O caro amigo Milton Medran, do jornal Opinião Espírita, na edição presente, janeiro/fevereiro de 2019 sugere/propõe que a atual fase do espiritismo seja reconhecida como o período do livre pensamento. Argumenta, com propriedade, que Kardec havia apontado seis períodos para a doutrina, nomeando os quatro primeiros e o sexto, mas deixando ao quinto, que seria o atual na visão do Milton, em aberto sua denominação. Ao quarto período, Kardec denominou religioso e para o quinto propõe Milton seja denominado período do livre pensamento.

A conclusão do Milton é interessante e desperta reflexões diversas, uma delas podendo ser analisada no seguinte questionamento: temos, de fato, um período religioso em andamento ou alcançando seu final? E quais seriam os sinais a sustentar que um novo período, o quinto, estaria marcado pelo livre pensamento?

Em primeiro lugar, a demarcação por períodos do andamento da doutrina espírita, que Kardec de fato fez, é sempre um exercício muito complexo, seja para ele, em seu tempo, seja para qualquer outro em qualquer tempo. Qual era a motivação de Kardec quando estabeleceu aqueles períodos? Suas reflexões a respeito indicam um esforço de compreensão dos fatos e o tempo deles, com vistas a enfrentar o momento por que passava e preparar-se para o futuro. Naquele instante, Kardec enfrentava uma tempestade de granito formada pelos contestadores da doutrina espírita. Tinha, pois, razão para denominar aquele o período de lutas para sustentação da obra em curso. Neste pé, ficava mais tranquilo entender que o seu marco inicial estava no aparecimento do fenômeno mediúnico em largas proporções conhecido por mesas girantes. E pareceu-lhe razoável entender que O livro dos espíritos foi o mais destacado resultado do marco inicial, daí definir que o livro dava início ao segundo período, o filosófico, escopo do próprio material contido na publicação de 1857.

Entre os fenômenos das mesas girantes, o lançamento de O livro dos espíritos e o início do período de lutas temos um tempo semelhante e, se o quisermos, bem curto. Do período de lutas ao próximo restava a Kardec prever a partir ainda da situação e contexto em que estava inserido. Se o espiritismo era combatido principalmente por parte dos bispos católicos, que viam nele uma religião opositora e perigosa, pareceu ao codificador que a fase seguinte seria a da religião contra a religião, pois também estava assente a Kardec que seria impossível convencer os adversários da filosofia espírita que esta não se tratava de uma religião constituída. Assim, o período sequente ao das lutas que vivia seria o religioso. Mas o período a seguir a este, o quinto, não ficou claro para Kardec, levando-o a deixar em aberto a sua designação, chamando-o simplesmente de intermediário. Tal não ocorreu quanto ao último período, ao qual nomeou por regeneração social, a ser marcado pela união, paz e fraternidade entre os homens, conforme aponta Kardec.

Se os três primeiros períodos surgem assentes quanto ao seu início, o quarto e o quinto ficam nebulosos. O que têm em comum os três primeiros é a intensidade com que os fatos se mostravam. As mesas girantes se tornaram uma febre temporal, a filosofia de O livro dos espíritos teve uma repercussão estrondosa e as lutas de Kardec contra os ataques de adversários de diversas nacionalidades, com destaque para o auto de fé de Barcelona, se mostrava de grande dimensão.

Recentemente, o médium mineiro Wanderley Soares, tendo ao lado sua esposa, viu-se diante dessa difícil tarefa auto imposta de também dividir em períodos o processo de unificação do movimento espírita brasileiro, com vistas a acomodar inúmeras mensagens ditas mediúnicas e dar-lhes sentido. Está em seu livro Seara bendita e pode ser conferido aqui. Não só atribuiu denominações aos períodos como também demarcou o tempo em frações de 70 anos cada. Não logrou êxito.

Kardec não chegou ao mesmo requinte demarcatório. Refletiu sobre o período preespiritismo e sobre o momento em que vivia, com suas agruras, ansiedades e lutas. Independente do tempo percorrido entre uma e outra fase, concluiu por estar vivendo o terceiro período, que chamou de lutas, o qual teria sido antecedido pelos períodos de curiosidade e filosófico, este iniciado com a publicação de O livro dos espíritos. Então, entre o primeiro, que começou pelo fenômeno das mesas girantes, o segundo, com O livro dos espíritos, e o terceiro não há um tempo transcorrido de modo uniforme, assim como não haveria com a passagem para o quarto período, chamado de religioso. Com o quinto e o sexto haveria de ocorrer semelhante situação, mas, aí, um detalhe chama a atenção: entre os três primeiros períodos o tempo é bastante curto, o que não se aplica aos demais.

