Opinião*, a pílula do Dr. Ross do jornalismo espírita, republica em sua edição de jan./fev. 2016 interessante artigo do saudoso e respeitável Deolindo Amorim, intitulado “Desunião e divergência”. Ali está todo o espírito conciliador, dialógico e acima de tudo humanista do grande amigo baiano de nascimento e carioca por opção.
A essência do artigo está centrada na percepção de que as divergências não podem ser argumento para a desunião e o diálogo é o fundamento das relações humanas. Era o que fazia e vivia Deolindo.
O último parágrafo do texto deoliniano permite, contudo, exercer aquilo mesmo que transparece dos seus argumentos, isto é, divergir. Ali, Deolindo afirma que as divergências que estão no interior do movimento espírita desde o seu surgimento não quebraram a “unidade doutrinária, que é fundamental” (sic).
Por unidade doutrinária podemos entender dois aspectos: os princípios básicos em torno dos quais todo o edifício doutrinário está erguido, do que se conclui que um só desses princípios negados redunda em negação do todo. O segundo aspecto é o mundo da vida, onde os princípios são elevados ao nível das experiências e das ideias defesas.
Se considerarmos que a obra de Kardec mantém seu conteúdo e sua forma inalterados em todas as traduções, apesar das tentativas de modificar aqui e ali conceitos que imaginam ultrapassados, pode-se argumentar com segurança que a unidade doutrinária se mantém. Nesse campo de discussões e divergências os princípios básicos do Espiritismo prosseguem incólumes e passam de geração a geração.
Entretanto, é no mundo da vida que se encontra o nó da questão. É aqui que parte desses mesmos princípios são negados ou têm seu valor reduzido, constituindo-se em ameaça constante à obra física. Não custa recordar que muito do que se discutia até há pouco tempo sob o título de “pureza doutrinária” dizia respeito, exatamente, a esses dois aspectos.
Os fatos corroboram esta afirmação. Já nos círculos de Kardec as divergências se fizeram presentes, mas são alguns fatos marcantes que melhor revelam que a unidade doutrinária balança entre os registros textuais e o mundo da vida.
Fiquemos com alguns desses fatos.
A obra de Colignon e Roustaing deve ser vista como divergência de grande repercussão ainda no século XIX e que no mundo da vida se coloca do lado oposto à obra de Kardec. Não são meros aspectos que fundamentam a divergência, mas, sim, negações de princípios básicos, que dizem respeito à reencarnação, à evolução etc. e que, apesar disso, marcam também a ambiguidade das instituições que promovem Kardec e Roustaing ao mesmo tempo, as quais contam com expressiva representatividade no Brasil.
Se nos ativermos ao nosso país apenas, podemos recordar os movimentos que ainda vigoram, com maior ou menor representatividade, cujas doutrinas derivam do Espiritismo mas negam também ou subvertem determinados princípios básicos, tais como o Racionalismo Cristão, de Luiz de Matos, o polidorismo, de Oswaldo Polidoro e, no limite – que ninguém fique pasmo – diversos dos movimentos em torno do médium Chico Xavier, que se ancoram na ideia de ter sido ele a reencarnação de Allan Kardec e, portanto, maximizam a noção da legitimação de sua obra como avanço em relação à do codificador, o que significa atribuir-lhe valor maior que a de Kardec. Aqui, não só o princípio da reencarnação é subvertido como, também, a razão espírita, que se apresenta quase que como um princípio básico doutrinário, desce ao nível do desprezo pelos assim auto reconhecidos chiquistas.
Deolindo tem plena razão no mais, a meu ver. Lamentável, apenas, que cada vez mais a fragmentação do Espiritismo vem acompanhada da negação do diálogo, empurrando cada grupo para o seu canto, o que, para ele, Deolindo, como para qualquer criatura humana no sentido lato dessa expressão significa irrecuperável prejuízo ao progresso da sociedade e ao desenvolvimento do conhecimento.
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