Ano: 2015

Ídolos, líderes e mitos para espíritas imaginários

 

Porque no espiritismo beatos candidatos a santos seriam absurda distorção criam-se e alimentam-se os mitos para preencher o vazio do líder que se ausentou.

Musas 0013 www.templodeapolo.net
Musas, inspiradoras da criação artística ou científica.

Sempre gostei da postura de Herculano Pires em relação aos homens no sentido filosófico. Lidou com líderes, respondeu aos ídolos e compreendeu os mitos. Mas ficou com a razão emanada do espiritismo, onde aprendeu que Deus fala aos humanos através de suas leis. Essa postura tem um sentido amplo, bem mais amplo do que aparenta.

Em primeiro lugar, havia por parte do pensador paulista uma visão clara do futuro do espiritismo. Trata-se, a meu ver, de um ponto crucial, embora não original: o espiritismo para ele sempre esteve nas mãos dos seus líderes, aos quais atribuía toda a responsabilidade na condução das massas e construção do futuro. Os líderes são os primeiros ídolos a surgirem no estuário da criação doutrinária. São mais ou menos admirados segundo os caracteres de sua liderança, mas, ainda quando pouco versados no assunto que lideram, são seguidos de alguma maneira.

Líderes conduzem: ou para o porto do saber ou para o precipício da ignorância. E o espiritismo resultará disso.

Médiuns são também líderes candidatos a ídolos. Se o dirigente incorpora as duas coisas, estará mais perto da idolatria. O homem pouco versado e milenarmente aculturado tenderá a entregar-se ao seu líder em clima de confiança que pode chegar ao extremo do fanatismo, ou então desfazer-se na fumaça da decepção. Não é apenas no passado recente que os médiuns possuíam influência sobre parcela considerável da sociedade, quando, então, as mesas giravam em torno de sua figura diferenciada. Mudaram-se os cenários e as condições de atuação dos médiuns, mas não se alteraram fundamentalmente sua ascendência e a percepção deles enquanto líderes e ídolos. Continuam sendo ícones numa releitura muito influenciada pelo virtual contemporâneo.

Kardec foi líder natural do espiritismo por todas as razões conhecidas. Sua condição de ídolo ficou protegida pela racionalidade que emana de sua leitura da espiritualidade, a qual, se não se sobrepõe, equilibra muito a percepção do sentimento. Quando o ingrediente emocional prepondera costuma ser mais eficaz na construção e na projeção dos ídolos do que o racional.

Leon Denis continua na cosmologia espírita como líder e ídolo. Vejo-o muito como um poeta da prosa. É um líder, contudo, mais próximo a Kardec e por isso mesmo cada vez mais distante das lideranças modernas, que se alimentam do cotidiano para se manterem. Ídolos mortos, ídolos (de)postos…

Incluam-se nessa lista de estrangeiros Delanne, Aksakof, Flammarion, Bozzano etc. Só pesquisadores e teimosos os estudam hoje. Grande parte das lideranças espíritas só os conhece da bibliografia, nada mais.

E no Brasil? Líderes de grande projeção morrem de fato e contrariam os princípios da imortalidade. Parece que suas cadeiras acadêmicas deram cupim. Deolindo, Imbassahy, Cairbar e tantos outros desaparecem um pouco mais a cada dia. Suas ideias já quase não encontram oportunidade para os escambos intelectuais.

Herculano Pires só não se encontra nesse rol de brasileiros que se apagam pelo descaso porque um mecenas decidido e alguns companheiros dele, abnegados ou teimosos criaram e mantêm uma fundação que protege e publica sua extensa obra. Se dependessem do mercado estariam na falência, pois a maioria dos livros não vende. Pior, não desperta interesse nas nossas lideranças.

Dentre os líderes brasileiros, Chico escapa da guilhotina, mas não da idolatria. É o único que, além de líder e médium, alcançou o grau de mito. Ultrapassou nesse quesito a Bezerra, que era líder, mas não médium. E se equipara a Ismael, que não reencarnou e já nasceu anjo. Em pouco tempo, porém, Chico não será mais reconhecido como humano, mas como alma de um mundo imaginário onde plaina sobre as cabeças coroadas dos reencarnantes dependentes.

Herculano, que foi dentre seus amigos um dos mais admirados e respeitados, pediu diariamente clemência para seu espírito encarnado em um corpo todo remendado. Quase gritava para a plateia de líderes surdos que Chico precisava de paz, sossego, tranquilidade para realizar sua tarefa, penosa e quase cruel. Embasbacados, os líderes espíritas se faziam surdos. Só o viam (e cada dia mais o veem) como santo, Kardec, espírito superior e até – pasmem! – espírito de luz, da esfera mais elevada dentre as conhecidas.

Só a massa teria o direito de agir e julgar assim, mesmo porque as lideranças jamais se preocuparam em esclarecê-las pela verdade, verdade que elas próprias não desejam ver. Chico se foi e logo ergueram monumentos de pedra, onde o incenso da insensatez se mantém aceso diuturnamente, perfumando e ao mesmo tempo escondendo o conteúdo pútrido do próprio túmulo.

Mas Chico morreu. O Chico-corpo. Hosanas à sua alma! Os peregrinos continuarão procurando-o todo ano e o ano todo, para não o deixar esquecer-se de que todos o querem e são merecedores de sua intercessão.

Por agora, precisam de outro líder, médium e candidato a mito. Afinal, por mais extensa que seja a lista dos espíritos acessados pelas preces maquinais e por mais que Chico esteja alocado no alto do panteão, precisam de ícones de carne e osso, que possam ser vistos, tocados e cujo sorriso admirável apareça nas listas sociais de nossas redes. Querem alguém que fale por eles e para eles a mensagem da mansuetude, como um papa em suas vestes festivas, que apareça na TV de rosto terno e olhar compassivo. Precisam da certeza material para contrapor à dúvida do abstrato.

Divaldo, o candidato é você?

A história dos 50 anos da USE

 

Se a história é a narrativa dos fatos, da vida e das ideias, o livro do cinquentenário da Use cumpre apenas uma parte desse objetivo.

 

Capa USEO livro “USE, 50 anos de unificação”, assinado por Eduardo Carvalho Monteiro e Natalino D’Olivo tem sua gênese quando a Use, por seus presidente e diretor, respectivamente, Atílio Campanini e Antônio César Perri de Carvalho me solicitam apoio para a escritura de um livro histórico, o qual integraria as futuras comemorações do cinquentenário de fundação da instituição.

A ideia, a princípio, pareceu-me viável, mas logo me recordei dos idos de 1984, quando tomei a iniciativa de propor à Federação Espírita de São Paulo um projeto semelhante que foi aprovado por sua diretoria, mas não saiu do papel por conta das barreiras erguidas pela desconfiança e falta de apoio de pessoas que na Federação ocupavam, então, postos chaves na liberação de documentos. Perdi um ano de trabalho e ainda fui perseguido por alguns diretores para liberar à Federação documentos que havia conseguido por esforço, custo e tempo próprio fora da instituição.

Havia, porém, algumas diferenças substanciais no convite dos diretores da Use: a iniciativa partiu deles e este ponto é capital; a Use tinha minha admiração e ali consegui implantar alguns trabalhos que obtiveram resultados positivos, como é o caso da transformação do jornal Unificação em Dirigente Espírita, na gestão de Perri; finalmente, a história da Use é a história rara da vivência democrática no meio espírita, servindo ela nesse campo como modelo para qualquer outra instituição de mesmo gênero e finalidades em nível nacional.

Mas o tempo exíguo para a realização do trabalho me preocupou. Depois de alguns dias de reflexão, conversei com o Eduardo Carvalho Monteiro e propus a ele assumir a condução do projeto. Eduardo já possuía larga experiência nesse terreno e estava em melhores condições para tal. Foi o que de fato ocorreu depois de aceito pela direção useana.

O tempo conspirava contra. Eduardo, então, envolveu-se integralmente com o projeto e aceitou a contragosto a colaboração de Natalino D’Olivo, um bom quadro da Use, mas sem o preparo para tal cometimento. Por mais de uma vez confessou-me sua contrariedade com as dificuldades criadas por esse colaborador. E fez questão de registrar ao final de suas “palavras necessárias” um elogio ao seu coautor e dizer que “a redação do texto desta obra é de minha inteira responsabilidade”. Tinham eles visões opostas e ideia completamente diferente de como desenvolver o projeto, com a diferença a favor de Eduardo por ter experiência no assunto.

