SOBRE AS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS” DE SUAS OBRAS *
Por Jon Aizpúrua
I – O TEMPO DE KARDEC E OS AVANÇOS CIENTÍFICOS E SOCIAIS
Ao longo dos séculos, a humanidade passou por muitas e intensas revoluções do conhecimento que estão oferecendo novas perspectivas para a compreensão e interpretação do que constitui o que é concebido como realidade. É o que se chama, segundo Kuhn, mudança de paradigma, ou seja, a substituição de antigas abordagens por outras mais eficientes para explicar contradições, esclarecer enigmas e apresentar hipóteses que parecem ter maior plausibilidade e que, se verificadas, são incorporadas ao patrimônio científico e cultural. O dinamismo e a interação desses processos são a própria essência do progresso.
A emergência de novos paradigmas ou esquemas interpretativos sobre o universo, a vida, o ser humano, bem como os princípios e valores vigentes no campo cultural de ordem ética, moral ou jurídica, ocorre em determinado contexto social, histórico, econômico, político ou espiritual, de modo que nenhum sistema de pensamento escapa aos condicionamentos inerentes à época em que aparece e se desenvolve, Isso se manifesta na aceitação das crenças dominantes e na linguagem utilizada para expressá-las.
É claro que o espiritismo não é exceção a essa lei geral que sinaliza o processo gradual de avanços no campo do conhecimento. Surgido em meados do século XIX, graças ao trabalho minucioso, teórico e experimental, realizado por Allan Kardec, com a assessoria de espíritos desencarnados de elevada condição intelectual e moral, não poderia deixar de receber as influências do contexto geral de sua época, representado pelas ideias filosóficas, científicas, religiosas, sociais ou morais que prevaleciam na sociedade francesa e europeia. De tudo isso seus livros, discursos e outras publicações dão um bom relato.
A doutrina fundada por Kardec constituiu uma autêntica revolução epistemológica que veio a abalar o ambiente indicado pelas correntes materialistas, crenças religiosas tradicionais e pelo modelo espírita em geral. À luz de seus novos conceitos, não era mais preciso resignar-se à desesperança causada por visões niilistas e ateias; nem se dependia de uma fé baseada em dogmas antigos ou na suposta autoridade divina de um livro sagrado para admitir a existência e onipresença de Deus, a continuidade e a transcendência espiritual após a morte, nem era preciso sucumbir aos temores provocados pelas doutrinas das penas eternas ou dos castigos infernais. Uma nova concepção, racional e otimista, fez seu caminho para mostrar a sobrevivência do espírito e sua continuidade evolutiva em existências sucessivas, bem como a interação permanente entre desencarnados e encarnados facilitada por médiuns com o auxílio de uma ampla gama de faculdades mediúnicas.
A objetividade e honestidade com que Kardec se entregou aos estudos das chamadas “mesas girantes” ou “mesas falantes”, sem se deixar levar por preconceitos sobre sua origem e natureza, permitiu-lhe abrir um canal de comunicação com espíritos de categoria singular e, a partir das informações obtidas e de sua própria pesquisa e reflexão, formular um sistema coerente em torno da complexa realidade material e espiritual. Assim, avançou do fenômeno para o método e o validou, sistematizou e codificou a doutrina espírita.
Ciente de que o espiritismo estava em sua fase inicial, Kardec nunca pretendeu que com seus escritos já o tivesse elaborado de forma definitiva ou acabada. Em inúmeras ocasiões referiu-se à progressividade do conhecimento espírita, que estaria passível de retificação de acordo com o progresso da ciência e da cultura. Nunca reivindicou um papel messiânico, nem aceitou que os espíritos que o guiavam fossem “reveladores predestinados” ou que seus ensinamentos fossem absolutos ou infalíveis. Se no interior do movimento espírita proliferou a crença de que todas as ideias contidas em suas obras têm caráter de verdades absolutas, tal suposição não encontra respaldo, nem na letra, nem no espírito, nos textos kardequianos.
