Para o espiritismo, como de resto para a sociedade em que a liberdade de pensamento e expressão é garantida constitucionalmente, não há cidadão imune à responsabilidade pelas suas opiniões.

 Quando o manifesto crítico a Divaldo Franco apareceu na lista da Abrade, afirmei que eu também assinaria embaixo. A questão, para mim, está clara: as opiniões exaradas pelo médium na entrevista que deu origem ao manifesto são absurdas do ponto de vista do bom senso que caracteriza a racionalidade espírita. Pouco importa assinalar se o manifesto contém pontos convergentes e divergentes, pois raros são os discursos críticos de qualquer natureza que não esbarram neste aspecto. O que é relevante é o fato de que é preciso colocar em discussão as opiniões, de quem quer que seja, quando estas ferem os princípios elementares do bom senso e da lógica que caracterizam a doutrina espírita, em especial, quando essas opiniões pertencem a líderes de expressão, como é o caso presente de Divaldo Franco, aqui, pelas repercussões elevadas à potência máxima que geram. Ora, o que está no foco das atenções é o conhecimento e suas interpretações, coerentes ou não, que repercutem na sociedade, na eterna dualidade do bem e do mal, do certo e do errado, da verdade e da mentira. Ao direito de opinião se opõe o direito da discordância, que mais não é que direito de opinião também. A liberdade de pensamento e expressão emerge das conquistas do ser ao longo de suas múltiplas experiências no corpo físico e se insere entre os direitos supremos, inalienáveis, como ensina Kardec.

Nessa discussão, são questões periféricas a obra social de Divaldo Franco, a opinião dos discordantes na forma de manifesto coletivo, os aspectos políticos contidos na opinião de Divaldo e na opinião dos que assinam o documento, bem como seu enquadramento enquanto posicionamento de esquerda ou de direita, a reclamada preservação da história do médium e da obra social de Divaldo em nome da qual dever-se-ia deixar de lado a discussão, bem como o fato da radicalização dos discursos, da qual muitos não conseguem fugir. Estas e outas questões secundárias não podem se sobrepor ao fato principal, que é o da análise das opiniões emitidas pelo médium de forma pública, uma vez que se deu em evento amplamente divulgado pelos meios de comunicação, com plena e total aceitação do entrevistado. Portanto, trazer para o chamado âmbito interno do movimento espírita tal discussão, como reivindicam alguns, é não só falha de avaliação como, também, tremenda estultícia e ardilosa forma de esconder a verdade em prol da manutenção de um poder de dominação. O mundo reclama, cada vez mais, luz, e não sombras.

É preciso relembrar, dadas as circunstâncias, que Divaldo é um ser humano e não um santo. Como tal, e como qualquer pessoa, está sujeito aos erros e aos acertos, aos sonhos e às decepções, aos desejos e às ilusões. É preciso mantê-lo no chão da Terra, para não nos precipitarmos com ele nos desfiladeiros da amargura. Parodiando Herculano Pires, acreditá-lo perfeito é prestar um desserviço ao médium e à obra espírita. Colocá-lo numa redoma na ilusão de protegê-lo será retirar o homem do mundo onde suas experiências evolutivas acontecem, privando-o do essencial para sua caminhada. Nesse aspecto, Divaldo e Chico se assemelham. Acreditar que tudo o que Divaldo faz e diz segue orientação dos espíritos superiores é demonstrar total ignorância dos mecanismos da mediunidade contidos na obra de Kardec.

A questão da criticada “ideologia do gênero”, cuja opinião gerou este debate, é um tema muito próximo de Divaldo, dadas as suas escolhas de vida, tal como era para Chico Xavier, para Paulo de Tarso e de forma geral alcança os seres humanos de toda ordem. Precisa ser enfrentada com franqueza e objetividade, longe dos entraves dos preconceitos. A escolha de uma vida ascética não implica a abdicação da questão sexual; implica num modo específico de enfrentar o problema na sua condição singular, pessoal, inerente à escolha.