Eduardo, porém, era daqueles que pescava o peixe e se necessário arrastava o rio para perto de casa. Seu faro por documentos, sua capacidade de mergulhar na pesquisa e a energia com que se lançava ao trabalho diuturno eram garantia de que a obra seria concluída. O que de fato aconteceu e surpreendeu ao mais otimista dos espectadores. O livro possui mais de 330 páginas.

Em sua explicação sobre o livro, Eduardo tomou o cuidado de registrar que a obra produzida em curto espaço de tempo estava sujeita a imperfeições que poderiam ser superadas no futuro. Isso é fato. Ou seja, há lacunas inevitáveis e é possível corrigir muitas delas. E mais, diante da montanha de documentos que Eduardo recolheu e das dezenas de depoimentos que obteve, o autor sentou-se em sua cadeira e deixou-se levar pelas teclas do computador, com um só desejo: registrar os fatos segundo a melhor costura e a análise mais coerente que lhe fosse possível.

Eduardo, na condição de escritor (escrevemos em parceria quatro livros) sempre optou por se ocupar mais do conteúdo que da forma. Tinha verdadeiro prazer em localizar documentos raros e ouvir testemunhas oculares, mas não o fazia apenas pela pesquisa em si, senão porque seu espírito era ávido de reconhecer e compreender essa intricada rede de fatos que denominamos história. Via-se compelido a colocar no papel tudo o que lhe vinha às mãos, na convicção de que os documentos não lhe pertenciam, mas à sociedade e ao ser humano, além de julgar a todos de igual importância. Se isso é elogiável, por um lado, é também perturbador, por outro, pois se a forma não cuida de explicar-se e aos fatos, os documentos se perdem no vácuo da não significação.

Desde o seu primeiro livro – A extraordinária vida de Jésus Gonçalves – em que o texto final precisou passar por profunda revisão formal e editorial, até o livro do cinquentenário da Use lançado em 1997, Eduardo progrediu muito nos cuidados com a forma final, mas ainda assim não deixou de sacrificar essa forma em benefício do conteúdo quando julgou preciso. É o caso do livro em análise. Por todas as razões expostas.

Eduardo era um escritor emocional, não só por consequência de sua personalidade, mas porque não tinha receio de tomar partido e assumir causas alheias se isso lhe parecesse importante e combinasse com suas ideias. Diz-se que o bom historiador é aquele que se coloca na devida distância dos acontecimentos para compreendê-los em sua condição factual. Mas não deixa de ser historiador aquele cuja distância dos fatos é quase imperceptível e ainda assim é capaz de colocar tais acontecimentos à vista dos estudiosos, mesmo que aplique sua interpretação particular. Ademais, é preferível ao autor expor sua interpretação dos fatos que resumir-se a relatá-los, simplesmente. As interpretações são mais sensíveis à mudança.

É por isso que a história será sempre uma sucessão contínua de percepções dos historiadores.

No livro do cinquentenário, Eduardo assume por inteiro a causa da Use e emite conceitos pessoais sobre os fatos, ou seja, aplica adjetivos que deixam o leitor mais crítico insatisfeito. Eduardo chega a adotar um ufanismo que bem ressalta sua ligação emotiva. Esse é um detalhe que fala contra a própria obra enquanto história da Use, porque expressa pensamentos que são em si mesmos parciais e defendidos por grupos que disputam o poder. E neste tipo de comportamento não se consegue evitar falhas perceptivas e até mesmo injustiças para com personagens envolvidos.

É curioso que Eduardo o tenha feito sem ter, até que foi convidado para o projeto do livro, demonstrado maior proximidade com a Use e sua história. Não que essa história não possa ou deva ser analisada no contexto em que se deu, do qual surge como conquista excepcional e ainda mais admirável se percebido que se vivia um momento político e econômico conturbado e o país tradicionalmente privilegiava as estruturas piramidais, com o poder emanado de cima, estruturas que também marcavam fortemente o movimento espírita de então. Ao assumir uma ideia e defendê-la sem, contudo, ter vivido a ambiência da Use, os fatos geradores ou até mesmo o contexto no qual se deram os acontecimentos, o autor assume o risco da contradita ao mesmo tempo em que expressa o seu sentimento ou sua percepção comprometida.

Eduardo optou por escrever o livro como sendo ele próprio a voz da Use: aquele que a defende e aquele que a elogia. E um historiador cioso torcerá certamente o nariz também aí. Essa a origem do posicionamento pelo autor de uma Use que às vezes beira às raias do sagrado porque gestada com indiscutível apoio espiritual superior. Não se pode olvidar que o modelo inspirador para Eduardo é a própria história da Feb, escrita com tintas brilhantes para convencer da sua escolha por parte da espiritualidade superior. Aplicada essa ideia à Use, resulta em contradição histórica e em desnecessidade argumentativa. Ao longo do seu texto, a Eduardo surge com especial destaque as mensagens assinadas por espíritos de significativo apoio aos esforços do bem, logo tomadas como apoio à causa unificacionista empunhada pela Use. As circunstâncias do aparecimento dessas mensagens são vistas pelo ângulo pelo qual se olha a realidade, a qual é, contudo, um conjunto de muitos outros ângulos.

Essa mesma posição será assumida em relação a outras instituições semelhantes à Use, em cuja história conhecida o cheiro do sagrado é sentido por todos os lados.

Ao mesmo tempo e de forma positiva na análise, Eduardo, por convicção ética, não se permite furtar à narrativa de acontecimentos e conflitos que marcam profundamente a existência da Use, acontecimentos que seriam facilmente ignorados por outros pelo simples desejo de registrar apenas os fatos agradáveis à ideologia do poder. Apesar disso, o olhar analítico de Eduardo é sempre o olhar useano, de dentro e de entre os que estão no poder.

Creio que uma das principais falhas de Eduardo na composição da história da Use tenha sido a grande confiança depositada em alguns documentos que, indiscutivelmente, narram acontecimentos sem o rigor necessário e, pelo contrário, não escondem o comprometimento com os fatos e o desejo de adorná-los de forma a passar uma ideia tendente a formar mitos. Tomá-los por fontes primárias e atribuir-lhes valor de verdade é correr riscos desnecessários.

Um exemplo claro está logo no início do primeiro capítulo, que deseja reconstituir os primeiros passos do espiritismo no Brasil. Ao resumir a criação da Feb, Eduardo toma como orientação o livro “Esboço Histórico da Federação Espírita Brasileira”, publicado pela própria Feb, e o faz apartado do olhar perquiridor indispensável. E por não tomar cuidado, escreve: “A pesarosa crise encaminhava a Feb para a extinção, mas um sopro do Alto guindou à sua presidência, em 3 de agosto de 1895, o médico e político Adolfo Bezerra de Menezes…”. As aspas são minhas, a frase é de Eduardo. Não há sinais indicativos de que fez transcrição, mas a ideia não tem sua fonte no autor, com certeza. Foi por ele assumida.

Muitas das narrativas de Eduardo estão centradas nesse tipo de documento e não são poucas as vezes em que ele se vale de transcrições literais e as toma como orientação para sua percepção. É assim que a escritura do autor e as transcrições se misturam e formam uma narrativa integrada, constituindo uma só ideia. Daí por que o livro peca em grande medida pela omissão do contraditório, da percepção contrária, da ausência daquele jogo de opiniões diferentes em torno do mesmo acontecimento em análise. Se por ventura aparece aqui e ali essas opiniões e percepções contrárias, tão necessárias para qualquer reflexão mais profunda, elas estão de certa maneira ordenadas que resultam inevitavelmente em reforço à opinião ou conclusão do autor.

É interessante registrar também a clara opção do autor por personalidades que lhe eram muito queridas e pelas quais tinha grande admiração. Essas personalidades são tomadas, quase imperceptivelmente por Eduardo, como autoridades cuja palavra está acima das demais. Nosso querido Pedro de Camargo, Vinicius, que foi objeto de estudo biográfico por nós co-assinado, é claramente uma dessas personalidades que em alguns momentos terá a primazia da decisão correta, mesmo que enfrentando outras personalidades tão dignas quanto. Por isso, Eduardo não terá como evitar a contradição interna de seu texto nesses momentos.

No registro a seguir, não apenas a opinião do autor sobressai como também ressalta uma percepção que certamente será contraditada por quem conviveu de perto com alguns dos citados: “Confrades de gênio difícil de lidar como Trindade, Milano Neto, Caetano Mero, D’Angelo Neto, em contraposição à afabilidade e humildade de Carlos Jordão, Vinícius, Anita Brisa, Aristóteles Rocha…”. De todos os citados, Eduardo teve contato direto e breve apenas com Anita Brisa, a quem entrevistou para o livro. Sobre os demais nada acrescenta que possa orientar sobre o julgamento que faz de suas personalidades.

