Onde a raça, (ul)trapaça

O chicote e o tronco recolhidos dos morros do sofrimento foram retirados dos museus da história onde se encontravam, para açoitar a palavra daqueles que “deveriam” ter tido o cuidado de escrever e pensar em acordo com o avanço cultural de 100 anos depois.

A louca alegria do suplício prossegue…

Allan Kardec, o vulto humano gerado nas terras gálicas de um tempo distante e dado à luz na Paris do dia 18 de abril de 1857, ele e seus espíritos insolentes, são as vítimas brancas da mentalidade negra dos justiceiros da atualidade. Estes se lançam aos mesmos espaços públicos onde teriam sido um dia personagens e vítimas do açoite empunhado pela mão desumana e agora gritam por justiça, tendo à sua frente, de cabeça baixa e olhos ao chão, aqueles cuja obra rompeu, como poucas, o pensamento retrógrado do bem e do mal. O açoite tine aos ventos enquanto o sangue das palavras espirra para todos os lados. O homem que dá a voz de comando nesta nova colonialidade respira, com parcial alívio, por afrouxar do peito o traumático cravo ali pregado, que há tempos o atormenta. Sorri, feliz. Enfim, a justiça está em andamento. Onde a raça, (ul)trapaça.

Mas o ódio, embalado com o celofane translúcido deste tresloucado afeto, só se dará por extinto quando todos os corpos e todos os espíritos vierem ao chão tingido por todos os sangues. Neste 18 de abril de 2023, a nova vítima foi apresentada no Gólgota (ou Pelourinho?) da virtualidade: O livro dos espíritos, posto disponível para gregos e romanos como o infiel convertido e, enfim, salvo. Eis que agora é antirracista. No novo Index Librorum Prohibitorum foram lançados o pensador e a obra incorrigivelmente racista. A paz transparece estranha e serena num céu de nuvens densamente carregadas.

Os discursos de justa causa se intensificam sob a pena seca de verdades dos justiceiros contemporâneos, pois, afinal, é preciso manter o foco e prosseguir com garra indestrutível até a conclusão do vil projeto. Nós amamos de paixão – ouve-se dizerem em tom profético – o velho educador Rivail da pequenina Bourg-en-Bresse e estamos a fazer aquilo que certamente faria ele se na pele do homem contemporâneo estivesse. E como que prosseguem: nós somos a sua consciência em terras brasílicas em tempos de acerto de contas. Somos suas mãos, seus olhos e seu alívio e, mesmo com o coração partido por tantos andares e desvios, fazemos o sacrifício necessário de branquear todas as almas enegrecidas. Prometemos, com humana compaixão e o mesmo alvo lençol dos tempos de antanho, recolher do tronco do suplício seu inanimado corpo, fazendo-o meritoriamente repousar no túmulo silente da paz eterna.

Na planície das almas aderidas a um insosso propósito de união, ouvem-se tímidas vozes de repúdio aqui e ali. Nenhuma, porém, com a virilidade necessária para impedir o cortejo fúnebre que leva para debaixo da lápide humilhante o corpo sem veias e vísceras até então inigualavelmente exaltado. Esperam um sinal do céu? Que as pedras falem? A vinda do messias? Que os homens menos bons se tornem de fato bons?

 Ao lado do túmulo o carrasco orgulhoso de pé, capuz na cabeça e chicote na mão. A próxima vítima está a caminho e os amantes das cenas sangrentas aguardam, ávidos. O suplício não acabou.

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