É que não há pensador ou autor, independentemente da magnitude e importância da tarefa cumprida, que se subtraia completamente da influência e condicionamento de seu tempo, e é por isso que é essencial levar em conta esse contexto quando se quer estudar suas abordagens, compreendê-las adequadamente e também criticá-las. No nosso caso, no que diz respeito ao espiritismo, admiravelmente definido por Kardec como “ciência da observação e doutrina filosófica das consequências morais”, há espaço e relevância para o exercício de um esforço intelectual e crítico em torno do conjunto de suas ideias com vistas a uma atualização conveniente e inadiável.
Se tal revisão não for feita dentro do espiritismo, outros a realizarão de fora e, de fato, isso já vem acontecendo nos campos da medicina, da psicologia, da parapsicologia e de outras disciplinas, embora tal empreendimento nem sempre tenha sido verificado com o devido rigor e desprovido de preconceitos filosóficos, teológicos ou acadêmicos. Os espíritas podem e devem empreender sem medo uma tarefa que exige estudo, disposição e mente aberta. Os princípios básicos que sustentam o espiritismo (Deus, espírito, sobrevivência, reencarnação, mediunidade, pluralidade de mundos habitados) estão lá, válidos e muito sólidos como pilares que sustentam uma grande visão de mundo. No entanto, muitas opiniões que aparecem nos textos fundadores do espiritismo e giram em torno desses princípios, respondem às ideias científicas do século XIX e aos padrões culturais, sociais e morais que prevaleciam naquelas sociedades, e não correspondem mais à ciência e à cultura de nosso tempo.
De meados do século XIX até os dias atuais, o mundo mudou mais rapidamente e com maior intensidade do que nunca. Toda uma série de processos complexos são verificados em campos tão diversos como física, biologia, neurologia, medicina, engenharia genética, aeronáutica, psicologia, economia, política, sociologia e antropologia, ecologia, lutas sociais, arte, religião, indústria bélica ou tecnologias de comunicação, incluindo a digitalização e os desafios perturbadores da inteligência artificial. Esses processos, que estão em constante mudança e expansão, surpreendem, desconcertam e nos obrigam a rever crenças e a uma imprescindível atualização. Aos que não que não aderirem não lhes restará senão desviar o olhar e se refugiar no conforto da fé.
II – AS CHAMADAS EDIÇÕES “ANTIRRACISTAS”
Dito isso, é hora de nos posicionarmos sobre um acontecimento que está causando comoção no movimento espírita de nossos dias e que tem suscitado inúmeras discussões e até polêmicas viciosas. Ocorre que um grupo ou coletivo espírita chamado “Espíritas à Esquerda”, EàE, começou a publicar algumas obras de Allan Kardec colocando na capa, em letras e cores bem destacadas, o rótulo: “EDIÇÃO ANTIRRACISTA”. Até o momento, dois livros vieram à tona: O evangelho segundo o espiritismo e O livro dos espíritos.
No prefácio colocado no início de cada uma dessas obras, dão a conhecer as razões que impulsionaram sua iniciativa. Desde logo, baseiam-se na decisão adotada pelo Ministério Público Federal do Estado da Bahia em 2007, segundo a qual há “trechos da obra literária de Allan Kardec, tidos como supostamente discriminatórios e preconceituosos em relação aos negros e outras etnias”, para que as editoras de tais livros coloquem notas de rodapé relativas àqueles “textos que possam suscitar dúvidas em razão de seu caráter discriminatório ou preconceituoso”. Nove editoras espíritas firmaram compromisso com o Ministério baiano no cumprimento desse dispositivo legal.
Os responsáveis pelo coletivo EàE argumentam que o pensamento de Kardec estava impregnado das ideias predominantes na Europa oitocentista sobre diversas questões humanas e sociais, como a frenologia, teoria que considerava cada região do cérebro responsável por uma determinada função, e a fisiognomia, cuja tese central afirmava que o caráter e outros elementos da psicologia das pessoas poderiam ser interpretados através de suas características exteriores. Essa influência, além da recebida de outras disciplinas científicas e humanísticas de sua época marcada pelo racismo estrutural, se refletiria na linguagem que ele usava para se referir às raças antigas e contemporâneas, distinguindo as etnias brancas como populações “civilizadas”, enquanto as etnias negras e aborígenes eram classificadas como populações “selvagens”.