Na pressa da escritura, mas muito também pelo estilo de abordagem escolhido ou assumido, Eduardo analisa superficialmente alguns acontecimentos, a outros apenas menciona e a alguns mais dá o seu tom pessoal, que é ao mesmo tempo interpretação e opinião. Diante de conflitos de grande monta, deixa transparecer que sofre pressões e dá a entender que algumas delas se originaram a partir da decisão pessoal de abordar tais conflitos, enquanto outras parecem pressões auto assumidas, ou seja, a percepção da repercussão que deverá causar o torna arrojado ou contido.

O episódio da fusão da Use com a Feesp, cuja gênese Eduardo localiza no segundo congresso, bem como o da disputam eleitoral de 1986, que opôs o grupo de Santos ao dos religiosos são exemplos de fatos que carecem de melhor abordagem seja na forma narrativa, na interpretativa e dos fatos em si. Personagens importantes desses acontecimentos precisam e devem ser ouvidos.

Por fim, às características relacionadas some-se o fato de Eduardo ter deixado o livro em boa medida relatorial, o que o torna cansativo à leitura e dispersivo quanto à relação entre muitos dos fatos históricos, embora permita que os interessados em história possam tomar das dezenas de documentos ali reproduzidos e ressignificá-los numa perspectiva mais interpretativa e contextual, ou seja, menos emotiva.

Conclusão: o livro do cinquentenário da Use, uma instituição modelar quanto à sua origem democrática (resultou da decisão de dirigentes de centros espíritas e nesse particular constitui experiência única e pioneira no Brasil) possui, entre seus méritos, o fato de reunir documentos importantes sobre sua história institucional no estado de São Paulo e no Brasil. Padece, contudo, da necessidade de resolver seus pontos obscuros e de ampliar a compreensão de episódios diversos que são, em si mesmos, partes delicadas, mas necessárias à vida do espiritismo brasileiro.

Um amigo entre o humano e o sagrado

 

EDUARDO CARVALHO MONTEIRO

Júlia Nezu, atual presidente da Use, Divaldo Franco e Eduardo Monteiro.
Júlia Nezu, atual presidente da Use, Divaldo Franco e Eduardo Monteiro.

Os homens no corpo físico precisam ser vistos necessariamente em sua condição humana. Mas não é fácil. O humano costuma revelar conflitos de que os humanos não gostam. Os conflitos trazem ao rés-do-chão e quebram ilusões, enquanto que o sagrado leva à abóboda celeste, onde sonhamos estar e esperamos chegar incólumes meritoriamente.

Digo isto por conta do momento em que devo relembrar o humanismo e o idealismo de um amigo caro: Eduardo Carvalho Monteiro. Os dois lados, as duas faces de um mesmo ser, faces que coexistiam e o tornavam uno em suas ações e desejos, em seu olhar condicionado, sua percepção da vida, sua disposição de luta.

O humano em Eduardo sofria com as desditas dos miseráveis espalhados pela face do planeta, mas também encontrava momentos de desespero, intemperança e impaciência quando diante do outro, daquele que caminha próximo e nem sempre se dispõe a atuar tão corajosamente quanto o idealista. Os quadros terríveis de abandono a que famílias e portadores de doenças são muitas vezes relegados ocasionavam nele o olhar da aflição que impunha ações rápidas para minorar aqueles sofrimentos. A correspondência do outro, muitas vezes tão frágil quanto a vontade, tornava Eduardo triste e amargo, duro e viril.

O seu idealismo como espírita teve início na mocidade e o tomou de assalto quando, em meio a um quadro obsessivo e a uma dedicação como líder de torcida do seu time de coração, viu-se diante de Chico Xavier, como Paulo na estrada de Damasco. Não há ciência capaz de explicar as razões do sentimento quando o ser descortina e queda-se ante uma face da realidade até então desconhecida, aquela que o toca como nenhuma outra. Neste particular, a filosofia está mais próxima da compreensão do humano.

Prisioneiro de suas desditas pessoais, Eduardo viu então, ali, uma porta aberta pela qual podia penetrar e adquirir liberdade, soltar-se para o mundo, mas sentiu, ao mesmo tempo, estar próximo de uma decisão que lhe cobraria um preço por essa conquista. Dispôs-se a pagar, alto que fosse. E foi.

Um dos primeiros seguimentos da sociedade a chamar sua atenção: a causa dos leprosos. Digo leprosos, sim, porque o termo hanseniano só se popularizou depois, muito por causa do trabalho feito por ele e outros, que assumiram a luta insana contra os preconceitos humanos e conseguiram alterar a realidade social cruel para com os sofredores dessa antiga doença.

Foi no Sanatório Pirapitingui, antiga instituição comunitária para onde eram levados os portadores do mal de Hansen, localizada no Estado de São Paulo, aonde ele primeiro fincou seus pés e dedicou-se inteiramente ao auxílio dos doentes e de seus familiares. Ali tomou conhecimento da histórica figura maiúscula de Jésus Gonçalves, portador do mal e cujas chagas, que derretiam partes de sua vestimenta carnal não o impediram de lutar bravamente pela vida, pela comunidade e por justiça social. Tornou-se então referência.

Diante dessa figura, Eduardo quedou-se, quase genuflexo, para depois lançar-se no estudo de sua vida e descobrir a inteligência que estava por trás do corpo continuamente carcomido, mas também sua história de vida e das vidas esquecidas no passado quase remoto. Surgiu daí o primeiro das mais de três dezenas de livros que escreveria, ora como autor solitário, ora na companhia de seus parceiros afetivos.

O jovem amadureceu e tornou-se um pesquisador persistente e visionário. Foi como se um fio de uma meada inimaginável lhe surgisse às mãos com a história de seu grande e primeiro ídolo, Jésus, poeta, músico e líder natural dos hansenianos.

É possível dizer que Eduardo concluía seus livros, mas jamais terminava, tal era a gana com que se lançava diuturnamente ao trabalho de pesquisa e a emoção com que descobria mais e mais fatos acerca do objeto de sua atenção.

Não demorou muito para que sua residência se tornasse um verdadeiro depósito de livros e documentos. A bela biblioteca herdada do avô, com obras excelentes e algumas raras, que ocupava o moderno sobrado da família no Bairro do Brooklin, em São Paulo, tornou-se seu refúgio e foi aos poucos sendo ampliada, até alcançar o caos da desordem, que somente ele era capaz de administrar.

O lado humano de Eduardo tinha planos para constituir família, porém, esse projeto jamais pôde ser por ele concluído porque se sentia responsável pelos cuidados da mãe, que adorava; depois porque os irmãos acabaram por ocupar parte considerável do seu tempo e preocupações.

Nas duas situações foi de uma dedicação exemplar. Na vida prática, no silêncio de quem sabe se reservar, foi o marido dedicado que a mãe deixou de ter; foi, também, o pai amoroso que o sobrinho jamais teria; e, além, foi mentor e amparo de seus irmãos, especialmente diante dos conflitos da vida que os atormentava em seus caminhos.

Quando a genitora, enfim, retornou à vida extrafísica, Eduardo foi ocupar, solitário, uma casa no Bairro da Saúde, onde continuou sua saga de pesquisador, escritor e trabalhador da causa humana.

Insaciável quanto ao conhecimento, lançou-se na Maçonaria onde, com o mesmo afã, dedicou largo tempo no desdobramento do saber, abrindo caminho para que fatos e histórias, filosofias e feitos tivessem seu destaque. Integrou-se de tal maneira à Ordem Maçônica que percorreu todas as etapas da instituição milenar, alcançando rapidamente o 33º grau. Ali, tornou-se articulista e membro da equipe editorial da revista A Verdade, editada pela Grande Loja Maçônica de São Paulo, além de ser autor de vários livros contendo assuntos relativos à Maçonaria. Deixou-a, um dia, desiludido com a política interna, mas não abandonou os estudos esotéricos.

Seu primeiro livro espírita – A extraordinária vida de Jésus Gonçalves – foi o definidor de uma trilha que Eduardo jamais imaginara seguir, mas na qual, entre dócil e áspero, fixou marcas capazes de surpreender aqueles que sonham um dia dedicar-se às causas nobres.

