Herculano Pires, fazendo coro com os críticos literários, denominou Jorge Rizzini o “Dostoievski brasileiro” logo após a publicação do livro Beco dos Aflitos em 1957, livro este que provocou a surpresa de muitos e admiração de outros tantos. Conhecedores do estilo dostoievskiano viram admirados sua presença forte nas linhas dos contos daquele livro, que antes de se tornar brochura já havia conquistado o Prêmio Caio Prado. Desde então, Rizzini pode ser visto como detentor do melhor estilo literário do espiritismo brasileiro. Nesse aspecto, era ele primoroso.

Rizzini e Herculano se conheceram em 1952. Curiosamente, nasceram ambos no dia 25 de setembro, com exatos dez anos de diferença. Herculano em 1914 e Rizzini em 1924. Ao se cumprimentarem pela primeira vez, o avareense tinha seus 38 anos e o paulistano 28. Daquele primeiro encontro surgiu uma amizade tão forte que se estenderia por 27 anos, até março de 1979, quando Herculano se desligou do seu corpo físico.

O epíteto “Dostoievski brasileiro” que Rizzini recebeu da crítica literária é devido, evidentemente, à semelhança do estilo do escritor brasileiro e o russo. Mas quais eram essas semelhanças? Vejamos, pois, com o auxílio da inteligência artificial.

O estilo literário de Fiódor Dostoiévski é marcado por uma série de características que o tornaram um dos maiores escritores da literatura mundial. Aqui estão algumas das principais:

  1. Profundidade Psicológica

Dostoiévski é conhecido por explorar as profundezas da mente humana, investigando motivações, dilemas morais e conflitos internos. Seus personagens geralmente passam por crises existenciais e apresentam uma complexidade emocional rara. Essa característica é evidente em obras como Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov.

  1. Filosofia Existencial

Suas obras são carregadas de questões filosóficas e existenciais, muitas vezes ligadas à moralidade, ao livre-arbítrio, à fé e ao sentido da vida. Dostoiévski aborda temas como o sofrimento humano, a luta entre o bem e o mal e o papel de Deus na vida das pessoas.

  1. Diálogo Interior e Monólogos

Seus textos frequentemente apresentam longos monólogos e diálogos interiores, onde os personagens analisam seus próprios sentimentos e dilemas. Ele utiliza essas passagens para explorar questões complexas sobre a consciência e a moralidade.

  1. Personagens Extremamente Contraditórios

Muitos dos personagens de Dostoiévski são cheios de contradições, o que os torna fascinantes e imprevisíveis. Eles podem ser ao mesmo tempo virtuosos e cruéis, racionais e irracionais, refletindo a complexidade da natureza humana.

  1. Narrativa Fragmentada

A narrativa de Dostoiévski muitas vezes segue um estilo fragmentado, com mudanças abruptas de perspectiva e foco. Ele alterna entre diferentes pontos de vista, às vezes com narradores pouco confiáveis, o que reflete a incerteza moral e psicológica dos personagens.

  1. Ambiente Sombrio e Atmosfera Opressiva

O ambiente nas obras de Dostoiévski costuma ser sombrio, muitas vezes com cenários urbanos degradados, como em Crime e Castigo, onde São Petersburgo é retratada como um lugar sufocante e claustrofóbico. Esse cenário reforça o estado emocional dos personagens e a angústia existencial.

  1. Temas Religiosos e Místicos

Embora Dostoiévski frequentemente explore o sofrimento e a degradação moral, suas obras também trazem discussões profundas sobre fé e redenção. Ele examina a relação do homem com Deus e o papel da espiritualidade na superação dos conflitos internos.

  1. Crítica Social

Dostoiévski faz críticas incisivas à sociedade russa de sua época, abordando temas como a pobreza, a injustiça e a corrupção. Ele também critica o socialismo nascente e outras ideologias que ele via como uma ameaça à alma humana.

  1. Tragédia e Sofrimento Humano

A dor e o sofrimento são centrais na obra de Dostoiévski. Seus personagens frequentemente enfrentam crises existenciais intensas e, por meio desse sofrimento, ele explora a condição humana em toda sua profundidade.

