Autor: wgarcia

O espiritismo segundo o evangelho

A inversão de valores ganhou adeptos, cresceu e atualmente aquele que não adere é julgado fora da ordem e desnaturalizado.

Há um processo imperceptível, gradual, que altera a ordem dos fatos e inverte posições. Kardec começa sua obra pelo Livro dos espíritos e a filosofia. Produz, na sequência, o Livro dos médiuns, promovendo a razão que explica os fatos e dá suporte à filosofia. Por fim, entra na natureza de Jesus e no seu ensino e assenta a moral consequente da filosofia inicial. Está, assim, formalizado o Espiritismo em bases que, para usar o lugar comum, representam uma construção sobre a rocha.

O processo de degradação – e não se imagine que falo aqui de pureza doutrinária – inicia-se logo a seguir e este processo pode ser elevado ao nível da naturalidade, mesmo que ele se dê, em verdade, no nível da cognição. Assim como a natureza leva a vida a alcançar rapidamente o seu ápice e depois entrar em declínio, a construção do conhecimento, em certa medida, obedece ao mesmo processo de apogeu e declínio.

O apogeu de Kardec encontra-se no momento em que a sua obra é colocada à disposição do leitor e não quando este leitor a completa; é ali, na exposição pública e incontrolável do pensamento em forma de discurso que o autor se dá à contemplação do conteúdo e à reflexão dos seus desdobramentos. Após, não pode mais controlar esses desdobramentos que surgem com a recepção, significando aqui o começo do declínio da obra e o início de construção de um novo conteúdo, que já não será mais tão-só o pensamento e as significações propostas pelo autor, mas a soma destas com as que o leitor então elabora. Leia o texto completo

 

O que você morre e o que vive

Samba, de Di Cavalcanti, transformada por IA.

Quando não ceifada antes da morte natural, a árvore se desfaz no lento processo do tempo. Seus lamentos, se lamenta, não são audíveis e sua memória, se existe, não roga luz. A árvore simplesmente cumpre o seu trajeto na vida e deixa à natureza o destino. Quando ela morre todos sabemos o que acontece.

O homem, em sua sabedoria anã, torce e retorce na duração escassa do tempo em que (sobre)vive, desejando que a memória seja imortal, posto que de si mesmo desconhece as duas: (i)mortalidade.

Mais do que a ansiedade da vida há a da história. O tempo que encurta dia a dia surpreende pela rapidez com que se despetala e aumenta essa ansiedade de memória. A contrapartida surge no desejo de registrá-la cada vez mais cedo. Por isso, homens com parca história já se sentem premidos para contar suas experiências. É verdade, também pressionado pelo sistema de compra e venda que o oprime.

As (auto)biografias de vidas que nem alcançaram o segundo degrau da escada inundam as estantes das livrarias e fazem jorrar ausências, porque onde não tem história sobra palavra. Só quando o estilo é bem cuidado se ganha alguma coisa. Mas… isso é raro e pouco.

 O homem ansioso do nosso tempo não quer simplesmente ver esvaírem-se seus dias sem dar sua versão de si nem substituir os vazios por ações capazes de fazer história. O ver e fazer-se ver justificam as mentiras, as omissões e as fantasias contadas com toda seriedade. Leia o texto completo

 

Que multidão me mutila?

Na multidão não sou nada, não sou ninguém…

A multidão me assombra, sob quaisquer dos seus aspectos. Nela, sinto-me comandado, empurrado, mutilado, indefeso, impelido, sem controle.

Na multidão não sou nada, nem gente, nem ser, nem ente. Sou vara de marmelo, pronta para açoitar, marcar, afirmar, sob o comando do desconhecido, de voz qualquer.

Com a multidão me vejo forte, de uma força descomunal, despido de sentimentos, de capacidade de controle, de tempo e pensamento.

Deixo de ser alguém na multidão, para me tornar instrumento, dente de engrenagem, vórtice sugador, martelo de bater, espada de matar, aríete de atirar e destruir.