Por essa tendência eurocêntrica e etnocêntrica que se percebe em alguns escritos de Kardec, os responsáveis pela EàE chegam à conclusão geral de que o fundador do espiritismo foi racista, tanto quanto os Espíritos que o guiaram, e mais ainda, sustentam que a leitura de algumas perguntas de Kardec e das respostas dos Espíritos revelam coincidências com o preconceitos sociais que animaram aqueles que praticaram a escravidão até tempos recentes da humanidade.
Afirmam, ainda, que esses elementos racistas têm se manifestado na própria composição e funcionamento do movimento espírita e, nesse caso, fazem referência específica ao brasileiro, que é, de longe, o maior movimento espírita do mundo. Como dizem, “negros e mulheres estão acostumados, na maioria das instituições espíritas, a participar apenas como subordinados, coadjuvantes, no apoio às atividades operacionais e, principalmente, como beneficiários de obras assistenciais, sendo raro vê-los ocupando cargos de direção nessas instituições”.
Justificam, portanto, seu compromisso de dar efetividade às “edições antirracistas” com base em um sentimento de reparação pelo que consideram uma dramática injustiça cometida contra populações historicamente discriminadas, atacadas e marginalizadas; como um alerta para o fato de que tal comportamento tem permeado o movimento espírita, causando sofrimento a negros e negras que participam de casas, sociedades ou federações.
III – ENCONTROS E DESENTENDIMENTOS
Defensores, como somos, de um espiritismo claramente kardecista e, portanto, laico, de pensamento livre, humanista e progressista, aberto à discussão e à crítica, não podemos olhar com indiferença para uma iniciativa desse calibre. Também não podemos descartá-lo com argumentos simplistas, muito menos com desqualificações. Acreditamos nas virtudes do diálogo e do debate respeitoso e construtivo, sem implicar qualquer renúncia a convicções baseadas em princípios e valores. Um diálogo fecundo e alteritário que facilita a compreensão das perspectivas dos outros, justamente daqueles que pensam diferente, e substitua a prática negativa de um monólogo empobrecedor.
Ressaltamos, desde já, que não questionamos as boas intenções que animam os membros do coletivo EàE ou sua condição de espíritas. Sentimos sua iniciativa como a expressão de uma angustiante reivindicação contra a possibilidade de que os textos kardecistas pudessem servir de apoio direto ou indireto a ideologias racistas ou discriminatórias de qualquer tipo.
Por outro lado, não podemos deixar de apontar nossa concordância com algumas considerações expostas nos parágrafos que servem para apresentar a “edição antirracista” de O evangelho segundo o espiritismo e O livro dos espíritos, pois, de fato, constituem elementos básicos de nossas próprias reflexões, que há décadas damos a conhecer em livros, artigos e conferências. Situados em perspectivas distintas e distantes da mentalidade religiosa e messiânica que caracteriza um segmento altamente significativo dos espíritas do Brasil e do mundo, partimos do pressuposto de que nenhum ser humano, e no caso específico do espiritismo, nenhum autor ou médium, encarnado ou desencarnado, goza de infalibilidade, portanto, de suas ideias, deixando a salvo suas valiosas contribuições, são passíveis de serem avaliados, revistos, criticados e até superados. Obviamente, um processo analítico dessas proporções requer muito estudo, serenidade de espírito, rigor científico e aplicação de alguns critérios metodológicos apontados por Kardec como o “controle universal dos ensinamentos dos Espíritos” e a “concordância entre as informações”.