O seu lado humano era descuidado com muitas coisas materiais; tinha pressa em tudo e as preocupações dessa ordem tendiam a roubar-lhe o tempo que não desejava perder. Por isso, levava de roldão tudo aquilo que pudesse constituir barreira à sua caminhada para os objetivos propostos. Irascível, algumas vezes, destemido sempre.

Por outro lado, em contraste com o homem firme que não perdoava a indignidade, era afetivo e dócil com suas companheiras, com os amigos sinceros, com os sofredores, com aqueles em quem via sinceridade e dedicação ao bem.

Pouco antes de partir, viu-se diante de um como que imantado espelho revelador da face menos visível da alma e o que viu o fez derramar lágrimas. Apesar dos 55 anos vividos e fecundos, constatou-se, surpreso, deficiente no campo afetivo e fez questão de declarar isso aos amigos íntimos. Pensou repensar a vida ainda no aqui, sem saber que o agora não mais lhe pertencia. Encontrava-se, então, na estação de Rizzini, bagagem ao lado, à espera do último trem.

O mesmo vagão e a mesma poltrona daquele trem que o levou do planeta o esperam para trazê-lo de volta. A passagem já está reservada e, segundo consta, só falta marcar a data.

 

RESUMO BIOGRÁFICO

Eduardo Carvalho Monteiro nasceu no dia 3 de novembro de 1950, em São Paulo/SP, filho de Ivan Carvalho Monteiro e Denaide Carvalho Monteiro. Deixou o corpo físico em 15 de dezembro de 2005.

Era psicólogo e bacharel em Turismo, membro da Academia Paulista Maçônica de Letras, estudioso do espiritismo e das ciências herméticas, com quase 40 livros publicados sobre espiritismo, maçonaria e esoterismo.

Era assessor Pró-Memória da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo – USE. Foi também fundador e presidente da Sociedade Espírita Anália Franco, em Diadema/SP, membro da Liga de Historiadores e Pesquisadores Espíritas, fundador e coordenador geral do Centro de Cultura, Documentação e Pesquisas do Espiritismo, entidade criada em 2004 para onde foi destinado o seu acervo pessoal de documentação histórica do movimento espírita.

LIVROS DE AUTORIA DE EDUARDO CARVALHO MONTEIRO*

1.      100 anos de comunicação espírita em São Paulo, 2003

2.      100 anos de evangelho com Eurípedes Barsanulfo, 2005

3.       A extraordinária vida de Jésus Gonçalves, 1980

4.      A Maçonaria e as tradições herméticas

5.      Allan Kardec, o druida reencarnado, 1996

6.      Anais do Instituto Espírita de Educação, 1994

7.      Anália Franco, a grande dama da educação brasileira, 1992

8.      Anuário Histórico Espírita 2003

9.      Anuário Histórico Espírita 2004

10.   Batuíra, o Diabo e a Igreja, 2003

11.   Batuíra, verdade e luz, 1999

12.   Cairbar Schutel, o bandeirante do Espiritismo, com Wilson Garcia, 1986

13.   Catálogo Racional – obras para se fundar uma biblioteca espírita

14.   Chico Xavier e Isabel, a rainha santa de Portugal, 2001

15.   Dossiê Léon Denis – artigos, cartas e conferências inéditas

16.   Élcio abraça os hansenianos, 2003

17.   História da dramaturgia com temática espírita, 1999

18.   História da radiodifusão espírita

19.   História do Espiritismo em Piracicaba e região, 2000

20.   Jésus Gonçalves, o poeta das chagas redentoras, 1998

21.   Léon Denis e a Maçonaria

22.   Leopoldo Machado em São Paulo, 1999

23.   Loja Amphora Lucis, 25 anos de ideal maçônico

24.   Marechal Ewerton Quadros

25.   Memórias de Bezerra de Menezes

26.   Motoqueiros no além, com Euricledes Formiga, médium, 1982

27.   O esoterismo na ritualística maçônica, 2002

28.   Olá, amigos!, com Euclides Formiga, médium

29.   Sala de visitas de Chico Xavier, 2000

30.   Sinal de vida na imprensa espírita, com Wilson Garcia, 1995

31.   Templos maçônicos e as moradas do sagrado, 1996

32.   Tudo virá a seu tempo

33.   Túnel do Tempo: as Primeiras Publicações Espíritas no Brasil

34.   USE, 50 anos de unificação, com Natalino D’Olivo, 1997

35.   Vinícius, educador de almas, com Wilson Garcia, 1995

36.   Vitor Hugo e seus fantasmas, 1997

*Pesquisa feita por Wilson Garcia em 17 de novembro de 2015. Caso você conheça outras obras de Eduardo C. Monteiro não relacionadas acima, colabore informando: wilson@visaointernet.com 

De quem falo senão de mim?

 

Depoimento de um crente em órbita geoestacionária no espaço do eu, colhida antes de ser postada nas redes sociais. A foto foi subtraída por um hacker preocupado com os perigos de uma exposição pública. Consegui apenas o texto, que em si mesmo é imagem.

Eu não me dou bem com os extremos, sejam quais forem. Não que não os visite. Ninguém consegue fixar-se em um ponto apenas do espectro sociocultural. E como sou ninguém, costumo viajar do centro para as periferias, mas entre me fixar numa delas e deixar-me levar pelos cantos da sereia vai uma distância enorme.

Sou maleável, mas não volúvel. Reconheço que os valores da virtude podem estar no lodaçal das disputas ou na mansidão de um oceano de águas esverdeadas. Deixo-me levar apenas pelas mãos do acaso, faço-me leve para o sopro da inspiração, mas quando estou no destino improvável não há quem de fato consiga me reter ali. Da mesma forma que chego sem ter planejado, saio sem despertar atenção.

Nasci assim, vivi e continuo a viver assim. Em todas as estações por que passei e desci, fiz o jogo da convicção e confiei nos acenos do destino. Demorei-me um tempo maior que desejava e menor do que esperavam. Decepcionei alguns por isso, surpreendi outros e sei que o mistério ainda toma conta de uns poucos, que não compreenderam minhas partidas. Talvez porque procurassem a lógica que os sentimentos incomunicáveis escondem. Procuram onde não estou, estou onde não procuram.

Fui hóspede das oportunidades atraído pelo chamado de uma voz amorosa. Demorei-me quase nada em cada canto do prazer e das conquistas. Tive medo, sempre, de ficar e não mais sair. Construí esse destino sem perceber que a rota verdadeira jamais conheci por antecipação. Acostumei-me ao imprevisto e de nada me arrependo. Foi melhor assim, pois reconheço minha incapacidade crônica de fazer previsões corretas.

A experiência ensinou-me a seguir a voz desconhecida e audível apenas nos vãos que se formam entre as sinapses cerebrais. Por compromisso com Descartes, analiso e reflito para decidir. Em decorrência das experiências bem-sucedidas, também decido para depois refletir. Há momentos que não comportam delongas, gostava de dizer um velho tipógrafo de minha terra.

As decisões, refletidas ou não, podem trazer arrependimentos e este sempre foi o risco que preferi seguir. Em expectativa, mas tranquilo, dei as mãos ao invisível e vi luzes brilhantes depois das curvas. Quando já não precisei desconfiar do destino, percebi que a confiança exagerada ameaçava tomar conta de mim, e então refleti, porque não era honesto entregar-me totalmente ao desconhecido. Toda decisão leva a resultados e todo resultado deve constituir razão para as próximas decisões. Os momentos infelizes não se me tornaram martírios permanentes porque me ensinaram a rever para as futuras decisões.

Como disse, não sou extremista, não tenho personalidade para isso.

Sou a chama que eu mesmo acendo, carretel que eu mesmo enrolo e o automóvel que eu mesmo dirijo. Parto e retorno. Se chego cansado, tomo fôlego. Quando o desânimo me alcança torno-me calmo. Sei que desaparecerá como chegou.

Ah, sou aquela partícula que estava e já não está mais, tão-somente porque seus olhos a procuravam.

Vivo a expectativa da partida e a esperança da chegada. O meu tempo não é espaço, é movimento.

Voilà!

O homem em seu silêncio

 

ANTÔNIO SCHILIRÓ

Foi um homem talhado para organizar a Use de São Paulo.
Schiliró: um homem talhado para organizar a Use de São Paulo.

Pouco conhecido nacionalmente, quase esquecido em seu estado, Schiliró era um homem de convicções firmes e foi um dos melhores quadros que a Use de São Paulo teve.

Quando foi eleito presidente da Use de São Paulo em 1982, Antonio Schiliró me recebeu em sua residência para uma entrevista para o Correio Fraterno do ABC. A disputa política acirrada havia terminado e Schiliró finalmente trocava o cargo de Secretário Geral pelo de presidente e responsável pelos destinos da conhecida instituição espírita fundada em 1947.