À primeira pergunta feita acima poder-se-ia responder com uma afirmativa: estamos vivendo o período do espiritismo marcadamente místico-religioso. Mas não olvidemos um detalhe: assim como Kardec olhava o espiritismo a partir do seu lugar em Paris, ao responder positivamente à pergunta estamos, também, limitados ao nosso meio e às condições psicossociais que nos mobilizam. Ademais, nada indica que a fase religiosa caminha para o seu esgotamento. Pelo contrário, tudo aponta para a continuidade e crescimento na direção de um ápice distante. Assim, pois, se vivemos um período religioso, é ele por si mesmo longo e sem indícios de um fim próximo.

Se observarmos com atenção, as lutas travadas por Kardec se transportaram para o Brasil junto com a doutrina, ou seja, ao aportar no país, O livro dos espíritos e seus subsequentes desencadearam intensas batalhas intelectuais e religiosas por um largo espaço de tempo, de modo que o período de lutas de Kardec não se restringiu nem à época dele, nem ao continente europeu. Os períodos filosófico, religioso e de lutas se reproduziram por aqui, concomitantemente, fato que pode ser observado até por volta de 1950/1960. E dentro desse mesmo raciocínio, o período religioso se desenvolve intensamente por um tempo que não permite prever o seu abrandamento e menos ainda o seu fim. A diferença, agora, é que a questão religiosa não vem de fora, não é suscitada por adversários, mas estabelecida pelo próprio movimento que se formou com a instalação do espiritismo no país. Se a quantidade de adeptos crescer, a tendência é firmar-se a ideia de um espiritismo como religião institucionalizada. Se o número de adeptos se estabilizar, a tendência é manter a crença e as práticas religiosas.

Pergunta-se, como consequência: o período intermediário está, paralelamente, em curso no espiritismo brasileiro? Se não, quando terá começo? Caso positivo, há sinais suficientes para que o denominemos de período do livre pensamento? Vejamos.

Uma das características que marcam os três primeiros períodos elencados por Kardec é a intensidade com que os fatos ocorreram. Por ordem, as mesas girantes, o lançamento de O livro dos espíritos e os ataques à doutrina espírita. Teríamos elementos tais para marcar o quinto período como o do livre pensamento? Está claro que não, como se pode observar no seguinte raciocínio.

Todos aqueles que professamos o espiritismo como uma doutrina do livre pensar, por indicação de Kardec que o afirma, formamos ainda um corpo reduzido e de pouca unidade. Mesmo considerando que esse movimento vem tendo admirável crescimento a ponto de haver ações, eventos e manifestos afirmativos dessa posição, não se pode dizer que há intensidade suficiente, nem nas vozes, nem na quantidade, para dizer – e seria bom se pudéssemos dizer – que vivemos o período intermediário de Kardec como sendo o do livre pensamento. Os fatos afirmam que ainda somos poucos embora muito corajosos na luta pelo direito do livre pensar no espiritismo. E dizem, também, que esta é uma luta necessária, talvez a única ou a mais forte capaz de manter a bandeira de um espiritismo escoimado de todos os apêndices que lhe vem sendo colocados, indevidamente. Sem esta bandeira, os caminhos ficam livres para os místicos-religiosos, a doutrina estará definitivamente deformada e será irreconhecível em pouco tempo.

Infelizmente, os cinco períodos apontados por Kardec se misturam no presente momento do espiritismo e o sexto, se já deu a largada, ocupa um espaço muito diminuto da sociedade mundial. Ainda.

By wgarcia

Professor universitário, jornalista, escritor, mestre em Comunicação e Mercado, especialista em Comunicação Jornalística.

4 thoughts on “Período do livre pensamento. Estamos nele?”
  1. Não há como pensar que cada um dos períodos identificados por Kardec estejam completamente vencidos. Eles se misturam, quase sempre com prevalência de um deles.
    A passagem para o Período Intermediário, visto por Kardec e que nosso companheiro Milton Medran aborda como o período dos livres pensadores, terá que durante algum tempo caminhar e conviver com o Período Religioso. E terão também que conviver com efeitos tardios, refluxos dos Períodos anteriores. Ou não somos capazes de identificar ameaças e agressões contra as práticas espíritas ?
    Tenho simpatia pela proposta do Medran. Reconheço as dificuldades apontadas pelo WGarcia. Todos os processos humanos, sociais, analisados com base nas leis da dialética possuem imbricações entre si. Há sobreposição das teses com as antíteses. O resultado final, nem sempre será o mesmo da tese ou da antítese.
    Essa é mais uma das maravilhas da vida. Movimento, convívios, enfrentamentos e confrontos . O que resultará dessas diferenças ? O que aponta a correlação de forças e de argumentos ? Quanto os livres pensadores serão capazes de produzir a compreensão de que suas teses estarão mais próximas da transformação do Planeta ?
    Um bom debate que poderá identificar as estratégias para os caminhos a serem transitados.
    Claudio Antonio Di Mauro
    claudiodimauro@ufu.br

  2. Muito interessante a sua reflexão sobre o tema, Wilson.

    Penso ainda que é possível enxergarmos essa questão sobre outro ponto de vista.