E, precisamente, para manter um espírito aberto e crítico, é indispensável assumir que nenhuma ideia e nenhum representante dela escapa à influência do meio social, do momento histórico e também espiritual em que surge. Como não há texto sem contexto, não caberia examinar o surgimento do espiritismo em meados do século XIX com O livro dos espíritos e outras obras do corpus kardequiano, sem levar em conta as inúmeras variáveis concomitantes que intervieram naquele momento, em que os valores da tradição judaico-cristã e o peso institucional da Igreja Católica em todas as etapas da sociedade prevaleceram de forma decisiva. Considere-se, por exemplo, os antecedentes representados pelas obras anteriores de Swedenborg, Mesmer, Kerner ou Cahagnet até o surgimento dos diversos episódios mediúnicos que se cristalizariam no “espiritualismo moderno”, que alguns, com pouco rigor, rotulam de “espiritismo anglo-saxão”. Kardec foi informado de suas experiências e de suas teorias, aproveitou-as naquilo que julgou útil e desenhou a doutrina espírita com perfil autônomo.
No que diz respeito ao caldo de teorias científicas, filosóficas, políticas, sociológicas, antropológicas, demográficas ou econômicas que agitavam o ambiente europeu, o surgimento do espiritismo com a obra monumental de Kardec não poderia ser compreendido sem o reconhecimento da poderosa influência que em seu pensamento, em sua paixão por estudar e compreender, em sua frieza e ceticismo aplicados ao diálogo com entidades espirituais, em sua mentalidade racional e de pensamento livre, protagonizaram correntes como o iluminismo, o positivismo, as utopias sociais e o evolucionismo.
Em sua reflexão sobre o contexto sociopolítico, cultural e científico que cercava Kardec, os membros da EàE chegaram à conclusão de que Kardec era racista, por ter assimilado teorias da frenologia, da fisiognomia e da visão social vigente naquele momento, claramente discriminatórias, embora tenham reconhecido que o os princípios do espiritismo estabelecidos em seus livros, quando bem compreendidos e praticados, destruirão os “preconceitos estúpidos de cor”.
Nossa análise, por outro lado, não nos leva a tal conclusão. De forma alguma podemos concordar com a tese de que o fundador e codificador do espiritismo foi racista. Parece-nos que “é um erro crasso ficar contemplando a árvore e deixar de olhar para a floresta”. Não se pode negar ou ignorar que há opiniões de Kardec e também dos conselheiros desencarnados que intervieram na elaboração da doutrina espírita, que refletiam as crenças dominantes no século XIX sobre a diferenciação entre “raças superiores ou civilizadas” e “raças inferiores ou selvagens”, mas são expressões secundárias e tangenciais a todo o edifício doutrinário. Para além de algumas frases e termos que hoje parecem inadequados e ultrapassados, o que é realmente essencial e central para os ensinamentos kardecistas é o reconhecimento de que todos os Espíritos são livres e iguais em dignidade e direitos, e que a lei evolutiva da reencarnação está nos levando inexoravelmente a superar e erradicar todas as formas de discriminação em razão da cor da pele, nacionalidade, orientação sexual, crenças, formação acadêmica ou condições socioeconômicas. E é isso que aprendemos quando estudamos e internalizamos os princípios cardeais e os valores que sustentam e enriquecem a doutrina espírita.
Pensamos que as preocupações dos membros do coletivo EàE foram canalizadas através de diferentes vias. Por exemplo, editar os livros em questão e colocar suas anotações no final da página, avisando que são de sua autoria. Esse é um procedimento legítimo e que pode abrir espaços para discussões muito sérias. Ou, e talvez este seja o mais relevante, escrever e publicar artigos, ensaios, panfletos ou livros em que exponham suas análises, seus conceitos e suas críticas sobre esses temas. Por isso, convidamos-lhes a fazer um esforço intelectual mais profundo, com absoluta autonomia, e a publicar e distribuir profusamente os textos resultantes de sua obra. Tarefas que apontavam nessa direção já eram realizadas por vários pensadores espíritas como Quintín López Gómez, Manuel Porteiro, David Grossvater ou Jaci Regis, entre outros. A esse respeito, parece muito oportuno e esclarecedor transcrever aqui dois parágrafos retirados de Espiritismo dialético, obra monumental de Porteiro:
“A doutrina de Kardec e seus colaboradores, embora verdadeira em seus princípios fundamentais, não poderia ultrapassar os limites de seu tempo nem romper completamente com os moldes religiosos aos quais se conformava…”. “Hoje, as exigências do espírito científico e filosófico, que abrangem horizontes mais amplos, não são satisfeitas pelos registros religiosos e morais de São Luís, Santo Agostinho ou qualquer outro santo filósofo ou teólogo, nem por versículos, preceitos ou parábolas extraídos da Bíblia.”