Tornei-me seu amigo anos antes e mantínhamos uma relação de mútuo respeito e mútua admiração. Foi Schiliró quem me transmitiu o convite do então presidente da Use de São Paulo, Nestor Masotti, para assumir o cargo de diretor do Departamento do Livro que desejava criar.

Estávamos os três em Campinas em evento da Use quando Schiliró me convida para retornarmos juntos à capital em seu carro. Uma conversa de pouco mais de uma hora foi suficiente para que me convencesse a aceitar o cargo e, o mais importante, para estreitar nossos laços de amizade.

Quem é Schiliró?

Um homem com quem se gosta de conversar. O tempo do verbo está correto. Espontâneo, desarmado, franco e leal. Sem rodeios, sem agressividades, aberto ao diálogo. Conversa olhando para o interlocutor, responde com naturalidade, sem nenhuma afetação e nenhuma preocupação com qualquer coisa que se assemelhe ao politicamente correto de hoje.

Conhecia como poucos a Use e sua política. Quando assumiu a Secretaria Geral pela primeira vez encontrou uma situação caótica. Nas quatro áreas da administração: no planejamento, na organização, na direção e nos controles.

O desafio de tornar a Use uma instituição minimamente organizada consumiu grande parte de seu tempo, mas tornou-o conhecido em todo o estado de São Paulo. Teve a paciência que muitos não tiveram, eu, inclusive. E uma tolerância extraordinária. Estou convicto de que não era apenas porque aprendera muito nas atividades profissionais e sindicais que desempenhara. Isso por si só não explica suficientemente os resultados que seu trabalho alcançou na Use.

Qualquer um sabe que as entidades associativas são geralmente constituídas por pessoas que se agrupam segundo as tendências de seu pensamento, cujo objetivo natural é influenciar o poder, direta ou indiretamente. Idealmente, tais entidades deveriam ser constituídas por seres desinteressados do poder, mas a realidade não é esta. Portanto, qualquer ideia de que o poder emana do sagrado não encontra respaldo no espiritismo, que está em consonância com a realidade humana.

Schiliró era espirita de convicção inabalável. E mais. Acreditava que a Use era importante para a expansão da doutrina. Por isso, e por muito tempo, seus ouvidos suportaram palavras desagradáveis, seus olhos superaram imagens desfocadas e sua boca construiu frases unificadoras. Onde? Na secretaria geral da Use.

Não mentia, não prometia, não fingia.

Sua atuação na secretaria deu à Use a estrutura burocrática mínima a uma instituição cuja função principal é coordenar um movimento constituído por centros espíritas autônomos espalhados por todo o território paulista. O cadastro da Use, então inexpressivo e pouco confiável foi por Schiliró ampliado ao extremo e com informações atualizadas. Ele elevou rapidamente o número de centros adesos para cerca de mil instituições.

A Use de então era aquela que emergiu da crise gerada pelo projeto de fusão com a Federação Espírita de São Paulo. Crise que teve dois momentos dramáticos. O primeiro, na campanha eleitoral de 1974, quando o candidato de oposição Eurípedes de Castro ameaçava a situação com seu projeto político de emancipação da Use e dava sinais de venceria. Mas foi vítima de infarto fulminante às vésperas das eleições, o que levou um alto dirigente da Federação a confidenciar-me de modo surpreendente e absurdo: o plano espiritual não mata ninguém, mas cuida para que certas pessoas retornem antes e deixem o caminho livre para os melhores projetos. Uma eventual vitória de Euripedes de Castro seria o fim do projeto de fusão.

A partida de Euripedes criou um vazio político nas eleições da Use, do qual emergiu o nome de Nestor Masotti, até então quase desconhecido enquanto líder.

O segundo momento dramático veio quase dois anos depois, quando o projeto de fusão da Use com a Federação caminhava para ser aprovado e a oposição, em manobra política bem urdida, levou uma assembleia a votar pelo cancelamento definitivo do projeto.

Pega de surpresa, a Federação cancelou o apoio econômico à Use e esta, agora órfã, viu-se diante da necessidade de buscar recursos para sobreviver. Pouco depois, a Federação aprovou e implantou aquele que seria o projeto de fusão com ligeiras alterações, em clara demonstração de força.

A Use viveu dois períodos distintos. De 1947, quando foi fundada, até 1976, quando ficou órfã, era um simples movimento custodiado financeiramente pela Federação, sob a expectativa da fusão. A oposição de Eurípedes de Castro foi o sinal claro de que os ventos haviam mudado de direção. A eleição de Masotti apenas disfarçou a situação, especialmente porque Masotti não era um opositor da fusão. A Use estava dividida e os críticos da fusão aguardavam o momento propício para agir.

Schiliró está presente, portanto, quando a Use mais precisa de alguém com o seu perfil. Foi Secretário Geral nas gestões de Masotti. Com ele a instituição ganhou uma estrutura organizacional e assumiu de fato a função que lhe competia no espiritismo paulista. Além disso, possuía experiência para dialogar com as diversas tendências dentro da Use, na busca de uma união mínima.

Ao assumir a presidência em 1982, Schiliró não só consolida a instituição ao adquirir sua sede própria como se torna o primeiro dirigente de uma organização espírita desse porte a expor sem rodeios suas convicções pessoais em relação a temas controversos. Prova disso é a entrevista que me deu logo após sua eleição, publicada na edição de agosto daquele ano no jornal Correio Fraterno do ABC.

Contudo, quatro anos depois Schiliró concluirá seu segundo mandato em meio a uma crise interna em decorrência de disputas políticas por dois grupos antagônicos, cujas consequências ainda hoje podem ser percebidas. Sua sucessão se deu de forma traumática e culminou com o afastamento da Use daquele que ficou conhecido como grupo de Santos, liderado pelo psicólogo já desencarnado Jaci Régis.

Ao deixar a presidência Schiliró deixou também de forma definitiva os quadros da Use e permaneceu afastado por muitos anos. Durante longo tempo recusou-se a conversar sobre qualquer coisa que dissesse respeito à instituição. Dedicou-se inteiramente ao projeto do centro espírita que havia fundado anos antes em conjunto com amigos e familiares.

Qual foi a verdadeira razão desse afastamento? Jamais perguntei e jamais Schiliró disse-me algo sobre o assunto. Poderia tê-lo entrevistado em sua saída, como fiz após sua eleição. Poderia ter posto o tema nas inúmeras oportunidades em que nos encontramos, como pelo telefone ou nas suas caminhadas pela região da Avenida Paulista, onde ambos residíamos. Achei que devia respeitar o seu silêncio.

Hoje, contudo, quando seu corpo físico, na altura dos seus 98 anos de vida, acaba de ser sepultado o tema encontra oportunidade para análise.

Homens como Schiliró, embora egressos de ambientes classistas onde os conflitos políticos constituem a prática diária, guardam seus sonhos e seus projetos assentados nos melhores ideais e nas utopias. E desejam realizá-los.

Schiliró aprendeu logo quando assumiu a secretaria da Use que as diferenças entre as diversas associações estão apenas no plano ideológico. Na prática diária, essas diferenças se anulam e os problemas se tornam comuns.

Sob esta perspectiva, foi-lhe possível estabelecer desde cedo um diálogo com os grupos diferentes sem perder de vista o objetivo de fortalecer a Use e por consequência beneficiar a expansão do espiritismo. Assim, dotou a secretaria de condições de funcionamento e conversou diariamente com os dirigentes espíritas, tornando-se figura conhecida. Schiliró sempre teve ideias avançadas e modernas.

Por ocasião das eleições de diretoria para o biênio 82/84, quando seu nome emerge naturalmente para o cargo máximo, os embates políticos deixaram claros os interesses em jogo. Ou seja, não bastava um nome com folha de serviços prestados e reconhecidos para uma união das diversas tendências internas.

Schiliró absorveu com tranquilidade esses conflitos e uma vez eleito, cuidou para que o diálogo mais uma vez fosse à mesa de negociações políticas, dentro da visão de que a causa está acima do ser. Assim, pôde reeleger-se para um segundo mandato. E teve, já no primeiro pleito, uma atitude incomum para o meio espírita: antes de se colocar como pretendente ao cargo máximo da Use fez questão de apresentar um plano de trabalho ou uma plataforma que foi aprovada no Conselho Deliberativo da Use e serviria também para o caso de ser eleito o seu opositor.

