RESENHA
Livro: O voo da liberdade: brilhe a vossa luz!
Formato: 14 x 21 cm, capa a cores, 218 páginas
Ethus Editora, Divinópolis–MG
O movimento espírita brasileiro, em sua vertente religiosa, tem longa tradição no estudo e aplicação cotidiana da ética cristã, especialmente centrada na mensagem moral transmitida por Jesus. Paulo de Tarso e os evangelistas figuram entre os protagonistas permanentes dessas abordagens, amplamente difundidas em livros, revistas e periódicos espíritas.
No entanto, é notável a pouca atenção que esse mesmo movimento dedica às questões históricas envolvendo Jesus e outras figuras do cristianismo nascente, como Paulo de Tarso. Os estudos históricos, entretanto, são frequentemente ignorados ou relegados ao silêncio institucional, assim como aqueles que, como Boberg, se lançam com força sobre o assunto. Os autores mais presentes na divulgação da moral cristã em espiritismo, comprometidos às vezes com cursos específicos, sequer consideram documentos, tal este livro, em suas menções bibliográficas.
José Lázaro Boberg constitui uma das exceções nesse panorama. Espírita e livre-pensador dedicado ao estudo profundo da história do cristianismo, ele se posiciona claramente numa perspectiva laica, afastada das visões dogmáticas tradicionais. Boberg enfrenta com coragem as fontes históricas e acadêmicas mais recentes, como os estudos desenvolvidos por pesquisadores renomados, entre eles John Dominic Crossan. Autor de obras fundamentais, como “O Cristo de Paulo de Tarso” (2020), Boberg acaba de lançar “O voo da liberdade – brilhe a vossa luz!”, reafirmando seu compromisso em unir espiritismo e pesquisa histórica.
Neste seu mais recente livro, Boberg marca com ênfase questões essenciais como a autonomia moral e o livre arbítrio dos indivíduos. Esses temas são abordados com clareza, ressaltando a importância da liberdade espiritual para a construção consciente do destino humano, alinhando-se plenamente à filosofia espírita.
Boberg destaca ainda a importância do conhecimento histórico como enriquecimento da racionalidade espírita, afastando-se das abordagens dogmáticas e incentivando uma compreensão mais profunda e humanizada de Jesus. Liberta a figura de Jesus dos tradicionais laços dogmáticos, posicionando-o como modelo universal de evolução moral e liberdade espiritual, fundamentos essenciais para o espiritismo genuinamente kardecista.
Um dos pontos centrais debatidos pelo autor é a conhecida afirmação: “O Espiritismo é o Cristianismo Redivivo”, que, embora amplamente difundida no movimento espírita brasileiro, não é originária da codificação kardeciana, mas fruto das obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier através do espírito Humberto de Campos (Irmão X). Boberg recorda oportunamente que Allan Kardec, em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, esclarece com precisão que a moral ensinada por Jesus transcende fronteiras religiosas, sendo aplicável universalmente a todas as tradições espirituais e filosóficas.
Boberg tem plena consciência das resistências internas e compreende que o silêncio espírita sobre os estudos históricos do cristianismo decorre, em grande parte, do impacto psicológico e existencial que essas revelações provocam em adeptos acostumados com uma visão consoladora, porém, às vezes, avessa a desafios intelectuais mais profundos. Ainda assim, acredita que confrontar essas questões com lucidez e coragem fortalece e legitima a razão espírita.
Ao final de “O voo da liberdade”, Boberg oferece uma valiosa síntese de mais de trinta teses aceitas pela academia contemporânea acerca do cristianismo primitivo. Uma delas destaca:
“Os Evangelhos atualmente disponíveis são narrativas nas quais a memória de Jesus é embelezada por elementos místicos que exprimem a fé dos primeiros cristãos, e por ficções plausíveis que melhoram a história a ser contada para os ouvintes da época.”
Esses estudos, que aproximam o Jesus histórico do contexto sociocultural em que viveu, contribuem significativamente para torná-lo mais humano e acessível, dialogando assim com a proposta espírita de um Cristo próximo, racional e profundamente ético.