A inserção na capa dos livros de Kardec de qualquer texto acrescentado nos parece completamente equivocada e inadequada, e mais ainda, se for um slogan carregado de tanta agressividade quanto o de “edição antirracista”. Talvez não seja ilegal, nos termos que marcam as normas de direito intelectual, nem que constitua uma adulteração, stricto sensu, uma vez que nenhuma palavra ou parágrafo foi alterado ou excluído, embora alguns textos tenham sido intercalados, de modo que podem ser considerados atos lesivos de acordo com os princípios da lei moral. Ninguém pode agir dessa forma, independentemente da impressão que se tenha de um livro ou de seu autor. Há muitos espíritas indignados com o que consideram uma afronta à memória do fundador do espiritismo, e estão com razão. É fácil concluir que, se são edições “antirracistas”, então as edições anteriores foram “racistas”, o que é francamente inaceitável.
Se nos aprofundarmos nessa questão, veremos que tudo decorre de um vício de anacronismo, isto é, de julgar conceitos expostos em tempos e textos anteriores de acordo com os ditames que derivam da aplicação de certos valores e dos sentidos semânticos que respondem aos cânones do presente. Se essa abordagem fosse aplicada aos milhões de livros que constituem o patrimônio intelectual, cultural e espiritual da humanidade, nenhum passaria no exame ou permaneceria intacto. Desde os textos básicos que informam as diferentes tradições religiosas, até os admiráveis monumentos filosóficos que surgiram no âmbito do esplendor cultural helênico, e continuando pelas inúmeras criações do intelecto humano em todos os tempos, nenhuma obra estaria isenta de ser editada com qualquer slogan, que se ajusta às exigências do que hoje é considerado “politicamente correto”.
Perguntamo-nos, quantos slogans poderiam ser colocados na capa das novas edições da Bíblia se nos ativermos ao enorme fardo de racismo, homofobia, violência e discriminação que é fácil de encontrar em inúmeros versículos entre a variedade de livros que a compõem? Também valeria a pena conjecturar se as obras de Platão, Aristóteles ou outros clássicos gregos deveriam ser publicadas com a “edição antiescravista” por razões bem conhecidas.
Continuando com as obras de Kardec, quem pretendesse fazer uma nova edição de O livro dos espíritos e considerasse bom o procedimento seguido pelo coletivo EàE, poderia inserir na capa uma expressão de alto nível que, segundo seus critérios, ajudaria a esclarecer os leitores. Por exemplo, que tal uma “edição antissexista” ou uma “edição feminista” dado que há conceitos nessa obra que refletem os valores culturais predominantes no século XIX e que são inaceitáveis de acordo com os progressos que foram feitos no sentido do reconhecimento da igualdade entre mulheres e homens. E, continuando aí, poderia surgir uma “edição laicista” de O evangelho segundo o espiritismo, para propor novas redações naqueles pontos que se prestam à confusão em assuntos como descrições antropomórficas de Deus ou o uso reiterado de expressões tão inadequadas quanto castigos ou pecados. Imagine o tratamento que seria dado à Gênese, obra em que Kardec se propôs a examinar as teorias científicas de seu tempo em assuntos tão sensíveis e mutáveis como aqueles que correspondem às investigações da biologia, geologia, astronomia e outras disciplinas, fornecendo elementos derivados da análise espírita. É mais do que evidente, para qualquer pessoa estudiosa e bem-informada, que várias das teorias que ele dava como certas foram completamente corrigidas e superadas. A Gênese seria publicado com um slogan na capa anunciando que se trata de uma “edição científica, corrigida e atualizada”?