Na multidão me perco de tudo aquilo que sou, sonho, projeto, desejo, aspiro. Sou voz descontrolada, abafada, inaudível, descoordenada. Leia texto completo

 

Um trono para uma rainha

Conta-se que num país distante uma jovem de beleza invejável sonhava um dia poder sentar no trono e de lá irradiar toda sua bondade e justiça aos seus súditos. Depois de muito esforço, conseguiu aproximar-se do rei e sua beleza o fez sorrir, sua graça o conquistou e sua inteligência fê-lo reverenciá-la.

O rei ofereceu-lhe um lugar próximo ao trono e a jovem, toda contente, sentiu-se elevada aos céus. Logo, porém, estar próxima do rei não lhe era suficiente, de modo que ambicionou casar-se com o conselheiro e amigo do rei, de modo a mostrar toda sua capacidade e lealdade, porém o conselheiro do rei já havia escolhido aquela que faria parte de sua vida, e não era ela. Isso deixou a moça triste durante muito tempo, mas ela não perdia a esperança de um dia desposá-lo.

Contudo, vendo que o conselheiro do rei havia tornado realidade seu casamento com a moça que escolhera, e tendo ele partido para uma longa viagem, a jovem se colocou em presença do rei e se disse à disposição para ocupar o lugar de conselheiro provisoriamente vago, obtendo do rei, que a admirava muito, pleno consentimento. E foi dessa forma que a jovem passou a saber das intimidades do rei, das suas angústias e dos seus sonhos, admirando-se logo pelo fato de que de perto o rei parecia ainda mais belo e inteligente do que à distância.

Mas quando o conselheiro do rei retomou o seu posto, a jovem soube que deveria prosseguir e erguer o seu próprio trono de outra maneira. Foi assim que se despediu do rei garantindo que continuaria fiel a ele por todo o sempre, e que ele seria o rei que jamais conheceu antes. Leia o texto completo

 

Um coração grande para uma razão imensa

O caro Arnaldo da EME, amigo de tantas décadas, que assina Rodrigues de Camargo, enviou-me em abril passado um exemplar do seu livro Mente saudável, vida serena, recém-publicado pela mesma editora que fundou e com garra especial dirige na cidade de Capivari, interior de São Paulo. Edição bem cuidada, com ilustrações expressivas e cores leves, em acordo fino com o sentido dos textos que reuniu, páginas de sua criação esparsas aqui e ali, agora num só volume.

Aí está. Mente saudável, vida serena nos trás um Arnaldo de hoje, depois das esfregas editoriais que todo gráfico há de ter para ser de fato um editor, e das subidas e descidas da vida que a estrada apresenta em suas surpreendentes nuances diárias; mas é, no fundo, o mesmo homem de mais de quatro décadas atrás, quando o conheci e desde então persegui e provoquei, vi e admirei. Dedicado às boas causas, persistente, aprendiz em regime continuado, de fala tranquila, editor mais por destino que escolha, mas desafiador no ramo livreiro pelo qual se empolgou: o livro espírita.

Quando leio as páginas deste seu Mente saudável, vida serena, confesso, (mais…)

Nova seção

A partir de hoje, 10 de junho de 2023, o leitor deste blog tem uma nova seção disponível. Trata-se da página Postagens esquecidas, que ficará permanente e poderá ser acessada pelo interessado, quando desejar. Já está disponível nela o primeiro texto, intitulado A (im)prensa. E o espiritismo?, escrito tempos atrás e esquecido entre os materiais a publicar. Para ler, clique aqui. A nova seção será abastecida sempre que um texto não publicado for descoberto e por aqui darei ciência de cada um deles ao distinto leitor. Boa leitura.

O cerne da questão dos sofrimentos futuros

Com o advento da concepção da autonomia moral e livre-arbítrio dos indivíduos, a questão das dores e provas futuras encontra uma nova noção, de acordo com o que se convencionou chamar justiça divina.