O outro aspecto da crítica diz respeito a uma questão política: a menção à “República de Curitiba”, o modo como se refere ao Juiz de Direito, Moro, e a importância dada ao fato. Trata-se, evidentemente, de uma opinião pessoal, de uma postura individual frente a um tema que está na pauta da sociedade brasileira e que, de forma alguma, pode ser confundida com o que pensa o Espiritismo enquanto doutrina. Evidentemente, há que ser considerado o peso que o indivíduo Divaldo empresta à opinião, quando a manifesta, e os meios pelos quais opina. Como opinião, entra no campo da interpretação, que é amplo, onde será apreciada pela audiência, podendo receber aplausos e opiniões contrárias, não sendo justo argumentar que o médium tem o direito de as manifestar e não pode ser contestado devido à sua longa folha de serviços prestadas. Pelo contrário, se um peso a folha de serviços oferece, é a de que ela por si deve e será preservada se a opinião contiver qualidade e requisitos de bom senso e responsabilidade. Do contrário, a própria opinião se encarrega de deslustrar, mesmo que parcialmente, a folha de serviços prestada e de nada adiantará os gritos daqueles que a aplaudem. A verdade, que sobressai da liberdade de pensamento e manifestação, cuida de elevar ou reduzir a folha de serviços.

Por outro lado, estamos tratando de algo que está acima do bem e do mal: a verdade. Ninguém é dono dela e é por isto que ela entra na pauta da discussão, pois todos tentamos alcançá-la e o debate é um dos meios de a ela chegar. Ao manifestar-se publicamente, opinando sobre problemas sociais, políticos e outros, mesmo aqueles que derivam da doutrina espírita, Divaldo assume como homem a responsabilidade pelas consequências. E, saiba-se, há muito Divaldo optou por agir e participar socialmente na condição de indivíduo, e não apenas como médium. Essa separação, conquanto meramente teórica, pois não se pode ter clareza de quando Divaldo é apenas médium, líder ou quando age simplesmente como ser humano, serve no entanto para distinguir as parcelas que correspondem a cada um. Quando escreve e assina o próprio nome nas colunas dos jornais, quando responde a entrevistas jornalísticas, quando se pronuncia nas tribunas temos o homem assumindo individualmente as consequências de suas opiniões. Quando assina o nome de espíritos como autores de suas páginas escritas ou de suas falas e mensagens, temos o médium em sua ação, sustentado pelo homem Divaldo, que afinal é o responsável verdadeiro. De tudo o que fez devido à trajetória e aos atos que lhe conferem, inegavelmente, certa autoridade, temos o líder espírita aceito e reconhecido por considerável parcela da sociedade.

Quando Divaldo decidiu participar socialmente como qualquer indivíduo, expôs que não estava contente em aparecer apenas como intérprete dos espíritos, como a dizer que é um sujeito no pleno exercício de suas faculdades e de sua liberdade. Muitos médiuns seguiram por esse caminho. Alguns acabaram por abandonar as atividades mediúnicas, outros apenas a diminuíram e outros mais voltaram atrás e aumentaram o percentual de participação mediúnica. Até aí, nada de mais nem de surpreendente. Muitos médiuns reagem a essa situação, de parecer que pertencem aos espíritos, que só fazem o que eles querem, pois se vêm como indivíduos normais com todos os seus direitos e deveres. Conhecem suas capacidades, anseiam por colaborar com sua parcela pessoal nos acontecimentos da vida e desejam ser reconhecidos também por isso. Eles, mais do que ninguém, sabem que o pertencimento total aos espíritos implicaria numa espécie de obsessão num grau excessivo, no que têm plena razão. E por tomarem a decisão de fazer esse recorte, estão decididos a responder por seus atos, não simplesmente como médiuns, mas individualmente e legalmente como homens, atores sociais. Resumindo: Divaldo quer reafirmar que é um ser pensante e não um instrumento dócil e facilmente manipulável, simplesmente. Este é o seu grito de independência, a reafirmação de sua autonomia individual.