E o que dizer da obra O mundo invisível e a guerra em cujas páginas o admirado pensador Léon Denis convoca o povo francês a se mobilizar para se juntar à defesa militar da pátria contra a invasão dos exércitos alemães e invoca a ajuda de Joana D’Arc e outros espíritos protetores da Gália para derrotar os “bárbaros alemães”. Se publicado hoje, seria necessário colocar na capa o aviso de que se trata de uma “edição antibelicista” e intercalar textos com novas redações ou seria mais apropriado inserir notas de rodapé nas questões correspondentes esclarecendo que Denis escrevia em 1919 no contexto da Primeira Guerra Mundial?
Vamos parar de contar. O que foi dito é suficiente para deixar clara nossa discordância categórica com a decisão do coletivo EàE, embora reconhecendo que tem havido uma preocupação compreensível com os efeitos negativos que poderiam resultar de uma postura crédula e acrítica em relação às obras fundantes do espiritismo em todas as questões que a ciência e a tecnologia avançam, a terminologia utilizada, bem como os resultados positivos das lutas sociais, aconselham que sejam levadas em conta para retificar o necessário e continuar avançando, como recomenda Kardec.
Já o dissemos e agora reiteramos: em nossa opinião, o espiritismo começou com Kardec, mas não termina com ele, embora, até agora, o estudo de suas obras seja indispensável para conhecer e interpretar corretamente os postulados teóricos e experimentais da doutrina por ele fundada. Não há verdadeiro espiritismo sem Kardec, embora nem todo espiritismo esteja contido em seus livros, nem tudo o que ele escreveu seja válido. Além disso, não se pode subestimar a contribuição oferecida por autores encarnados e desencarnados para o enriquecimento do patrimônio cultural do espiritismo. A espiral do progresso marca o rumo seguido pela evolução da humanidade e o espiritismo não deve ficar de fora, mas, ao contrário, devemos insistir que ele tem muito a contribuir nos campos da filosofia, da ciência, da reflexão ética e de suas aplicações morais, com sua abordagem espiritualista e humanista sobre questões transcendentais como a existência de Deus, a sobrevivência espiritual, a evolução geral do universo, a comunicação remanescente entre as humanidades encarnadas e desencarnadas, o progresso eterno através de vidas sucessivas e a visão de mundo que coloca a vida na Terra em um contexto universal.
IV – UNIDADE NA DIVERSIDADE
Concluímos. É legítimo que existam discrepâncias entre os espíritas quanto à interpretação de diversos assuntos. Afinal, é natural que isso aconteça em torno de uma doutrina que não se baseia em dogmas e dentro de um movimento que não deve se constituir como uma religião institucionalizada. As divergências podem ser processadas por meio de um diálogo respeitoso e fraterno, com “ouvidos para ouvir”, priorizando o substantivo e deixando de fora adjetivos ou desqualificações.
A verdade é que, para além das diferentes opiniões que cada um defende, prevalecem os valores morais em que todos concordamos. Valores que se resumem em lições de indiscutível validade e transcendência como as transmitidas por Jesus de Nazaré, “o homem incomparável” nas palavras de Renan: ama o próximo como a si mesmo, não faça ao outro o que não quer para si, aquele que está livre de culpa que atire a primeira pedra e só a verdade os libertará. Diretrizes que nos convocam a todos a nos esforçar em nosso processo íntimo de aprimoramento moral e ao mesmo tempo a trabalhar, agora e aqui, pela construção de um mundo melhor, mais livre, mais igualitário, equitativo, solidário, fraterno e amoroso, uma sociedade sem racismo ou discriminação sob qualquer pretexto. Conectados em torno dessa aspiração superior, todos os espíritas e adeptos de qualquer ideologia podem dar as mãos e seguir em frente.
* Texto publicado na recente edição de abril da Revista Evolución, Movimento de Cultura CIMA, Venezuela.