Ou por um espiritismo respeitado.
Fazia mais de três meses que o gato fora tirado de casa e posto na rua. Ou não perceberam, ou não o viram, ou, quem sabe, não quiseram ver. Teriam sido iludidos por uma imagem que o tempo familiarizou, a do bichinho terno e meigo? Sabem todos, as imagens possuem uma capacidade intrínseca de iludir, posto que parecem fáceis de ler. Ninguém viu. Estavam como na canção do Chico, “falando de lado e olhando pro chão”?
Havia no gato de pele macia uma mancha vermelha, chamando a atenção de tal forma que deveria incomodar ao primeiro transeunte que passasse por ele. Impossível não notar. Ainda assim, o gato caminhava no seu passo manso por entre pessoas proseantes, risonhas, jovens e adultos, vestidos com aprumo ou em trajes simples, gente que passeava ou andava a passo largo rumo ao trabalho. Como não o veriam, o animalzinho que tantos encantos arranca, com aquela mancha postiça tão marcante?
O nosso personagem virou esquinas, andou em avenidas, passou por ruas descalças, esteve em frente a prédios suntuosos e casas simples, viu pessoas nas janelas e janelas sem ninguém e apesar do seu miado dolorido, não logrou atrair um só olhar. E a mancha vermelha lá, confundindo seu macio pelo rajado. A humanidade – quem foi que disse? – às vezes se ressente da falta de humanidade.
O gatinho ia, assim, andando perdido perdendo seu viço até que esbarrou em alguém que moveu seu olhar e achou estranha aquela mancha. O animal deitou e deixou-se ver e as vistas apuraram-se e logo sobreveio uma sonora exclamação: é uma palavra! Sim, a mancha vermelha é na verdade uma palavra, mas não uma simples palavra. Uma dura expressão. Ah, sim, um adjetivo, um adjetivo terrível, daqueles que ecoam pelo presente e o passado e ameaçam até o incerto futuro: ANTIRRACISTA!
Foi, então, que puseram no gato o guizo, de modo que ninguém mais pode ignorar o bicho e sua mancha, ele que ainda passeia por aí, em ruas, vielas e avenidas das cidades do mundo, agora adornado pelo desqualificador adjetivo, na esperança de voltar a ser em algum santo dia o mesmo e admirado animalzinho de sempre. Quem, dentre os que viram o gato e o guizo, se arrisca a limpar o pelo do mimoso bichinho?