As eleições de 1986, sob um estatuto que já então proíbe a reeleição para um terceiro mandato, revive os períodos mais críticos da história da Use. Schiliró se coloca na posição de árbitro, sob o entendimento de que a disputa política deve se dar em ambiente de respeito aos direitos e à liberdade. Apesar de sua visão de que as disputas políticas devem se esgotar no período das eleições e, posteriormente, vencidos e vencedores devem dar-se as mãos, sabia que pragmaticamente a realidade era outra, seja em instituições espíritas seja em quaisquer outras.

O desejo de Schiliró não foi suficiente para impedir que houvesse uma polarização entre dois grupos: os chamados religiosos, representando a ala mais conservadora da Use, e o então assim denominado grupo de Santos, representando a ala progressista e acusado de abrigar objetivos antidoutrinarios. A temperatura jamais esquentou tanto no ambiente useano. A chapa que depois seria vencedora se autodenominou Tríplice Aspecto, em flagrante ataque à chapa que sairia derrotada, denominada Unificação Hoje! Mordazes, os integrantes da chapa Tríplice Aspecto proclamavam que a sua oponente prometia, entre outras coisas, tirar Jesus do espiritismo. E venceu fragorosamente.

O que aconteceria se o grupo de Santos saísse vitorioso ninguém jamais saberá. Sabe-se, contudo, que os conservadores, tendo à frente Nedyr Mendes como presidente, tão-logo assumiram o poder cuidaram de reduzir ao máximo o espaço do grupo de Santos e daqueles que lhe eram simpáticos.

Sob essas condições, Jaci Régis e seus aliados tomaram a iniciativa de deixar o ambiente useano a abrir espaço para que outros movimentos, como o da Confederação Espírita Pan-americana, conhecida pela sigla Cepa, pudessem florescer novamente. Até aquele instante, a Cepa estava pouco atuante no Brasil. A Feb e seus aliados consideravam-na inimiga do espiritismo por criticar o aspecto religioso, fomentando um ambiente contrário à Cepa que até hoje permanece, embora bastante reduzido.

É preciso esclarecer que a identidade entre o grupo de Santos e a Cepa não era total, mas se dava em relação ao aspecto religioso.

As consequências dessa eleição foram ruins para ambos os lados: a Use perdeu quadros expressivos de pensadores e estudiosos operantes em diversos setores do movimento espírita estadual e estes, em boa medida, não conseguiram manter na totalidade a união. O grupo de Santos, no entanto, enquanto núcleo catalisador das atenções, continua ativo até os dias atuais, mantendo a chama de um espiritismo aberto e progressista.

Neste contexto agitado e polarizado, Schiliró recebeu críticas de ambos os lados. Os conservadores o acusaram de permissivo em demasia, exigindo dele uma postura contrária às suas convicções pessoais. Desejavam que ele defendesse o chamado tríplice aspecto, a favor de suas causas políticas. Os progressistas reclamavam, a seu turno, do encurtamento do espaço para defesa de suas ideias e projetos e para responder às acusações que lhe eram imputadas, vistas oportunistas e mentirosas.

Schiliró não conseguiu seu intento, o que lhe deixou marcas profundas de desgosto. Se algo de fato desejava era o contrário do que ocorria. Sabia que ambos os lados possuíam virtudes e defeitos, mas isso não o preocupava tanto. Os seus maiores aborrecimentos vinham do ambiente em que a ausência de respeito era a marca mais visível. E por experiência profissional e humana, sabia ele onde isso daria, como de fato deu.

Isso seria suficiente para levar Schiliró a tomar a medida extrema de se afastar do ambiente useano, como o fez? Sim e não. Já não é possível afirmar com certeza. Considere-se, contudo, que os grandes golpes e talvez os maiores sofridos por Schiliró se deu quando quiseram macular sua honra com acusações inverídicas que deixariam qualquer pessoa digna magoada. E foram muitos, e foram profundos.

Schiliró não desistiu do mundo nem dos ideais espíritas. Fez silêncio quanto à Use, mas era possível encontrá-lo sorridente na obra social e doutrinária da instituição a que estava ligado. Algumas vezes alguém na Use sentia sua falta e ensaiava um movimento para regatá-lo, mas Schiliró recusava, sempre. Até que, anos depois, muitos anos depois, aquiesceu a uma singela homenagem pública que lhe prestaram e lá retornou.

O silêncio, contudo, Schiliró jamais rompeu.

De calma e de dor

 

Quem me acompanha já conhece o Sérgio e talvez esteja se perguntando por onde anda ele. Eu mesmo me fiz essa pergunta nos últimos meses. Imaginei que tivesse desistido das pendengas comigo, mas fui alcançado por uma preocupação: estará ele doente?

Então liguei.

Saí da rotina. Ele é quem sempre liga, mesmo que para atormentar-me com suas evasivas teorias do nada.

O sinal foi aquele: este aparelho está fora de área.

Desisti depois de algumas tentativas. Ele não. Quando ouvi o som do celular, era ele. Incrível, parecia que na foto dele sisudo havia um riso meio de canto de boca, irônico.

– Ha ha! Não aguentou muito tempo, não é?

Tive ímpetos de dizer: – seu canalha, mas contive-me. Resolvi dar o troco com mais ironia ainda.

– Está enganado. Completamente. Queria ligar para o meu cunhado em Manaus, que malgrado o sol também se chama Sérgio, mas liguei errado. Bom dia e até outra hora.

E desliguei.

Ele não se deu por rogado. Ligou novamente. E foi dizendo:

– Tá bom, não vou discutir essa sua desculpa gloriosamente inútil. O seu orgulho nem com mil supostas reencarnações vai ser consertado.

E desancou a falar.

– Você viu, aquele seu amigo lá da Saúde caiu feio. Parecia até bom moço, simpático, mas não aguentou.

E lá veio com sua pergunta maldosa.

– Por que os tais espíritos que vocês tanto admiram não avisaram a ele que a cama estava feita, que seria uma fria ele ir para lá?

Ponderar com Sérgio é inútil. Mas ponderei:

– E por que haveriam de avisar? Você por muito menos já me deixou sozinho inúmeras vezes…

– Uai, eles não sabem tudo? – falou com a mesma ironia.

– Não – respondi e acrescentei: quem sabe tudo é você.

– Agora você vai me agredir, é isto? – gaguejou.

– Olha aqui, se você quer discutir coisas do espírito faça o favor de ler aquele exemplar que lhe dei há muitos anos. Aquele que continua fechado e cheio de poeira na sua estante.

Houve um breve silêncio. Até pensei que Sérgio ia desligar. Se o fizesse não seria o Sérgio.

– Ora, ora, então você está irritado – retornou ele.

Dei uma gargalhada imensa e vi que ele se desconcertou. Então, finalizei:

– Vou resumir pela enésima vez. Os espíritos são como os amigos: se bons, respeitam-nos em nossas decisões, sem abandonar o desejo de sermos felizes em nossos projetos e as oportunidades de nos abraçarem. Se maus, querem que decidamos segundo sua vontade e nos abandonam quando não lhes damos atenção. Em qual das duas categorias você se coloca?

Sem demora, disse ele:

– Na primeira. E tenho dito.

Desligou.

Mediunidade de cura – Alto lá!

 

Confundir a prática mediúnica com a própria mediunidade não é de bom tom. O Espiritismo oferece um manual de conduta para a prática mediúnica e para além disso discorre sobre a importância da mediunidade no progresso humano.

João de Deus
De costas, o médium João de Deus em seu local de atividades.

A indignação que naturalmente toma de assalto qualquer pessoa de bem quando diante de um quadro de desumanidade, levou o amigo Jorge Hessen a repercutir a matéria publicada pela revista Veja/Brasília acerca do médium João de Deus, de Abadiânia, Goiás. Incisivo, Hessen ataca o uso indevido da mediunidade, especialmente para fins comerciais, de enriquecimento pessoal, no que é de uma objetividade indiscutível.

Para ler a matéria de Veja/Brasília siga este link. Quem desejar ler o texto de Hessen (recomendável) clique aqui.

Hessen não deixa passar nem certos fatos da vida pessoal do dito médium: João de Deus tem 11 filhos com 10 mulheres. Além disso, tem não um carro, mas uma verdadeira frota entre veículos nacionais e importados. E um faturamento extraordinário, junto com um patrimônio invejável.

Alguns espíritas andresistas hão de ficar avexados com estas revelações de cunho da vida pessoal das pessoas, mas não deveriam. Afinal, eles deixam de ser da vida privada para se tornarem públicos, uma vez que são auferidos à custa do público, enganado em sua boa-fé.

