Os espíritos e o contexto das novas existências no planeta*

O olhar curioso se volta às existências humanas e questiona sobre a condição espiritual das personalidades que se destacam no planeta: serão elas corpos a serviço de espíritos superiores? A resposta poderá adquirir dimensões e complexidades desafiadoras.

                                “Muito do que nós somos, independentemente de fatores genéticos, é resultado do contato que temos com o meio em que vivemos e das pessoas com as quais nos relacionamos durante toda a vida. J.R.Marques

Allan Kardec desencarnou em 1869 e não demorou para ser declarado um espírito superior pelos adeptos do espiritismo. Espírito superior diz respeito àquelas entidades que ocupam o penúltimo degrau na hierarquia estabelecida pelo próprio Allan Kardec em O livro dos espíritos, ou seja, a escala espírita. Acima desses espíritos estão apenas aqueles outros, indicados na escala, declarados espíritos puros, os quais alcançaram o topo da evolução e não mais precisam das experiências corporais em mundos materiais para esse fim.

A escala espírita não tem relação direta com os processos de canonização dos santos católicos, mas de alguma forma faz recordar a existência dos santos daquela religião. Essa escala é um modo de demonstrar a racionalidade do pensamento espírita e serve para, claramente, fazer reposicionar a visão dos seres humanos em relação à existência dos espíritos, o seu progresso e a imortalidade da alma. O fundamento da posição na escala de cada um dos seres se assenta na evolução, no progresso, em especial feito nas encarnações em corpos materiais nos mundos que proliferam no universo. Entende-se que essa evolução não cessa nos intervalos entre uma existência e outra, mas é realizada pela conquista de valores morais espirituais nas existências reencarnatórias.

Onde quer que estejam os espíritas, há entre eles uma espécie de consenso que reconhece ter Allan Kardec demonstrado nos quase 65 anos de vida física em França, no século XIX, a envergadura de um espírito capaz de ser classificado como superior. Condições morais, intelectuais e tantas outras se reuniram em torno de sua figura, numa trajetória marcada por conquistas e realizações que se perpetuam numa obra densa, da qual resultou essa doutrina denominada espírita.

O estudo da vida de Allan Kardec por inteiro, nos períodos pré e pós espiritismo, revela-se extraordinário e quase inesgotável, mas mostra também a figura que foi. Por isso mesmo, essa qualificação que se lhe atribui de espírito superior aponta para a oportunidade de fazer-se um estudo sobre a relação espírito superior e contexto reencarnatório (entendendo-se por contexto o conjunto de fatores como “tipo de ambiente, tipo de linguagem, classe social, condições econômicas, nível de escolaridade, relações humanas etc., que estão relacionados com a integração de um indivíduo na sociedade”). O objetivo é a busca de um aclaramento, quanto viável, das capacidades que o espírito superior possui de ser um indivíduo de sua época e ao mesmo tempo superar o contexto sociocultural em que se situa. Afinal, Kardec, de forma indubitável, mostra-se um homem submetido aos laços do seu momento histórico e ainda assim fez obra digna de um homem para além do seu tempo.

É fato – que não deve surpreender ninguém: o contexto de Kardec submeteu e direcionou em parte o seu pensamento, levando-o a adotar ideias e a assumir posições intelectuais que o pensamento contemporâneo contesta com razão. Há um movimento fortalecido na atualidade do espiritismo no mundo, com ênfase no Brasil, em que algumas conclusões de Kardec, se são explicadas ou compreendidas pela análise contextual de sua época, não se adequam aos tempos atuais em vista do progresso humano. Nos pontos em que isso se dá, Kardec viu-se enredado pelas ideias dominantes, sejam filosóficas, sejam científicas, mas também decorrentes de crenças e valores de então. Parte dessas ideias se encontra nas suas obras; não são, porém, predominantes e sequer extensas. Pode-se tranquilamente dizer que são pontuais.

