeptos e centros espíritas transferem para as instituições representativas uma como que obrigação de cuidar dessa divulgação em larga escala sem perceber que a transferência é muito mais simbólica do que objetiva. No fundo, a utopia de um mundo espírita, que permeia nossa gente, age de tal maneira em cada um que muito do que se faz nos nossos centros não é mais do que a tentativa de materializar o desejo. Diante dos frequentadores – e destes entre si – os dirigentes buscam uma eficiência comunicativa da mensagem como o fariam se o meio fosse outro e o público compusesse um universo massivo, não sendo demais imaginar que estarão dotados nestes momentos de uma forte esperança de que os receptores sejam mais do que meros receptores, mas verdadeiros agentes de disseminação da doutrina, fundamentando assim a ideia de que representam mais do que a si mesmos, mas a grande sociedade mundial. O destino da mensagem é, pois, o público presente, em número reduzido, e o ausente, a grande massa.

Questões técnicas referentes à mensagem e de conteúdo doutrinário são passíveis de questionamento e análise, merecendo um capítulo à parte. Entretanto, é preciso considerar com uma certa justeza que nem o sonho nem seu conteúdo utópico devem constituir preocupação; vivemos repletos de sonhos no dia a dia, alimentando-nos dos estímulos que eles produzem. A questão principal está em perceber: l. o grau de impossibilidade de materialização do desejo; 2. A sua importância secundária para o Espiritismo; 3. O que o desejo significa em termos de influência sobre a mensagem doutrinária que se constrói no centro.

O terceiro item é de longe o que mais atenção deve despertar, uma vez que se podem prever algumas influências positivas e negativas decorrentes do desejo. Entre as negativas estaria a apropriação de um sentido de superlativação do próprio Espiritismo, podendo isso conduzir os adeptos a atitudes próximas do fanatismo, contaminando assim a mensagem de divulgação doutrinária. Ao assumir o Espiritismo como uma doutrina completa e provida de todo o conteúdo necessário ao ser humano, sem mais necessidades e nenhum aspecto a ser desenvolvido, o adepto se submete a uma postura enganosa e necessariamente prejudicial à divulgação da filosofia.

Qualquer estudo que se assente no bom senso conduz à percepção de que é impossível persuadir toda a sociedade para uma só mensagem. Mesmo se dispuséssemos de todos os canis de comunicação disponíveis no mundo e de todo o arsenal tecnológico existente seria humanamente impossível construir uma mensagem capaz de ser recebida de modo semelhante e com um grau de persuasão favorável em pessoas diferentes culturalmente.

Mas é preciso perceber também que este objetivo, almejado por adeptos e instituições, tem pouco significado real para o Espiritismo, afinal, nenhuma doutrina expressiva, para ser reconhecida, pode assentar-se na quantidade de pessoas que a adotam. Se os números podem ter alguma representatividade, eles, entretanto, não podem estar acima dos fundamentos filosóficos e científicos de que a doutrina é dotada.

(Publicado originalmente em Dirigente Espírita no 64 de março/abril de 2001)