Ao trazer tais discussões para a esfera pública espírita, Boberg presta um serviço inestimável à maturidade intelectual e espiritual do movimento, rompendo com o silêncio e incentivando uma reflexão crítica necessária e urgente.
Muito oportuno o seu texto, amigo Wilson! Por ter sido honrado com o convite do autor do livro para fazer o seu prefácio, permito-me aqui reproduzi-lo, corroborando suas reflexões no prestigiado “expedienteonline”:
“O Voo da Liberdade: Brilhe a vossa Luz!”, de José Lázaro Boberg
(Prefácio do livro do Prof. Boberg que, muito honrado, escrevi.)
Salomão Jacob Benchaya(*)
Há cerca de quatro anos, comecei a ler as obras do prof. José Lázaro Boberg, de quem me tornei profundo admirador.
Suas obras despertaram em mim inusitado interesse, em especial as que enfocam a figura de Jesus e a história do Cristianismo – “O Evangelho de Tomé: o Elo Perdido”, “O Evangelho de Judas”, “O Evangelho Q”, “O Evangelho de Maria de Madalena” e “O Cristo de Paulo de Tarso” -, fundamentadas em sérias e minuciosas pesquisas que desde o século XVIII vem desconstruindo o mitológico “Cristo da Fé” fabricado pelos primeiros cristãos e pela Igreja dos primeiros séculos e revelando o “Jesus Histórico”, um Jesus humano, pensador, filósofo e revolucionário.
Essa minha preferência não desmerece, todavia, a qualidade de outras tantas produções literárias do querido amigo que propõem o desembaraço das amarras teológicas a que fomos aprisionados pela catequese religiosa ou pelas tradições culturais ou familiares, constituindo um vigoroso estímulo à conquista da autonomia com o uso da razão e do livre-arbítrio.
Sobre a figura de Jesus, toca-me profundamente a concepção gnóstica do Christós o conceito de Cristo interno, potência divina de que todos somos portadores – que coloca no indivíduo o protagonismo de sua própria evolução, tese que se contrapõe à mentalidade religiosa onde o crente desempenha um papel submisso e temeroso, sempre dependente da vontade e da intervenção alheias para a conquista de seu bem estar e felicidade.
Como integrante da vertente laica e livre pensadora do espiritismo, sempre ouvimos a acusação de que desejávamos “tirar Jesus do espiritismo” e “enterrar o Evangelho”, evidentemente, afirmações injustas e inverídicas, já que nossas posições sempre foram muito claras acerca da importância de Jesus de Nazaré para a Filosofia Espírita.
Seus ensinamentos possuem caráter de universalidade e são encontrados com nova linguagem na 3ª parte de “O Livro dos Espíritos” que os amplia e interpreta para o mundo moderno. Isso não nos autoriza, todavia, a afirmar ser o espiritismo “cristão” um equívoco – já que o cristianismo foi, na verdade, fundado por Paulo de Tarso, sendo posterior a Jesus. Por outro lado, há dogmas cristãos com os quais o espiritismo não compartilha, tais como: Jesus ser Deus, seu papel de Salvador da Humanidade, seu nascimento virginal, sua ressurreição física, unicidade da vida e Juízo Final etc.
Preferimos a abordagem exclusiva do ensino moral de Jesus, estabelecida por Kardec na Introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, mas admitimos ter sido demasiada a sua tentativa de conciliar os conceitos espíritas com a teologia católica, através de seus três últimos livros – O Evangelho Segundo o Espiritismo, Ο Céu e o Inferno e A Gênese ao dedicar-se largamente à interpretação dos textos bíblicos e evangélicos, tentando dar-lhes interpretação racional, iniciativa que deve ser compreendida sob o contexto histórico e cultural vivido por Kardec.
Causa-me algum desconforto perceber a cristolatria de que o movimento espírita está impregnado. Fala-se mais de Jesus que de Kardec. Firmou-se, no meio religioso, que a missão do espiritismo é evangelizar o mundo. Nas mídias impressas ou digitais é a imagem de Jesus que predomina anunciando os eventos “espíritas”. Em comentários de espíritas, nas redes sociais de vários países, especialmente da Europa, são recorrentes as críticas ao evangelismo salvacionista que caracteriza o movimento espírita brasileiro.