Ora, não há porque estranhar que o homem Divaldo seja tratado como qualquer outro quando age socialmente e emite suas opiniões, revelando seu modo de pensar, a maneira como interpreta os fatos sociais e políticos, econômicos e científicos, pois ele não é e não quer ser diferente de ninguém. Se age como ser mediúnico, também o faz como qualquer outro que alcança a consciência de suas conquistas reencarnatórias e sabe que a mediunidade é um fenômeno inerente ao ser humano, e não uma graça divina dada a alguns, apenas. Pois é ao homem consciente de si que as contestações são endereçadas. É a este Divaldo – e não à sua obra social – que se está dizendo não! Não concordamos com você quando se expressa sobre a “ideologia de gênero”, porque o que você diz não confere com a verdade nem tem similitude com o pensamento decorrente da obra de Allan Kardec. Não concordamos com você, Divaldo, quando se expressa sobre o juiz de direito que ficou famoso por combater a corrupção, pois este modo de pensar fere o modo de pensar de outros que também lutam pela ética plena na vida, os quais suspeitam da parcialidade da conduta e das decisões tomadas pelo referido juiz.

Como se vê, não se nega ao orador baiano o direito de ter suas opiniões, mas reclama-se de um agir dele que não deixa claro que o pensamento é seu, pessoal, individual, e não expressa necessariamente o ensinamento espírita. Que com ele façam coro todos os que aceitam o seu modo de ver é normal, mas isso não pode ser motivo de lançar sobre os que discordam qualquer anátema, nem, sequer, de taxarem-nos de ideológicos como se isso fosse um mal em si, uma vez que o ser humano, cultural, é sempre ideológico e o próprio Divaldo, quando assume suas opções políticas comprova que é igual a todos os demais seres humanos.

By wgarcia

Professor universitário, jornalista, escritor, mestre em Comunicação e Mercado, especialista em Comunicação Jornalística.

7 thoughts on “Divaldo, Chico, direita e esquerda. Onde está o centro?”
  1. Caro Wilson, você está sendo bastante coerente, correto com suas afirmações. Reconhece em Divaldo o direito inalienável de expressar sua opinião se for em caráter pessoal, e também no exercício da mediunidade uma vez que não é nem jamais será um ser passivo, submetido sem vontade própria à ação dos Espíritos. Coisa que, aliás, Kardec esclarece muito satisfatoriamente em O Livro dos Médiuns, no capítulo XIX – Papel do Médium nas Comunicações. Em uma comunicação mediúnica de qualquer gênero e matiz qualitativo, o médium também imprime suas “contribuições intelecto-morais”, assimilando-as com as do Espírito comunicador e ambos se amoldam. Portanto, o médium não se acha isento de responsabilidades do que diz ou escreve, ele também expressa sua maneira de ser e sua peculiaridade psíquica no processo.
    Parabéns, Wilson, muito bem escrito.

  2. Ilustre professor Garcia, muitos são aqueles que estão iludidos. Nos parece que se esquecem que Jesus é o nosso modelo e guia. Encontram em seres falíveis como nós a visão de seres não humanos e, portanto, não falíveis. A humildade será sempre o nosso melhor caminho se efetivamente desejamos a paz em nosso mundo interior.

  3. Excelente texto. O espiritismo precisa se desvendar do igrejismo reinante em algumas instituições.

  4. A presença do Wilson Garcia neste seminário foi de fundamental importância e eu o parabenizo por seu extraordinário artigo. Ele faz aqui uma análise abrangente e didática sobre o que foi apresentado pela Simoni Privato, enquadrando tudo numa visão de processo histórico em que fatos lamentáveis como esse da adulteração dessa importante obra de Allan Kardec, não é um fato isolado.

    Ele também um estudioso e profundo conhecedor da obra de Kardec, um escritor e pesquisador de mancheia que tem nos propiciado através deste seu Blog excelentes artigos e documentos históricos sobre a história do movimento espírita em nossa Pátria.