A presença sócio-semiótica da palavra na comunicação social

Ao estudar as expressões populares (ditos, ditados, provérbios, anexins, rifãos, adágios etc.), deparamo-nos com a palavra como elemento fundamental da comunicação social. As expressões populares, entre inúmeras outras modalidades comunicativas, podem ser vistas apenas como uma manifestação corriqueira de uma parcela do povo – quase sempre, a parcela inculta, subalterna – no sentido puramente de uma linguagem de poucos recursos culturais; ou podem ser vistas como elemento integrante do processo da comunicação social. No primeiro caso, elas incorporam um valor reduzido, sem importância maior e para cuja compreensão os estudos lingüísticos semióticos já realizados serão suficientes; portanto, nada mais oferecem à pesquisa em ciências sociais. No segundo caso, as expressões populares se constituem em campo fértil de exploração para compreender-se o indivíduo sócio-interativo, bem como mutações culturais de variadas naturezas.
Os estudos de Mikhail Bakhtin e, em especial, o seu pensamento exposto em Marxismo e filosofia da linguagem destacam o valor da palavra e de maneira incisiva chamam a atenção para sua importância nos processos da comunicação social (a palavra enquanto unidade elementar da linguagem e no sentido geral encadeamento de palavras). Por isso, seu aporte aqui permite refletir sobre aspectos das expressões populares a partir do lugar de fala e em decorrência da significação enquanto sentido proposto. Pois as expressões populares são sempre atos de fala cujo sentido está aprisionado pelo lugar, em permanente dialogismo bakhtiniano, ou seja, só se pode apreender o sentido delas a partir da compreensão dos signos e sua significação no contexto dado.
A dimensão da palavra em Bakhtin implica a ideologia e por isso “pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa”. Mas a compreensão da palavra exige que se vá além do seu conteúdo ideológico, ou seja, que se alcancem as refrações do “discurso de outrem” que a palavra realiza no universo simbólico em sua condição de expressão da consciência individual. Portanto, ideologia, discurso de outrem e consciência individual devem ser vistos como elementos implicados da palavra, elementos que preenchem qualquer palavra e que, em si e no conjunto, são capazes de tornar compreensíveis as palavras em seu significado e em sua significação enquanto sentido proposto, considerando-se ainda a importante questão do lugar de fala e dos discursos exteriores, dos signos sociais que vão determinar e modelar a consciência individual.