É bom destacar que, quando Kardec fala de “Espiritismo cristão” (expressão usada poucas vezes em sua obra), ele claramente adjetiva o espiritismo para vinculá-lo não ao Jesus das igrejas, mas ao pensamento, à moral de Jesus de Nazaré, aliás, critério que norteou a elaboração de O Evangelho Segundo o Espiritismo.
É provável que Kardec, se hoje vivesse, em suas análises, preferiria adotar o conceito do Christós gnóstico ao texto maquiado dos evangelhos canônicos.
Uma outra mensagem que permeia a obra do insigne professor e jurista de Jacarezinho, em especial neste O VOO DA LIBERDADE – Brilhe a vossa luz: é a do embate entre a heteronomia e a autonomia presente na caminhada evolutiva do ser humano.
Vale aqui reforçar esses conceitos que, nos últimos anos, se tornaram recorrentes nas conversas entre espíritas:
HETERONOMIA: de hetero, diferente e nomos, lei, significa a aceitação de norma exterior, que vem de fora, submissão aos valores da tradição e obediência passiva aos costumes e determinações alheias, por conformismo ou por temor à reprovação da sociedade ou da divindade. É característica normal no período infantil do indivíduo.
AUTONOMIA: do radical grego “auto” que significa “por si mesmo”, com independência e autodeterminação. Filosoficamente, o conceito de autonomia confunde-se com o de liberdade, consistindo na qualidade de um indivíduo de tomar suas as próprias decisões com base na razão e no seu livre–arbítrio. No caso, o indivíduo não é condicionado a agir, mas sim impulsionado por uma auto exigência ou moto próprio.
Na sua trajetória evolutiva, o Espírito evolui da heteronomia para a autonomia. Começa pela obediência por medo do castigo -heteronomia-, evoluindo, ao longo das reencarnações, para estágios de autodeterminação movida por valores morais paulatinamente conquistados de forma empírica e racional – autonomia.
O cerne da proposta apresentada pelo autor nesta sua 23ª obra é a da evolução consciente em que o ser humano é convidado a empreender a sua jornada de progresso, não através da submissão e obediência a prescrições morais e padrões de comportamento exteriores (heteronomia), mas decorrentes das decisões voluntárias no uso do livre-arbítrio e da razão (autonomia).
Esse paradigma emancipador encontrado nos escritos de Kardec – embora nem sempre nas comunicações dos Espíritos da codificação – difere daquele que predomina no ambiente religioso, ainda bastante impregnado das ideias de culpa e castigo, reencarnações punitivas, resgate de dívidas passadas através de desencarnações coletivas, reforma íntima como objetivo de vida, infalibilidade de supostos guias e médiuns etc. É possível encontrar na copiosa literatura mediúnica existente uma forte impregnação heteronômica.
É com o máximo de respeito às crenças de seus leitores que Boberg confronta o ensinamento da teologia cristã com as lições originais do profeta nazareno contidas nos chamados “evangelhos apócrifos” – provavelmente, os verdadeiros e autênticos – estudados pelos cristãos gnósticos.
Na parte segunda do livro, inclusive, Boberg, em reforço de sua tese, destaca alguns aforismos dos textos gnósticos que foram mantidos nos evangelhos canônicos, não sem enriquecê-los com brilhantes comentários.
Neste “Voo para Liberdade” Boberg propõe e avança para a autonomia.
Essa potência divina de que todos somos portadores – “Vós sois deuses!” – é o motor que a nossa vontade e o nosso livre-arbítrio impulsionarão para o progresso a que somos divinamente destinados.
(*) Membro do CCЕРА (Centro Cultural Espírita de Porto Alegre), da CEPABrasil (Associação Brasileira de Delegados e Amigos da CEPA) e da CEPA-Associação Espírita Internacional, ex-presidente da FERGS.