    É natural que vivamos mais de um período ao mesmo tempo, com a predominância de uns sobre os outros. Isso porque cada período identificaria a predominância de uma corrente de pensamento (isto é, uma forma de pensar o espiritismo) sobre a outra até que, natural e progressivamente, aquela até então nascente, se sobrepusesse à antiga, sem que a antiga necessitasse desaparecer por completo.

    Assim, me parece que ao adentrarmos no segundo período (o filosófico), a corrente que prevaleceu no período da curiosidade permanece viva, ainda que menos proeminente, existindo conjuntamente com a do segundo período (o filosófico). E que ao adentrarmos no terceiro período (o das lutas), as correntes que prevaleceram nos dois período anteriores (da curiosidade e filosófico) também permanecem vivas e atuantes, ainda que obscurecidas pela que passou a prevalecer no chamado período das lutas. E por fim, ao adentrarmos no quarto período (o religioso), as correntes já existentes nos períodos anteriores (da curiosidade, filosófico e das lutas), também não desapareceram por completo, permanecendo ali, atuantes, ainda que com menor força.

    Ou seja, os novos períodos acabam por surgir pela compreensão e transcendência dos anteriores.

    Assim, ao nomear o quinto período de intermediário, talvez ele não tenha simplesmente deixado “em aberto a sua denominação”. Ao contrário. Talvez o tenha denominado dessa forma de maneira consciente e assertiva, por ter antevisto que esse quinto período abarcaria ainda todas as correntes de pensamento que marcaram os períodos anteriores (o da curiosidade, o filosófico, o das lutas e o religioso), para que, num caldo em profunda ebulição, surgisse finalmente o sexto período, o da regeneração social. Esse sim, conforme Kardec entendeu, o ápice do espiritismo no que diz respeito ao atingimento de seus objetivos.

    Provavelmente, esse sim, o da regeneração social, será o período onde o livre pensar espírita ganhe mais força e potência, uma vez derivar do enfrentamento de todas as demais correntes demarcatórias dos períodos anteriores.

    Concluindo, acredito ser possível que estejamos sim iniciando esse período intermediário, no qual vivemos um enfrentamento das correntes já constituídas, onde inevitavelmente ocorrem fusões de certos elementos e distinções de outros, na construção do período de regeneração social. Isto é, nesse período de transição compreenderemos os conceitos fundamentais próprios dos períodos anteriores para então transcende-los com o início de um novo período, com o livre pensar predominando sobre as demais formas de se pensar o espiritismo.

    Um abraço grande!

  3. Allan Kardec foi otimista, esperava que o período de regeneração tivesse inicio nos primeiros anos do século passado. Não contava com a queda da monarquia francesa, as reformas educacionais da terceira república e as grandes guerras mundias.
    De qualquer modo também considero a existência em paralelo de períodos, conforme as caracteristicas de um desaparecem as dos outros ganham força, gradualmente, como tudo na matureza.
    A regeneração social ainda ensaia seus passos, mas seu marco, na minha opinião, foi a declaração universal dos direitos humanos, quando sentimos uma mudança considerável em nosso pensamento, na busca por solidariedade.

  4. Fico feliz em ver que a matéria por mim produzida para o OPINIÃO do Centro Cultural Espirita de Porto Alegre tenha suscitado tantas e tão oportunas reflexões iniciadas pelo amigo Wilson Garcia. O objetivo era justamente esse
    Penso que os diferentes enfoques com nuances diversas permitem reconhecer parcelas de razão a cada um dos manifestantes. Simplesmente porque a heterogeneidade dos tantos ‘movimentos espíritas’ nos permite situa-los em diferentes estágios dos 6 apontados por Kardec.Mas teremos de convir: nunca como agora tantos bons pensadores, grupos e segmentos espíritas se voltaram responsalvemente para uma abordagem livre-pensador desvinculada do criterio de autoridade das federações, unioes e respectivos porta-vozes autorizados. Vivemos um momento singular com claros sinais de esgotamento do período religioso ou de prenúncios disso.

Olá, seu comentário será muito bem-vindo.

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