Palavra e ideologia

A compreensão da palavra conduz à percepção de que a ideologia e o universo semiótico são necessários um ao outro; o que importa na ideologia é, em primeiro lugar, o seu significado e, posteriormente, a significação dada. Mas o significado é também a constatação da presença do signo mediante o qual a ideologia se revela e sem o qual ela – a ideologia – não existe. Ou seja, o signo assume valor ideológico quando incorpora um significado que não lhe é próprio, que não tem origem em si mesmo, mas se faz dentro de um certo consenso social, de um consenso resultante de uma interação no curso da comunicação social. Se um grupo assume um signo como a representação de uma idéia está atribuindo-lhe um valor ideológico que originalmente não possuía, um novo significado. Uma palavra de ordem é um signo cujo significado se diferencia da palavra original, assume outro sentido para dizer algo que antes não dizia. O conteúdo ideológico do signo, portanto, é um acréscimo proveniente do mundo exterior que determina uma alteração do significado sígnico, ou seja, uma alteração na representação do real que o signo exprime, mesmo que se considere, com Bakhtin, que o signo ideológico é reflexo, sombra e fragmento material da realidade. Todavia, “um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra”.
As íntimas ligações que se verificam entre signo e ideologia explicam as relações dos dois mas, também revelam que a ideologia só existe em função do signo, pois ela mesma é e está presente no signo.
Antes de prosseguir com a análise da ideologia em Bakhtin, convém conceituar de alguma maneira o signo em virtude de sua importância nos estudos da linguagem. O. Ducrot e T. Todorov procuram fazê-lo mas não sem antes reconhecerem a sua complexidade, ou seja, a complexidade que explica as dificuldades conceituais do signo. Segundo estes autores, estas dificuldades são notoriamente aumentadas pelo fato de que os signos são vistos atualmente como entidades lingüísticas e ao mesmo tempo como signos não-verbais. Eis pois como procuram resolver a questão: “Definiremos, então, prudentemente, o signo como uma entidade que 1) pode tornar-se sensível, e 2) para um grupo definido de usuários, assinala uma falta nela mesma. A parte do signo que pode tornar-se sensível denomina-se, desde Saussure, significante, a parte ausente, significado, e a relação mantida por ambos, significação”.
A Bakhtin interessa apontar as relações entre a construção dos signos e os fatos sociais, ou seja, importa demonstrar que a realidade social está presente nos signos e os transforma em “produtos ideológicos” quando, então, os signos não são mais e apenas signos, mas signos carregados de ideologia segundo um outro significado. É por isto que “um signo é um fenômeno do mundo exterior” tal qual assinalam Ducrot e Todorov: “O signo é sempre institucional: nesse sentido, existe apenas para um grupo delimitado de usuários. Este grupo pode reduzir-se a uma só pessoa (do mesmo modo o nó que faço em meu lenço). Mas fora duma sociedade, por mais reduzida que seja, os signos não existem. Não é correto afirmar que a fumaça é o signo “natural” do fogo; ela é sua conseqüência, ou uma das partes. Somente uma comunidade de usuários pode instituí-la como signo”.
Importa a Bakhtin localizar os signos ideológicos como elementos da realidade natural ou social, incluindo-os assim junto aos instrumentos de produção e os corpos físicos. Todavia, ressalta ele que os produtos ideológicos possuem uma característica que os diferencia dos dois outros, ou seja, eles refletem e refratam algo mais da realidade social como não o fazem os corpos físicos e os instrumentos de produção. Enquanto estes possuem funções definidas e somente funções, os produtos ideológicos possuem um conteúdo extra por conseqüência de relações sociais comunicativas entre os indivíduos. Com isto, Bakhtin chega ao importante ponto da constatação da existência do universo dos signos: “Portanto, ao lado dos fenômenos naturais, do material tecnológico e dos artigos de consumo existe um universo particular, o universo dos signos”.
Um universo cujos elementos têm algo mais a dizer do que os demais quando se trata de compreender o homem e o móvel de suas ações. Um universo formado por signos que ultrapassam suas condições específicas, que se transformaram e se transformam por conseqüência de uma contínua ação do homem. Assim, qualquer objeto, qualquer corpo físico ou instrumento de trabalho pode passar de sua realidade natural à condição de produto ideológico, bem como “qualquer produto de consumo pode, da mesma forma, ser transformado em signo ideológico” e cumprir uma função nova, uma outra função social, atendendo a interesses que não estavam neles presente anteriormente.
É necessário também ressaltar de forma enfática o “caráter semiótico” dos signos ideológicos, em virtude das conseqüências que daí resultam. Uma vez que “tudo que é ideológico possui um valor semiótico”, é preciso distinguir as diferenças entre os signos e o que eles representam, uma vez que são criados para expressar a realidade de cada grupo social. A análise semiótica dos signos precisa levar em consideração, segundo Bakhtin, a importante questão da representação, ou seja, o lugar do signo, o sentido nele presente e empregado, o que ele pretende segundo aqueles que o utilizam, sejam estes representantes do saber religioso, científico, jurídico, político, da sociedade de consumo etc. Isto porque “Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade”.
Por isso mesmo e sob este aspecto, os signos oferecem amplas possibilidades de uma compreensão do mundo, visto que expressam uma parte da realidade capaz de ser apreendida semioticamente. Essa compreensão consiste em (re)estabelecer as ligações entre um signo ideológico e os signos que lhe dão sustentação, dentro de uma cadeia formada por elos significativos firmemente coesos, capazes de conduzir às conseqüências necessárias. Desta forma, a questão ideológica em Bakhtin conduz à visão de mundo, uma visão de mundo que determina a criação das ideologias e portanto dos signos. É preciso, contudo, penetrar o mundo da consciência para alargar o pensamento bakhtiniano do valor semiótico dos signos.