Onde eu discordo de Hessen?

Em alguns de seus argumentos e, especialmente, nos excessos que comete. Ele mesmo reconhece tais excessos, mas os mantém e os justifica apoiado em citações de Chico Xavier e Kardec.

Por que discordo de Hessen?

Como disse lá em cima, é preciso separar a mediunidade das práticas. Mediunidade é conquista evolutiva e prática mediúnica é experiência humana que o ser exercita bem ou não. É vida cotidiana.

Cito Hessen: “Por sérias razões, não apreciamos e sequer indicamos esse tipo de mediunidade, embora, excepcionalmente, acatemos os efeitos mediúnicos atingidos por alguns poucos médiuns humildes e honestos”.

Hessen reconhece os efeitos mediúnicos positivos obtidos por alguns poucos médiuns de cura, mas sua ideia sepulta esse tipo de mediunidade. Penso que deveria ser o contrário: deveria valorizar a mediunidade. O argumento mais simples para isso é o de que as práticas fora da boa ética não invalidam nem desmerecem o fenômeno mediúnico, como o mau médico não invalida a medicina e assim por diante.

A opinião do Chico entra no argumento do Hessen. Chico em entrevista de 1988 condena o uso de “objetos cortantes” por parte de médiuns não clínicos. É uma opinião de Chico, datada. O Chico da década de 1960 era admirador de Zé Arigó e não tinha à época essa opinião, o que não é tão importante também, porque as pessoas devem mesmo ter suas opiniões, senão se anulam.

Sendo opinião de Chico ou de outro, vale como opinião e não regra. A menos que se admita, por exemplo, como alguns imprudentes andam propagando, que Chico foi Kardec reencarnado e, portanto, sua opinião vale em dobro. Mas isso é o mais deslavado absurdo que o simples bom-senso rejeita.

E por lembrar Arigó, vem na esteira a enorme atenção que despertou nacional e internacionalmente com sua faca enferrujada. De cientistas e estudiosos, mas também do público. Não se pode dizer que o Espiritismo enquanto doutrina não teve ganhos aí. Teve porque é a única doutrina capaz de explicar com fatos e lógica o fenômeno mediúnico.

Hessen reforça seu argumento com a opinião de Emmanuel, que repreende Chico. Boa oportunidade para mostrar que Chico era humano e não um “santo dos nossos dias”, como escorregou o amigo Ranieri. Mas também de dizer que em tais circunstâncias, Emmanuel parece querer desacomodar Chico de sua cadeira de balanço, com uma sacudidela.

Ainda o Chico e o recado do Zé Arigó relembrado por Hessen. Chico diz que recusou a ajuda do conhecido médium e preferiu fazer a cirurgia de próstata pelos meios médicos convencionais, com bisturi, assepsia e anestesia. Ótimo. Foi sua escolha. Aliás, muitos antes e depois do Chico também fizeram idêntica escolha. A mediunidade prossegue.

É oportuno mencionar aqui a predição de Kardec. Disse ele que quando os médicos compreendessem o valor da mediunidade, a medicina ampliaria enormemente o seu poder curador. Kardec cria num futuro dos médicos-médiuns.

Hessen conclui a transcrição da negativa de Chico à oferta de auxilio mediúnico de Zé Arigó com a frase: “Por isso, o Espírito André Luiz advertiu para “aceitar o auxílio dos missionários e obreiros da medicina terrena, não exigindo proteção e responsabilidade exclusivos dos médicos desencarnados”. Esse por isso confunde, porque deixa no ar que houve um apoio de André Luiz à decisão do Chico de recusar o auxílio de Zé Arigó. Mas não. Vê-se que são coisas totalmente distintas, diferentes e distantes entre si. A ideia de André Luiz nada tem a ver com a cirurgia do Chico. Ficou mal.

Ficou mal também, em Hessen, duas coisas subsequentes.

Primeiro, quando coloca no mesmo balaio todos os médiuns de cura, de modo que todos eles devem ser condenados como embusteiros. Ou seja, não há exceção alguma. Nem para os espíritos que agem por esses médiuns (que, aliás, recebem de Hessen um choque de ironia por ostentarem nomes alemães ou hindus). Isso é contraditório, pois Hessen havia dito anteriormente que alguns poucos obtinham resultados positivos.

Segundo, ao transcrever mais uma vez André Luiz tirando-o do seu contexto e aplicando-o inadvertidamente a outro contexto. Eis a frase: “aproveitar a moléstia como período de lições, sobretudo como tempo de aplicação de valores alusivos à convicção religiosa. A enfermidade pode ser considerada por termômetro da fé”. Se André Luiz aqui tem um propósito outro não é que de consolação com uma base racional. Seja paciente, tire proveito de algo de que não tem solução à vista. Algo como não há mal que não venha para bem. Fora isso, o doente tem o direito e o dever de lutar pela cura, mesmo que o último recurso seja o educativo.

Ao reconhecer seu excesso, Hessen se vale de Kardec para justificá-lo. Eis a frase do codificador: “vale mais pecar por excesso de prudência do que por excesso de confiança”. A frase está fora do contexto. Kardec trata de espíritas meticulosos que vasculham tudo o que dizem espíritos mentirosos, a fim de não serem enganados. E nesse caso, diz Kardec, vale ser excessivo na prudência.

Creio que em se tratando de mediunidade como matéria do conhecimento espírita precisamos de outro tipo de cautela. Há excessos, descuidos e excentricidades germinando nos meios espíritas por conta de preconceitos e, em larga escala, por conta da ignorância que um bom estudo eliminaria.

Quando não se quer educar, proíbe-se. É mais fácil.

Há entre nós quem acredita e propaga que não precisamos mais dos espíritos. Já temos tudo o que necessitamos, dizem. Pregam, assim, um Espiritismo sem espíritos e, por decorrência, decretam o fim da mediunidade. E não se acanham de dizer que este é o nosso futuro. Já não sei se são néscios ou loucos.

Há centro espíritas que decretaram: médiuns de cura, seja de que tipo forem, aqui não têm vez. E levam isso a sério. Jogam-nos na rua quando surge algum na sua mesa mediúnica. Contribuem, assim, para que a obsessão se amplie.

Outros dão atenção apenas a dois tipos de mediunidade: psicografia e psicofonia. São, acreditam, tipos “limpos” de mediunidade, superiores. Têm parte da culpa pela profusão de romances mediúnicos que às centenas são lançados no mercado, de baixíssima qualidade.

Os médiuns interesseiros, desonestos, aproveitadores, enganadores devem ser denunciados. A mediunidade, contudo, deve ser preservada. Kardec, ao seu tempo, já os enfrentava. Alguns mostraram em presença dele provas evidentes da sobrevivência da alma. Para, em seguida e distantes, claudicarem vergonhosamente.

Se catalogarmos apenas os médiuns imaculados não precisaremos de muitas páginas.

Os maus profissionais se misturam com os bons. Às vezes, dão a impressão de serem fragorosa maioria. Nem por isso os seres humanos devem ser condenados à escuridão da noite. Os médicos recebem seu diploma sob a égide do compromisso ético e muitos se tornam carniceiros da saúde. A medicina, contudo, prossegue.

Como diz Herculano Pires, curar e educar é de todos os tempos. O ser adoece e busca a cura. Quando se educa, adoece menos ou não adoece mais.

O centro espírita deve privilegiar as duas coisas. Não pode ser apenas voltado à cura, nem unicamente dedicado à educação. Se cura, precisa educar, se educa, precisa curar. As duas coisas andam juntas. E são dadas quase de graça. Disse quase, porque alguém tem de arcar com os custos do centro.

Hessen reproduz fala de Chico obtida em entrevista de Divaldo. Chico teria, outra vez, recusado oferta de Zé Arigó, mas agora justificando que o seu problema das vistas era um carma. E disse que sabia que Arigó poderia curá-lo, o que é interessante. Sendo carma, Chico acreditava que a doença das vistas, se curada, permitiria aparecer outra doença em alguma outra parte do corpo. O argumento é ruim e ingênuo e de ingênuo Chico não tinha nada. Talvez fosse melhor dizer que tinha medo da faca enferrujada de Arigó.

Somos responsáveis pela conservação da vida. Para isso, contamos com o instinto próprio, que nos empurra agir. Quem sofre por prazer é duplamente doente.