Essas características tornam a leitura de Dostoiévski uma experiência densa, emocionalmente intensa e profundamente filosófica, e é o que faz suas obras continuarem a ser estudadas e admiradas.

RIZZINI SERIA DE FATO UM DOSTOIEVSKIANO?

Poderíamos dizer que essa titulação foi justa, ou seja, que os contos de Beco dos Aflitos guardam similaridade com o estilo de Dostoievski?

A comparação pode ser vista como justa em certos aspectos, mas também merece um exame cuidadoso.

Similaridades:

  1. Exploração da Condição Humana e Sofrimento: Assim como Dostoiévski, Rizzini aborda a dor e o sofrimento humano em Beco dos Aflitos, título que já sugere um espaço de angústia e aflição. A temática do sofrimento e das adversidades, especialmente em contextos urbanos e sociais opressivos, ressoa com a obra de Dostoiévski.
  2. Ambientes Opressivos: Rizzini escolhe o cenário de São Paulo para ambientar seus contos, e o Beco dos Aflitos era historicamente um lugar ligado à marginalização e à pobreza. Essa escolha pode ser comparada aos cenários urbanos sombrios de Dostoiévski, como São Petersburgo, que funcionam quase como personagens em si mesmos, intensificando o seu drama emocional.
  3. Personagens Marginalizados: Assim como Dostoiévski, Rizzini tem uma forte inclinação para retratar personagens marginalizados ou em situações de desespero moral e social. Dostoiévski frequentemente retrata personagens à beira da ruína ou da marginalização, como em Crime e Castigo, havendo uma correspondência temática em Beco dos Aflitos.
  4. Reflexão sobre Questões Morais e Sociais: Em seus contos, Rizzini também aborda temas que podem ecoar o estilo moral e filosófico de Dostoiévski. Questões de justiça, moralidade e o conflito entre o bem e o mal aparecem nas histórias de ambos os autores, criando paralelos interessantes.

Diferenças:

  1. Complexidade Psicológica: Dostoiévski é famoso por mergulhar profundamente na psicologia de seus personagens, expondo suas contradições internas de forma exaustiva. Rizzini, embora explore a condição humana e seus dilemas, tende a ser mais direto e conciso, o que pode ser uma diferença significativa de estilo, especialmente em um gênero mais curto como o conto.
  2. Abordagem Filosófica: Enquanto Dostoiévski tem uma abordagem explicitamente filosófica, muitas vezes envolvendo discussões teológicas e existenciais profundas, Rizzini tende a ser mais social e histórico em seu enfoque. A reflexão de Rizzini pode ser mais situada nas condições materiais e sociais do Brasil, enquanto Dostoiévski explora questões mais universais da alma humana.

BECO DOS AFLITOS É UM LIVRO ESPÍRITA?

Beco dos Aflitos, de Jorge Rizzini, não foi publicado e nem mesmo assumido explicitamente pelo autor como um livro genuinamente espírita, o que não implica em dizer que não o era.

A seguinte explicação, entre outras, dada por Jorge Rizzini sobre os personagens que ele criou em Beco dos Aflitos não seria uma razão forte para caracterizar o livro como espírita? Aqui está:

“Realmente. Graças à minha experiência obtive uma revelação surpreendente, das mais importantes: a existência não hipotética, mas real e palpável de inúmeros fantasmas que lutam contra a nossa personalidade, tentando absorvê-la como canibais famintos”.

Rizzini continua:

“Fantasmas com vida autônoma, desligados de quaisquer cordões umbilicais; fantasmas tão poderosos que além de nos governar (muitas vezes sem que o saibamos) são inatingíveis. Pude, porém, conversar com eles, fizemo-nos amigos, apertamos as mãos, prometemos por um longo tempo não entrar mais em choque. Minha viagem parou no meio, não atingi Deus, mas me sinto bem pago. Meu livro narra os encontros com os fantasmas e creio que só as pessoas no espírito adultas poderão compreender, em profundidade, os diálogos abismais por nós mantidos”.

RAZÕES PARA A CARACTERIZAÇÃO ESPÍRITA

  1. Referência a Espíritos ou Fantasmas

Ao mencionar a “existência real e palpável de inúmeros fantasmas que lutam contra a nossa personalidade”, Rizzini certamente apresenta um fundamento forte para caracterizar Beco dos Aflitos como uma obra com influências espíritas.