Palavra e consciência

Ao trabalhar a ideologia do signo, Bakhtin revela as ligações que se estabelecem entre a consciência e a palavra a partir de relações sociais de indivíduos e grupos: “A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social”.
A consciência em Bakhtin está repleta de signos que refletem ideologicamente a realidade, que expressam idéias. É pelos signos que a consciência individual propõe uma compreensão do mundo, pois os signos são eles mesmos a representação do mundo apreendida, incorporada pela consciência. Assim, “O próprio signo e todos os seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior”.
Bakhtin reclama para este ponto uma importância que classifica como fundamental por parte daquele que pretende compreender o homem através do estudo da ideologia. Uma vez que o signo preenche o espaço da consciência, aí também está presente o domínio da ideologia
O homem “fala” através de signos; as relações sócio-comunicativas são o espaço da criatividade simbólica, são o campo onde se forma a “cadeia de criatividade e compreensão ideológica” (p. 34) num contínuo permanente onde signos substituem signos (ações, reações). Ainda assim, segundo o autor há diferenças profundas entre os discursos produzidos nas diversas áreas da esfera ideológica, pelo fato de que “cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”.
Aqui, torna-se necessário realçar a diferença que Bakhtin faz entre a superestrutura da ideologia e a própria consciência, uma vez que ele condena a confusão metodológica daqueles que vêem a ideologia como que situada na consciência, quando ela é, na verdade, um “meio ideológico e social” capaz de explicar a realidade da consciência.
Um fato sócio-ideológico que dispõe de um meio material pelo qual e a partir do qual passa a se constituir; para o autor, antes das relações comunicativas interacionistas não há uma consciência formada, mas apenas e depois da concretização destas relações. Esse meio material é a língua.
O tema da consciência e sua geratriz social conduzem a inúmeros questionamentos, que em Bakhtin vão resultar na explicação de que a evolução desta consciência tanto quanto sua constituição são fatos sociais marcados pela língua: “Como [a personalidade] tomará consciência de si mesma? Até que ponto será essa consciência de si rica e segura? Como motivará e apreciará os seus atos?”.
Assim, a consciência se encontra em uma base imediatamente abaixo da ideologia e se forma, se constrói a partir dos signos que o meio social fornece. É isto que também explica que “a consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais”.
O estudo da consciência em Bakhtin conduz à compreensão sobre sua relação de dependência, pelo menos até certo ponto, à realidade sócio-ideológica, de modo a não só construir-se das ideologias em circulação na sociedade mas também a refleti-las a partir do momento em que o homem estabelece suas relações sócio-interativas. A realidade ideológica é colocada, assim, por Bakhtin como “uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica”, portanto ocupando um lugar superior e destacado.
A questão a ser enfatizada, entretanto, é a de que não reside na consciência a fonte das ideologias, senão que a consciência estruturada pelos signos sociais reflete-as e as reproduz permanentemente. Assim, quando os fatos sociais alteram as ideologias, a consciência individual tende imediatamente a assimilar as alterações e a reproduzi-las criativamente. Chega-se, assim, ao importante ponto ou lugar onde os signos ideológicos de fato atuam e circulam, proporcionando a apropriação pela consciência e este lugar é o espaço da comunicação social.
Retorna-se, assim, à questão inicial da palavra e sua importância para as relações sociais. Bakhtin vai enfatizar isso ao lembrar que a palavra, seja como unidade da língua ou como discurso, fornece as condições claras para o estudo da ideologia e conseqüentemente à compreensão dos fenômenos daí decorrentes.