    Eu acompanhei o seminário inteiramente via Internet. A Simoni Privato Goidanich foi simplesmente brilhante em sua exposição serena, clara e absolutamente convincente em relação aos fatos detestáveis dessa traição inqualificável. Eu já havia lido a sua obra “El Legado de Allan Kardec” a qual agora traduzida para o português poderá ser lida por todos os espíritas que usando da lógica, da razão e do bom senso poderão fazer o seu próprio julgamento, sem ter que se ater a argumentos ou sofismas de quem quer que seja.

    É de fato inadmissível que ainda a esta altura alguém possa se posicionar em defesa dessa “Infâmia” (uso aqui a expressão título do artigo de Henri Sausse de 1884), como se a verdade insofismável contida nos fatos expostos através de provas e documentos oficiais fosse apenas objeto de suposições ou se referissem à uma teoria conspiratória. Porém não sejamos ingênuos em acreditar que este incidente trata-se apenas de um caso isolado. Não, absolutamente não é este o caso, o que fica muito bem claro na obra da Simoni.

    Porém é fundamental que lamentáveis ocorrências desta natureza, que não acontece pela primeira vez, sirvam como um ALERTA para todos os espíritas no tocante à necessidade inarredável do estudo consciencioso e constante das obras de Allan Kardec. É o conteúdo dessas obras, todas sem exceção e não apenas as cinco fundamentais, e em especial os doze volumes da Revista Espírita, o que constitui por excelência e primazia o legado da Doutrina dos Espíritos, que foi erigida sob a égide e a orientação do Espírito da Verdade.

    Ao seu crivo, tudo sem exceção alguma deve ser submetido. E somente nós, os espíritas individualmente, poderemos exercer esse importante e urgente trabalho de escrutínio para evitar esse tipo de fraudes e adulterações absurdas. E como fazê-lo se não acordarmos e nos dispusermos a esse estudo necessário e que representa uma grande responsabilidade para cada um de nós?

    Me congratulo com você meu caro amigo Wilson por mais esta maravilhosa abordagem através deste excelente artigo, o qual enaltece ainda mais o extraordinário trabalho de pesquisa e dedicação à causa espírita, levado a efeito por Simoni Privato Goidanich.

    Mãos à obra espiritas! Antonio Leite (Nova Iorque).

  5. Wilson, muito grato mais uma vez por tratar e elucidar um tema delicado com equilíbrio, coerência e visão de longo alcance. Esse é o Espiritismo com movimento democrático sonhado por todos nós, no qual seres humanos não são deuses nem infalíveis, seja qual for a condição circunstancial que estejam, como médiuns, lideranças, palestrantes, oradores, escritores, pessoas de ação e proeminência ou seres anônimos nas pequenas lidas inexpressivas aos holofotes. Quando Kardec concebeu um dos pilares da Doutrina Espírita – A Escala Espírita, já havia preenchido suas claras explicações sem deixar dúvidas, no tocante aos níveis dos humanos encarnados e desencarnados, de onde destaco mesmo a categoria dos “Bons Espíritos”, das quais acredito que a maioria de nós só teve lampejos, mas nela ainda não ingressou – “Predomínio do Espírito sobre a matéria; desejo do bem. Suas qualidades e seu poder de fazer o bem estão na razão do grau que atingiram: uns possuem a ciência, outros a sabedoria e a bondade; os mais adiantados juntam ao seu saber as qualidades morais. Não estando ainda completamente desmaterializados, conservam mais ou menos, segundo sua ordem, os traços da existência corpórea, seja na linguagem, seja nos hábitos, nos quais se encontram até mesmo algumas de suas manias. Se não fosse assim, seriam Espíritos perfeitos.” O culto à personalidade e a aderência alienada a ‘opiniões respeitáveis’ fazem mais estragos a médio e longo prazo, do que divisões superficiais provocadas por imprudência de várias matizes de opinião. Paz, saúde e discernimento, lhe desejo sempre.

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