O pior das discussões sobre os fundamentos do espiritismo se dá quando nos afastamos do ponto central ou, tão prejudicial quanto, sequer alcançamos esse ponto, ou seja, permanecemos na periferia dos fatos, casos e acontecimentos justificadores. As discussões costumam, normalmente e para mal dos pecados, se desviarem do foco e alcançar um estágio tal de distanciamento que fica impossível um retorno. Em grande parte das vezes, o acirramento dos ânimos se faz inevitável.

A ideia da autonomia moral é alentadora. Antes se dizia: “quem o alheio veste na praça o despe”. Essa palavra é expressiva, mas parcial, pois não abrange um percurso mínimo de explicação de um fato. Bem compreendida, porém, fará sentido e então não será repelida.

O advento do espiritismo trouxe uma nova visão, revolucionária, para a justiça dita divina, mas, a princípio, talvez pelo afã de tentar aplicar a ideia (mais…)

O gato e o guizo

Ou por um espiritismo respeitado.

 

Fazia mais de três meses que o gato fora tirado de casa e posto na rua. Ou não perceberam, ou não o viram, ou, quem sabe, não quiseram ver. Teriam sido iludidos por uma imagem que o tempo familiarizou, a do bichinho terno e meigo? Sabem todos, as imagens possuem uma capacidade intrínseca de iludir, posto que parecem fáceis de ler. Ninguém viu. Estavam como na canção do Chico, “falando de lado e olhando pro chão”?

Havia no gato de pele macia uma mancha vermelha, chamando a atenção de tal forma que deveria incomodar ao primeiro transeunte que passasse por ele. Impossível não notar. Ainda assim, o gato caminhava no seu passo manso por entre pessoas proseantes, risonhas, jovens e adultos, vestidos com aprumo ou em trajes simples, gente que passeava ou andava a passo largo rumo ao trabalho. Como não o veriam, o animalzinho que tantos encantos arranca, com aquela mancha postiça tão marcante?

O nosso personagem virou esquinas, andou em avenidas, passou por ruas descalças, esteve em frente a prédios suntuosos e casas simples, viu pessoas nas janelas e janelas sem ninguém e apesar do seu miado dolorido, (mais…)

Allan Kardec: texto e contexto

SOBRE AS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS” DE SUAS OBRAS *

Por Jon Aizpúrua

I – O TEMPO DE KARDEC E OS AVANÇOS CIENTÍFICOS E SOCIAIS

Ao longo dos séculos, a humanidade passou por muitas e intensas revoluções do conhecimento que estão oferecendo novas perspectivas para a compreensão e interpretação do que constitui o que é concebido como realidade. É o que se chama, segundo Kuhn, mudança de paradigma, ou seja, a substituição de antigas abordagens por outras mais eficientes para explicar contradições, esclarecer enigmas e apresentar hipóteses que parecem ter maior plausibilidade e que, se verificadas, são incorporadas ao patrimônio científico e cultural. O dinamismo e a interação desses processos são a própria essência do progresso.

A emergência de novos paradigmas ou esquemas interpretativos sobre o universo, a vida, o ser humano, bem como os princípios e valores vigentes no campo cultural de ordem ética, moral ou jurídica, ocorre em determinado contexto social, histórico, econômico, político ou espiritual, de modo que nenhum sistema de pensamento escapa aos condicionamentos inerentes à época em que aparece e se desenvolve, Isso se manifesta na aceitação das crenças dominantes e na linguagem utilizada para expressá-las.

É claro que o espiritismo não é exceção a essa lei geral que sinaliza o processo gradual de avanços no campo do conhecimento. Surgido em meados do século XIX, graças ao trabalho minucioso, teórico e experimental, realizado por Allan Kardec, com a assessoria de espíritos desencarnados de elevada condição intelectual e moral, não poderia deixar de receber as influências do contexto geral de sua época, representado pelas ideias filosóficas, científicas, (mais…)