Palavra e comunicação social

Já aqui se pode estabelecer uma unidade de pensamento com base em Bakhtin: ideologia, consciência individual e palavra constituem um núcleo básico para a compreensão da sociedade. Estes três domínios formam a complexidade das relações sócio-interativas. As considerações partem de uma constatação inicial de que “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” e desempenha sempre uma função sígnica, ou seja, ela é o veículo da transmissão da ideologia, o que confere à linguagem uma condição especial na análise semiótica da comunicação social. Trata-se de um ponto a merecer toda a atenção – diz o autor – em virtude daquilo que a palavra incorpora: a função de signo, função que lhe confere um valor inigualável.
No estudo da palavra, portanto, reside um aspecto especial de compreensão das relações interativas realizadas pelos indivíduos na sociedade. O que se diz, o sentido real da mensagem só pode ser compreendido pela análise do conteúdo ideológico contido no texto ou nas expressões. Não se trata da análise através da subjetividade humana, mas de considerar as condições culturais em que as comunicações sociais se estabelecem para encontrar o sentido dos signos que penetram e formam a consciência e daqueles outros signos que os indivíduos utilizam para expressar idéias e desejos.
Uma outra condição reforça ainda mais a função sígnica da palavra: a condição de signo neutro. Enquanto os signos de forma geral representam formas ideológicas específicas e representativas dos domínios nos quais foram gerados, a palavra possui uma neutralidade ideológica inicial e pode por isso servir a todos os domínios, como nenhum outro material o consegue, tornando-se signo ideológico a serviço da ciência, da moral, da religião e de qualquer outro campo particular. Ao chamar a atenção para isso e destacar que os signos e símbolos específicos de cada campo possuem uma função ideológica inseparável, que lhe confere sentido, Bakhtin aponta para as relações interativas que ocorrem no cotidiano das pessoas, como espaço importante da comunicação social e onde as coisas acontecem de modo sensível: “(…) existe uma parte muito importante da comunicação ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se da comunicação na vida cotidiana. Esse tipo de comunicação é extraordinariamente rico e importante”.
O que ocorre nas relações interativas cotidianas é que a palavra assume um papel especial como material das conversações e dos discursos em suas diversas formas, e também porque possui uma condição de veículo a serviço da consciência individual, “material semiótico da vida interior”. Devido a isso, a palavra se torna meio pelo qual circulam as formas de compreensão do mundo, desde as atividades mais banais àquelas que dizem respeito à cultura geral e ao comportamento individual humano. Ou seja, “A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação”.
As relações comunicativas cotidianas assumem especial importância exatamente porque se tornam espaço da criatividade ideológica, onde as situações sociais se mantêm ou se alteram, onde o curso das situações prossegue ou sugere novas direções. É na palavra que se podem perceber mudanças sociais em andamento ou em processo gestação.
Neste sentido, podem-se analisar as condições em que a sociedade está organizada culturalmente a partir dos signos que os indivíduos criam para expressarem-se e como esses signos são influenciados pela realidade, ou seja, a forma pela qual “o signo reflete e refrata a realidade em transformação”. A palavra é um indicador seguro das transformações sociais, tanto para as que já assumiram uma forma definitiva quanto para as transformações que se encontram em curso. Por isso, ela é duplamente importante: como instrumento para conhecimento da realidade social e como meio capaz de antecipar mudanças cujo sentido não está claro. O que orienta nessa direção é a compreensão que se deve ter da palavra enquanto meio privilegiado de interatividade sócio-comunicativa.
Pode-se encontrar a palavra como esse “material sensível” capaz de atender aos indivíduos em suas necessidades de comunicação nas mais diversas formas e situações da vida cotidiana, em que os atos de fala têm o seu desenvolvimento e assumem determinada importância: “(…) as conversas de corredor, as trocas de opinião no teatro e no concerto, nas diferentes reuniões sociais, as trocas puramente fortuitas, o modo de reação verbal face às realidades da vida e aos acontecimentos do dia-a-dia, o discurso interior e a consciência auto-referente, a regulamentação social etc.”.
Bakhtin, assim, chama a atenção para dois aspectos igualmente necessários ao estudo da psicologia do corpo social, dizendo que ela deve ser analisada: “…primeiramente, do ponto de vista do conteúdo, dos temas que aí se encontram atualizados num dado momento do tempo; e, em segundo lugar, do ponto de vista dos tipos e formas de discurso através dos quais estes temas tomam forma, são comentados, se realizam, são experimentados, são pensados etc.”
E nesse sentido, podem-se destacar tanto os repertórios quanto os temas que fazem parte de um determinado momento social. Não somente as relações cotidianas dos indivíduos numa sociedade são importante material para estudo, mas também aquelas que se dão no interior da vida familiar, porque representam significativo material para a compreensão da própria realidade social.