O arcabouço filosófico da doutrina espírita não se vê em dificuldades por conta dos pontos discutíveis. Pensadores clássicos e contemporâneos entendem, acertadamente, que fundamentos doutrinários, que marcam com o selo de uma verdadeira revolução as ideias implementadas a partir dos estudos de Kardec, permanecem inabaláveis em seus valores profundos. Tais sejam, a noção de imortalidade da alma e sua relação com a manutenção da individualidade do ser, o sentido de progresso dos espíritos e o processo reencarnatório, onde os seres espirituais por meio dos corpos materiais realizam experiências fundamentais da sua evolução. Ainda, as relações comunicativas entre espíritos e homens, ou seja, seres encarnados e não encarnados, numa condição de permanência e naturalidade, relações essas entendidas sob o rótulo de mediunidade. Além de outros fundamentos.

O estudo do contexto, não sob o viés único de sua prevalência parcial sobre o pensamento de Kardec, mas para fins de análise das capacidades do espírito ao submeter-se à existência no mundo físico, no sentido de poder ou não superar o contexto e projetar-se para além dele, especialmente no caso dos chamados espíritos superiores, pode se constituir em estudo importante e necessário, se não somente para o caso particular do homem Kardec, senão de forma geral para o entendimento do espírito em suas condições quando submetido aos limites do corpo físico.

A ideia de que um espírito superior, quando corporificado no planeta, chega dotado da condição de infalibilidade e por si mesmo detém as capacidades necessárias para a construção de uma obra perfeita, pode conduzir à outra ideia da prevalência da autoridade indiscutível, fato este que, se assumido, se mostra contrastante com as vidas e obras dos grandes indivíduos que por aqui fizeram história. Até onde e quanto podem os espíritos superiores em suas missões planetárias por meio do corpo físico? – eis o desafio.

No caso particular de Allan Kardec e tomando-o na condição de um espírito superior, vemos o indivíduo já pelo nascimento de frente com os conflitos familiares em que seu destino se torna incerto e duvidoso. As influências sobre o espírito reencarnado exercidas pelos pais, em presença destes ou por conta da ausência mesma são aceitas como certas e importantes ao desenvolvimento psicológico do ser. O fato de haver Kardec se submetido à influência do reconhecido educador Pestalozzi, pelo ingresso em seu instituto suíço, e ali mesmo ter alcançado destaque se soma aos fatores presentes em sua existência, marcando-o com o selo das ideias avançadas da época, a ponto, por exemplo, de perguntar-se se tivesse vivido em ambiente inóspito teria, ainda assim, o espírito superior alcançado igual sucesso moral e intelectual? Se sim ou se não, embora seja apenas e mera conjectura, viria, todavia, a resposta ao encontro da indagação formulada para o caso do espírito superior e o seu contexto na existência material.

Independentemente de qualquer lógica que sobressaia indicando respostas de imediato, como se únicas e verdadeiras fossem, a racionalidade científica permanecerá questionando em busca de evidências sustentadoras. Some-se, pois, também como importante acréscimo, o questionamento às capacidades do espírito superior na relação com o corpo e suas heranças genéticas, seja para superar obstáculos no comando do corpo físico, seja para poder determiná-lo às ações segundo seus desígnios ou superar os conflitos naturais às circunstâncias materiais e contextuais.

A expressão antiga que afirma: para um criado de quarto não há homem perfeito, se aplicada aqui pode resultar na aceitação de que o espírito superior, por mais condições ótimas que reúna para enfrentar os conflitos de uma existência físico-corpórea, não as possui em quantidade suficiente a ponto de garantir conclusivamente o sucesso moral espiritual na nova existência. Se assim, portanto, restaria concluir que a qualificação de espírito superior, pelo menos em relação à vida no corpo físico, é ainda um estágio abaixo do descrito na escala, ou seja, significaria uma superioridade relativa, jamais absoluta.

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* Texto publicado em espanhol na Revista Evolución Venezuela Espírita, número 15, dezembro 2022, com tradução de Conchita Delgado Rivas.

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