Por conta dos maus praticantes não podemos condenar a mediunidade. Ela está no dia a dia, no cotidiano de cada um. Isso é conhecimento doutrinário. E se manifesta por tipos mediúnicos diversos, que não foram inventados pelo homem, mas herdados nessa longa estrada evolutiva que percorremos.

Repito Herculano: a mediunidade é o nosso passaporte para a espiritualidade.

Do filho, do pai e do…

 

Entrei na sala e fui logo questionado:

­– Por que o filho não continuou espírita?

– Não sei, respondi.

O mesmo questionamento me fiz por muito tempo, até desistir de compreender. Afinal, muitos filhos de muitos outros também não continuaram.

Há uma certa frustração no ar por isso, especialmente quando o filho se torna personalidade pública de destaque. Se continuasse, teríamos (?) um proeminente companheiro a ajudar a vencer as barreiras do conhecimento e dos preconceitos na sociedade. Sem dizer que estaríamos em boa companhia.

Filho de peixe peixinho é. Tudo bem, mas uns nadam em mar aberto, outros em riachos. Há até os que preferem as águas lodosas das cavernas mal iluminadas, em cujos habitats a vida ainda desafia a ciência.

– O pai foi maior que o filho? – questionei ao meu inesperado interlocutor.

– Evidentemente – respondeu de imediato.

Tenho cá minhas dúvidas, pensei. Não que eu não mantenha admiração pelo pai com a mesma intensidade da convivência que tivemos. Que sei eu do filho? Nada relevante para um julgamento justo, conclusivo.

Vejo-o quase diariamente pela tela, ouço-o e leio o que escreve. Minha distância do homem, porém, é abissal. Sei onde mora, como vive, conheço muitos de seus amigos e parceiros. O que não diminui em nada essa distância. A tela ilude, a voz engana, o texto trai. E os amigos, bem, os amigos só quem os tem sabe o que valem.

– Só porque era espírita? – perguntei com discreta ironia.

– Sim e não – respondeu, sem demonstrar segurança.

Dois observadores próximos sorriram. Um terceiro se aproximou, com ares de curiosidade. Fiz menção de seguir adiante, encerrando o diálogo. Mas resolvi perguntar ainda.

– Se o filho se declarasse espírita, seria maior que o pai? E o pai seria maior do que foi?

Ele não respondeu. Então, segui à frente e apresentei meus apontamentos para uma plateia em expectativa. Afinal, meu foco era o pai. Humano e por isso mesmo admirável.

Como estar por dentro sem estar dentro? Ou como estar dentro e ficar por dentro?

 

Se seu amigo lhe fizer uma dessas perguntas, ou as duas, saiba que ele está querendo lhe complicar. Fuja. Depois de tecida, a rede praticamente elimina a possibilidade de você encontrar o verdadeiro fio da meada. É por isso que muitos dos que estão fora jamais conseguirão ficar por dentro. E muitos dos que estão dentro também.

Não bastasse a complexidade da vida em sua combinação espírito-corpo, há ainda a complexidade da mente humana na sua relação sócio comunicativa. Que pode ser afetiva ou simplesmente não. Uma complexidade complexa. E por isso terrível.

Estando fora, podemos ficar por dentro em parte, e isso com muita argúcia e um pouco de esperteza. A trama da rede lhe oferece ene possibilidades e muitos caminhos falsos. Por isso é rede e para isso é tecida.

Se lhe interessa desvendar a rede, qualquer rede, cuida de não se iludir com os balões de ensaio e as falsas indicações. Os balões e as indicações costumam ser preparados ao mesmo tempo em que se tece a rede. Na verdade, fazem parte da rede.

A comunicação é uma rede que está na rede e a tecnologia é um aparato da rede que não pode ser analisado ou compreendido fora da rede. O senso comum toma a mídia como sinônimo de tecnologia, o que nem sempre é de bom senso. Não há tecnologia sem rede nem rede sem tecnologia. Desde sempre.

O ser humano é o tecelão da rede, mas também sujeito dela. Está nela enquanto a tece, sem ocupar um lugar fixo visto que se movimenta como um aracnídeo em seu vai e vem constante. Isso explica sua onipresença parcial e sua profunda incapacidade de sempre estar por dentro, embora esteja dentro.

Escutar é do ato comunicativo dialógico praticado na rede, contudo tomou-se providências para regular a escuta. Ela ou é legal ou não. A regulação não é da natureza da rede, mas do seu ocupante e do desejo abissal que o ser tem de dominá-la.

Eis então duas ilusões simultâneas: a possibilidade do domínio da rede é uma, a outra é controlar as escutas. Em qualquer nível ou ponto da rede. A razão disso está nas vozes que circulam na rede.

A voz e a escuta são assim os dois fundamentos da comunicação e explicam porque o controle de uma e outra o tempo todo é absolutamente impossível. Como parar as vozes sem violência? E como manter a violência sem as vozes? Pois se há voz há escuta implícita na relação comunicativa. Se legal ou ilegal é pouco significativo para um ato, o comunicativo, que está na base de tessitura da rede.

Sem comunicação impossível tecer a rede. Onde ela para, a rede se rompe ou estanca. A trama prossegue sempre sob o comando comunicativo, na direção que este lhe imprime. Assim, muitas vozes, muitas escutas, direções diversas.

Se tomarmos um ponto demarcado da rede, significativo em termos de universo de observação, ainda assim veremos uma situação caótica pela complexidade comunicativa. Estamos dentro sem necessariamente estarmos por dentro, ou seja, sabemos pouco ou nada de muito, mesmo que pouco e muito sejam termos indefiníveis.

Por outro lado, para nos apropriarmos da rede precisamos dar visibilidade a ela. O que só pode ocorrer pelo simbolismo. Mas isso é conversa para outra ocasião.

Importa destacar o fato de o ser estar presente na rede como seu autor ao mesmo tempo em que a compreensão disso o desafia e solicita esforço enorme para estar por dentro, situando-se próximo ou distante dos pontos da rede onde os acontecimentos ocorrem.

Em suma, necessita do saber para um agir consciente mínimo. E para além de qualquer ilusão.

Meus sonhos me assustam… e não!

 

Quando um sonho me assusta, quer saber, não me vergo. Se abandono um sonho – e abandono constantemente – substituo por outros.

Sonho muito pela manhã, ao acordar, mas muito pouco ao meio-dia, após o almoço, pois o alimento entorpece o imaginário. Sem ele não há sonhos.

Vivo dos sonhos, nos sonhos, pelos sonhos. Quando desejam me matar, matam primeiro meus sonhos. O que não sabem, ou sabem e fingem que não, é que os sonhos também se refazem quando abruptamente seccionados.

Os sonhos matinais são os melhores, porque motivam meus passos, menos aqueles do banho, que são libidinosos.

Imagino que todos saibam que os sonhos e o imaginário se confundem em quantidade e velocidade. Talvez por isso seja tão difícil separar o que é imaginação do que é sonho. Eu pelo menos não consigo.

Se me pego sonhando com poder e glória, me imagino o mais justo e ético dos seres, capaz de construir o mundo dos sonhos de todos que são do bem. Se me pego a analisar o sonho desfeito do homem frágil de boas intenções, tenho certeza de que não farei jamais como ele.

Saber-se forte é um sonho irrealizado.

O sonho concretizado é fonte de prazer. Sinto-me feliz e disposto a sonhar mais e mais. A realização do sonho é o sonho do sonho e o prazer que se sente é sonho de mais prazer.

Já o sonho malogrado me embrutece e faz meus demônios interiores aflorarem. Nesse momento me torno assassino potencial dos sonhos de todos os que sonham, porque surge em mim essa sanha incontrolável de dominar egoisticamente a fonte da vera felicidade.

Em primeiro lugar meus sonhos. Depois… os outros!

Mas como disse os sonhos matinais são os melhores. Primeiro, porque desfazem alguns sonhos noturnos assustadores. Depois porque são floridos e risonhos. Me deixam contente e o contentamento é sonho de que tudo pode ser imaginado.

O poder da imaginação é sonho.

Sonho de manhã também para esquecer os sonhos noturnos e aqueles do dia anterior que apenas imaginei e julguei serem sonhos. Bem como os sonhos que foram destruídos pelo sopro da realidade, essa inimiga natural dos sonhos.

Os sonhos que são sonhos têm o poder da renovação.

Dias atrás, era um sábado, acordei seco. Sem lembranças e sonhos. Desci até à Jaqueira, sentei-me solitário e vi, como num sonho, o verde fecundo da relva reproduzindo sonhos de crescimento.

Levantei-me e caminhei, porque andar é imaginar e sonhar e viver.