Por outro lado, à importância da palavra para o estudo da realidade social deve-se aliar um outro valor: a significação. Não bastaria atribuir importância à palavra e estudá-la do ponto de vista lingüístico; é preciso buscar sua significação no momento dado, seja nos atos de fala verbal, seja nos discursos diversos. Mas a significação só pode ser alcançada, só pode ser compreendida se for observada a partir das situações reais em que as relações sócio-interativas acontecem. Trata-se de considerar a materialidade da comunicação em termos de conteúdo da mensagem e dos signos que a consciência emite em resposta a outros signos, tendo-se por importante que os aspectos sociais orientam as consciências. Não somente as possibilidades culturais interferem na recepção, mas também dão o material para a compreensão e reinterpretação das mensagens. A preocupação, pois, de Bakhtin se volta para aspectos fundamentais como a qualidade contextual: “(…) a compreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientada para a identificação de elementos normativos do discurso, mas para a apreciação de sua nova qualidade contextual”. Talvez por isso o permanente estranhamento no aprendizado das normas lingüísticas, estranhamento, por exemplo, que não ocorre quanto à língua nativa, que o indivíduo vai apreendendo a partir das primeiras relações familiares.
A qualidade contextual resulta desse fato importante que é a relação do indivíduo com o seu meio social, em que mentalmente vai organizando-se num permanente intercâmbio sígnico. Mas, contrariamente ao que afirma a teoria da expressão, “Não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação”.
Assim, pois, os dois tipos de discurso, o interior e o exterior estão em permanente relacionamento, mas com a supremacia do exterior, que é quem de fato organiza e forma a consciência. Entretanto, a palavra é sempre um ato de fala que se dirige a um interlocutor, a alguém, a um destinatário.
A palavra que procede de um interlocutor para outro varia, sofre alterações e se adapta segundo o interlocutor a quem é dirigida, sua posição social, cultural, sua proximidade ou distância em termos de grupo a que pertence etc. É desta maneira que “(…) toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige a alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte”.
A compreensão da palavra e de tudo aquilo que ela carrega como modificação imediata ou distante da realidade social implica, portanto, a compreensão de sua posição como meio de relacionamento interativo entre interlocutores reais, cada qual com sua postura e com um determinado peso enunciativo. A influência que se estabelece entre interlocutores é, em última instância, a influência sobre a coletividade, constituindo-se em razão para a construção das situações reais, os contextos em que os próprios interlocutores se situam. O locutor e o ouvinte são, ambos, fundamentais para o processo de compreensão da realidade social.
Esse fato se reveste de uma importância fundamental: as relações sociais bem como a realidade contextual que as determinam estão na base da formação das consciências e das ações e reações individuais, de sua criatividade ideológica, funcionando assim como resposta às principais perguntas que pretendem compreender a própria realidade social. Ou seja, o meio social determina a estrutura da consciência e conduz a atividade mental, de modo que a resposta da consciência se dá por meio de signos adquiridos na própria relação interlocutiva.
Irene A. Machado reforça essa compreensão do individual e de sua consciência, ao estudar o pensamento de Bakhtin: “O individual, como detentor dos conteúdos de sua própria consciência, como autor de seus próprios pensamentos, como personalidade responsável por seus pensamentos e sentimentos – esse individual é puramente um fenômeno sócio-ideológico”.
Resta, pois, acrescentar dois aspectos importantes para as reflexões aqui expostas: a importante questão da compreensão, de como ela se coloca e deve de fato ser vista, e a questão lingüística, de sua evolução. Sobre esta última, Bakhtin faz a seguinte afirmação: “A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”.
Depreende-se que as mudanças ou o progresso da língua estão em ligação direta com a vida cotidiana, com os atos de fala que se realizam no interior da sociedade, em suas diversas situações concretas. Ou seja, o espaço da comunicação social contemporânea, bem como os meios de comunicação de massa, são espaços importantes de análise dessa evolução e são, em contrapartida, indicativos das alterações sociais que se encontram em curso. Quanto ao primeiro aspecto, o da compreensão, deve-se considerar que: “A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra”.
A resposta da consciência ao signo é um diálogo realizado pelo indivíduo, seja para opor sua palavra como discurso interior seja nas relações com o discurso exterior, ou ainda como meio de expressão de sua forma de compreender o meio social.
Fiorin, aliando-se à compreensão como uma forma de diálogo, acrescenta que este diálogo ganha amplitude na própria dimensão da palavra: “Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro”.
Mas o diálogo é também uma forma de construção de sentido e, assim, é algo que não encontra termo final, ou seja, o sentido está sempre sendo refeito, remodelado pela compreensão. Como afirma Marília Amorim a partir de um longo trabalho de pesquisa em que o pensamento bakhtiniano foi levado à prática cotidiana de uma favela no Rio de Janeiro: “Pois a compreensão, a interpretação e a explicação são, na verdade, formas de tradução e traduzir é mostrar a descontinuidade e o intervalo”.
E mais, por não se esgotar e por não esgotar as possibilidades de construção de sentido, seja no diálogo e suas diversas formas, seja nos discursos sociais, a compreensão forma uma espécie de meio, uma ponte não fixa que se pode mover conforme os contextos.

