A obra de Chico Xavier surgiu de forma tão avassaladora quanto sua partida deixou um misto de admiração e respeito, mitificação e aceitação plena de sua produção mediúnica, como se não precisasse de mais nenhuma análise à luz da razão espírita e pudesse substituir as obras básicas no estudo do espiritismo.
A doutrina do espiritismo, tão logo se consolidou, enfrentou todos os desafios que uma teoria revolucionária enfrenta, mas poucos, na atualidade, podem entender isso na sua amplitude real. Já após a partida de Allan Kardec surgiram com mais destaque movimentos de reforma e acréscimos, complementos e supressões que hoje ficam claros ante as pesquisas e podem passar por reavaliações sob o suporte de documentos inquestionáveis.
Não se pode olvidar que a ação humana é capaz de enriquecer e empobrecer, fortalecer e enfraquecer, a depender dos interesses em jogo no campo do conhecimento. Da mesma maneira, não há como colocar de lado as imensas dificuldades que o ser humano possui para sustentar com bom-senso as verdades que se mesclam às ideias sem o lastro das provas, num cenário de decisões a serem tomadas, inevitavelmente. Quase sempre muitas verdades são aceitas em meio a mentiras ou falsas teorias, compelidos que os seres são a manter, em meio aquilo que se expressa por bom conhecimento, crenças baseadas apenas na emoção ou na ilusão e, para aproveitar uma expressão desses nossos tempos, juntos e misturados. Ou seja, o joio sufocando o trigo que luta por frutificar.
Já de muito tempo se reforça que o espiritismo se sustenta em Kardec e ninguém mais, pois o que vem após a partida do codificador ou está em consonância com a doutrina em seus princípios básicos, ou não lhe tem aderência e, portanto, não pode ser tido como parte dessa doutrina. Tentativas de alterar tal realidade ocorrem permanentemente, desde a França de Kardec ao Brasil dos nossos dias, algumas delas logrando infiltrar-se no meio espírita com estratagemas teóricos que aquecem corações ingênuos, mas desnaturalizam a razão cartesiana sobre a qual o espiritismo se ergue. Ao creio porque sei se sobrepõe o creio porque quero, de maneira tal que muitas vezes o querer tem mais valor, nestas hostes que se formam em torno do espiritismo, do que o saber em sua excelência.
Quando a razão espírita é substituída pelo senso comum, sai de cena o conhecimento sustentável para dar lugar às mais díspares interpretações, pois o senso comum, com toda a sua sabedoria prática, utilitária, não se apoia na razão dos fatos, mas numa maneira de ver e num modo particular de interpretar os fenômenos da vida.
Um bom exemplo para aquilo que expomos é a extraordinária obra do médium mineiro Francisco Cândido Xavier, cujo começo se deu com a apresentação de um livro de poesias de grandes aedos, obra desafiadora e impactante. Após isso, seguiram-se cerca de quatro centenas de livros co-assinados por dezenas de autores espirituais, com destaque para Emmanuel, seu guia espiritual, e André Luis.
Chico venceu resistências do mundo literário e da intelectualidade espírita, aninhando-se no meio doutrinário como uma produção complementar à obra de Kardec. Entretanto, jamais foi deixado à distância da análise pelos dirigentes lúcidos, seja por compreensão do legítimo preceito estabelecido por Kardec de que a produção mediúnica deve e precisa de interpretação permanente, seja pela compreensão da humanidade presente no médium, que o iguala aos demais seres de corpo e de alma encarnados na Terra.
Tal procedimento torna-se necessário e reclama permanência, em decorrência da natureza mesma da atividade mediúnica, bem como da condição inequívoca de intérprete das ideias dos espíritos comunicantes que o médium é, como coloca com clareza Allan Kardec. A questão humana do médium torna-o passivo de equívocos, por mais experiência que reúna no desempenho de sua atividade.
Assim como venceu as barreiras interpostas ao longo de sua carreira mediúnica e adornou-se de uma credibilidade rara, Chico também convenceu, não por vontade própria ou reivindicação pessoal, mas pela regularidade do trabalho e pelos atributos humanos de que dotou-se, que sua produção mediúnica era inatacável, sem mácula alguma, alcançando, ante os olhos dos espíritas e da sociedade em geral, uma condição de relativa perfeição. Uma legião crescente de admiradores, alguns com convivência pessoal e direta com o médium em suas intimidades, aos poucos foi excluindo o termo “relativa” e preferindo o adjetivo perfeição na qualificação do médium, de modo a deformar a realidade e desenvolver um quadro de ilusões e grandes feitos de Chico Xavier.
Quando, pois, vem à tona a crença irracional de que o médium é a reencarnação de Allan Kardec, a ilusão do mito alcança seu ponto máximo e a partir daí dissemina-se a incomprovada tese de que, sendo Chico Allan Kardec redivivo, sua obra é não só complementar, mas, também, capaz de conter todos os conhecimentos necessários ao saber espírita. Longe, contudo, está isso da verdade. Nem Chico é Kardec, nem sua obra independe dos livros básicos assinados pelo fundador.
Por exemplo – para falar apenas de dois destaques da produção de Chico Xavier – a série luisina, que tem início com o livro Nosso lar e termina em E a vida continua, e todos os livros assinados por Emmanuel, à parte os possíveis senões apontados nelas aqui e ali, não se sustentam sem a base kardequiana, base esta única capaz de esclarecer o que naqueles livros está contido.
Por melhor que se creia e por mais que se goste dos ensinamentos de Emmanuel e André Luis, tomá-los com sendo suficientes para ensinar espiritismo é inverter a ordem dos fatos, por melhor boa intenção que se tenha. A fonte primária do espiritismo se chama O livro dos espíritos; a partir dela os caminhos se bifurcam e um deles chega a Chico Xavier e sua portentosa obra.
De igual modo, é incontroverso o fato de que Chico Xavier, como ser humano e médium, esteve sujeito a todos os percalços do caminho, equívocos e acertos, não se podendo, de modo algum, considerá-lo perfeito, especialmente na função de intérprete dos espíritos, como deixa evidente o grande e exemplar Allan Kardec nos seus estudos da mediunidade, especialmente quando se refere aos médiuns. O que foge disso escapa da verdade.
Caro Wilson, irreparável texto sobre a responsabilidade dos médiuns e, principalmente, dos dirigentes espíritas. Se aos neófitos se admite o encantamento, aos responsáveis pela divulgação doutrinária não se permite tal descuido. Critérios kardecianos sempre. Abraços!
Wilson, eu acho muito estranho essa obsessão de saber quem foi quem em outra encarnação. Parece um pouco a “procura do sangue azul” para sentir-se ,membro de uma nobreza, de uma linhagem familiar de pessoa bem-nascida, descendente de famílias ricas e influentes. Quando li “Nosso Lar”, a obra se assemelha a Utopia,livro de 1516 escrito por Thomas Morus (1480-1535). O enredo é bem feito e existe um chamamento para que as pessoas façam o bem.