A referência a “fantasmas” que interagem diretamente com os personagens é uma referência clara a entidades espirituais, o que está profundamente alinhado com os princípios do Espiritismo. No Espiritismo, acredita-se na existência de espíritos que podem influenciar os vivos, para o bem ou para o mal, uma ideia próxima à descrição de Rizzini.

A descrição de “fantasmas com vida autônoma” e “desligados de quaisquer cordões umbilicais” sugere a visão espírita de espíritos desencarnados, que não estão mais ligados ao mundo físico. Essa autonomia espiritual reforça o conceito de individualidade das almas após a morte, um princípio fundamental do Espiritismo. No Espiritismo, os espíritos têm vida própria, independentes dos corpos, e podem influenciar ou interagir com os vivos.

  1. Conceito de Influência Espiritual

A ideia de “fantasmas que lutam contra a nossa personalidade” e tentam absorvê-la evoca a doutrina espírita sobre a obsessão espiritual, em que espíritos inferiores tentam dominar ou influenciar a mente das pessoas. Isso reflete um dos aspectos mais centrais da crença espírita, onde seres desencarnados podem impactar diretamente a vida dos encarnados.

A afirmação de que esses fantasmas “nos governam, muitas vezes sem que o saibamos”, ecoa a doutrina da obsessão e influência espiritual que o Espiritismo descreve, onde espíritos desencarnados podem afetar os pensamentos e ações dos vivos. Isso está intimamente relacionado com a ideia espírita de que a mente humana pode ser influenciada por forças espirituais, muitas vezes sem plena consciência do indivíduo.

  1. Visão Espiritual do Sofrimento

No contexto de Beco dos Aflitos, a influência desses “fantasmas” sobre os personagens pode ser vista como uma metáfora para o sofrimento moral e espiritual. Isso sugere uma visão que transcende o materialismo e que poderia estar ligada à ideia de evolução espiritual, outro conceito-chave no Espiritismo.

  1. Diálogo com Espíritos e Crescimento Espiritual

Rizzini menciona que conseguiu “conversar com eles, fizemo-nos amigos”, o que sugere um tipo de mediunidade ou conexão com o plano espiritual, outro pilar do Espiritismo. Além disso, a declaração de que “só as pessoas no espírito adultas poderão compreender” indica que ele acredita que esses diálogos têm uma profundidade espiritual que requer maturidade e entendimento da vida além do plano material. Isso pode ser interpretado como uma referência à evolução espiritual, um conceito central na filosofia espírita.

  1. Jornada Espiritual e Busca por Deus

O fato de Rizzini afirmar que “não atingi Deus, mas me sinto bem pago” sugere que ele vê essa interação com os fantasmas como parte de uma jornada espiritual mais ampla. Embora não tenha alcançado uma revelação divina completa, ele considera sua experiência com os fantasmas como valiosa. Essa visão de uma busca espiritual progressiva, onde se alcançam insights importantes ao longo do caminho, também está alinhada com a perspectiva espírita de desenvolvimento contínuo da alma.

  1. Conexão com o Espiritismo

A explicação de Rizzini sobre os personagens coloca a luta espiritual como uma realidade, algo “palpável” e não hipotético, o que reforça a interpretação de que ele está tratando de temas associados à doutrina espírita. A presença dessas entidades invisíveis e suas tentativas de influenciar o destino dos vivos são temas recorrentes em obras espíritas, onde há um enfoque no relacionamento entre o mundo material e o espiritual.

Conclusão

Essas afirmações de Jorge Rizzini reforçam significativamente a ideia de que Beco dos Aflitos deveria ter sido interpretado e reconhecido como uma obra influenciada pelo Espiritismo. A profundidade espiritual e as interações com entidades desencarnadas são aspectos fundamentais da narrativa, e o próprio autor sugere que seu livro exige uma maturidade espiritual para ser compreendido em sua totalidade. Portanto, a ausência dessa caracterização por parte da crítica literária foi uma omissão importante, considerando o teor da obra e a filosofia do autor.

By wgarcia

Professor universitário, jornalista, escritor, mestre em Comunicação e Mercado, especialista em Comunicação Jornalística.

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