Palavra e discurso de outrem

O “discurso de outrem” é a presença do outro no discurso do eu, mas é também a necessidade do outro para que o discurso do eu possa ser construído, ou melhor, praticado. Temos, assim, dois aspectos fundamentais da palavra a necessitar de compreensão, sob pena de não se poder alcançar nem o outro nem o eu. Nenhum discurso se constrói sem que a palavra do outro esteja presente e este outro é também destinatário e locutor.
O outro não é uma ficção e nem ausência; o outro não é distância ou caminho a percorrer apenas no momento dialógico possível. O outro é texto e contexto, tema e motivo, razão e sentido.
Sob essa noção, pode-se partir para a busca da solução, ou seja, a compreensão do discurso formulado por outrem, tendo por meta responder às três indagações colocadas por Bakhtin: como, do que fala e o que diz o autor do discurso. As duas primeiras questões, o como e o que, podem ser resolvidas a partir da análise do tema do discurso, mas a apreensão plena do conteúdo do discurso só pode ser feita pela integração do outro no próprio discurso como forma de encontrá-lo “em pessoa”. Isso porque a realidade discursiva “(…) institui o locutor e o destinatário, um em relação ao outro e, a rigor, estes não existem enquanto tais antes da enunciação. É por isso que a língua não é um código e é também por isso que é inconcebível para Bakhtin isolar o “contato” como um fator entre outros: o enunciado é por inteiro contato…”.
Encontrar o outro no discurso significa apreender o tema e o contexto das relações sociais, o lugar de fala com sua força influenciadora do discurso, não se podendo perder de vista que “a língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes”
Em sua análise do outro na pesquisa das Ciências Humanas, Marília Amorim busca resolver problemas que mais à frente vai enfrentar em seu trabalho de campo, elencando as seguintes perguntas: “Como encontrar o outro, como fazê-lo falar, como se fazer ouvir, como compreendê-lo, como traduzi-lo, como influenciá-lo ou como deixar-se influenciar por ele… Na maior parte dos casos, a resposta a essas perguntas aparece lá onde não se espera, lá onde não há nenhum método. Como se a dessemelhança devesse sempre se confirmar, como se o equívoco fosse a regra e o diálogo um puro acaso”.
As perguntas são de fato uma ênfase na direção desse outro que parece se desvanecer na prática, mas que está de fato ali presente à espera de ser apreendido, à disposição para o diálogo em situação alteritária. As perguntas são também uma estratégia metodológica estabelecida com antecipação e sob a consciência de que alteridade e dialogismo são caminhos que se encontram e prosseguem juntos.
Neste ponto, convém trazer para este texto os quatro aspectos que Diana L. P. de Barros considera presentes na concepção de dialogismo de Bakhtin, porque se mostram importantes em relação ao discurso de outrem:

“a – a interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem (Bakhtin vai mais longe do que os lingüistas saussurianos, pois considera não apenas que a linguagem é fundamental para a comunicação, mas que a interação dos interlocutores funda a linguagem);
b – o sentido do texto e a significação das palavras dependem da relação entre sujeitos, ou seja, constroem-se na produção e na interpretação dos textos;
c – a intersubjetividade é anterior à subjetividade, pois a relação entre os interlocutores não apenas funda a linguagem e dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto;
d – as observações feitas podem conduzir a conclusões equivocadas sobre a concepção bakhtiniana de sujeito, considerando-a “individualista” ou “subjetivista”. Na verdade Bakhtin aponta dois tipos de sociabilidade: a relação entre sujeitos (entre os interlocutores que interagem) e a dos sujeitos com a sociedade”.

O discurso de outrem contém, assim, o sujeito que discursa, mas não simplesmente o sujeito que escreve ou fala, e seu tema; contém o sujeito constituído, produto e produtor da linguagem, o indivíduo em um dado contexto socialmente organizado, com uma consciência em certa medida estruturada pela palavra exterior. Por isso, o autor russo vai estabelecer, como meio de reforçar sua argumentação, as seguintes questões: “Como, na realidade, apreendemos o discurso de outrem? Como o receptor experimenta a enunciação de outrem na sua consciência, que se exprime por meio do discurso interior? Como é o discurso ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem sobre a orientação das palavras que o receptor pronunciará em seguida? Encontramos objetivamente nas formas do discurso citado um documento objetivo que esclarece esse problema”.
O que importa aqui, essencialmente, é fazer ver que a construção do discurso se dá sob a influência de “forças sociais organizadas sobre o modo de apreensão do discurso”, o que, portanto, coloca no discurso os próprios instrumentos capazes de decodificá-lo semioticamente. As formas do discurso estão, assim, em relação com a linguagem comum, socialmente consensada, dos falantes, e estão contidas numa estrutura que integra o falante e o interlocutor.
Por outro lado, o discurso de outrem é recebido e apreendido pela consciência e se reproduz através de um outro discurso, o discurso interior, mediante o qual o receptor desenvolve sua crítica, sua apreciação. O discurso exterior se funde ao discurso interior para produzir uma terceira palavra, um outro discurso. Conforme assevera Bakhtin, “a palavra vai à palavra. É no quadro do discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua apreciação, isto é, a orientação ativa do falante”.
Finalizando, estes aspectos gerais do pensamento bakhtiniano fornecem, assim, uma base teórica como ponto de partida para a análise dos mais diversos diálogos, das palavras e seu emprego nos meios de comunicação de massa, a fim de inferir de alguma maneira mudanças culturais no interior da sociedade globalizada. Ao afirmar que “a palavra, como fenômeno ideológico por excelência, está em evolução constante e reflete fielmente todas as mudanças e alterações sociais” o autor fornece uma indicação interessante das possibilidades amplas que a palavra oferece para uma compreensão do homem e da sociedade, sempre colocando esta palavra na condição de “expressão da comunicação social, da interação social de personalidades definidas, de produtores”. Reconhece ele que há vários caminhos pelos quais se pode estudar a evolução da palavra, dentro da percepção de que “o destino da palavra é o da sociedade que fala”, uma vez que palavra e sociedade evoluem juntamente com a palavra, em perfeito acordo, em simbiose plena. Pode-se estudá-la, portanto, através da sua “evolução semântica, isto é, a história da ideologia no sentido exato do termo; a história do conhecimento, isto é, a evolução da verdade, uma vez que a verdade só é eterna enquanto evolução eterna da verdade; a história da literatura, como evolução da verdade na arte”.
Ao lado desses caminhos, o autor coloca outro a que atribui uma importância de valor igual aos anteriores, a ser percorrido em conjunto com os demais: “…é o estudo da evolução da própria língua como material ideológico, como meio onde se reflete ideologicamente a existência, uma vez que a reflexão da refração da existência na consciência humana só se efetua na palavra e através dela”.
Com a palavra, pois, a própria palavra: a palavra da consciência ou personalidade integrada ao seu meio social organizado, de cujo lugar produz seus atos de fala e dá sentido à vida

Referências bibliográficas

AMORIM, M. O pesquisador e seu outro – Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo,
Musa Editora, 2001.
BAKTHIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, 8ª, Hucitex, 1997.
BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas, Unicamp,
2001.
DUCROT, O. & TODOROV, T. Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem.
São Paulo, Perspectiva, 1998.