Somos seres do agora, como fomos do ontem, mas nem o ontem e menos o agora nos impedem de nos descobrirmos também seres do futuro.
As correntes que retêm os seres humanos ao seu instante jamais serão suficientes para impedi-los de se lançarem ao futuro como forma de desbravar a própria vida em busca de respostas. As correntes são culturais e a essência do humano e, portanto, do humanismo é supra cultural. Já em Kardec aprende-se que o ser humano pode ser aprisionado em cárceres e masmorras, mas não pode ser impedido de pensar e o pensamento é sua forma superior de exercício da liberdade. Embora os conceitos temporais de presente, passado e futuro signifiquem meros instrumentos de entendimento da duração das coisas, portanto, signos linguísticos representativos da ideia de tempo, vive-se fixado no agora, enlaçado pelo que se foi e debruçado no que virá.
Bons filósofos questionaram e ainda questionam: quem somos, de onde viemos e para onde vamos? A surrada expressão vive nessa via crucis da história e permanece desperta no interior das questões mal resolvidas. O passado está gravado como narrativa nos anais de uma nuvem qualquer, semelhante à que o homem recentemente “inventou”, com amplas possibilidades de acesso: a narrativa é plural, visto descrever indivíduos e sua trajetória humano-espiritual, bem como das civilizações, a permitir que a história das coletividades possa ser estudada sempre que necessário.
O futuro, como incógnita do que virá, é uma causa em construção ainda, no descrever de Kardec. Embora haja muitas nebulosas sobre este segmento da duração, sua essência se mostra cada vez mais clara à razão humana ao permitir projeções sobre o que se causa e o que se terá por efeito das ações produzidas pelos indivíduos e as sociedades. As minúcias ou os detalhes, se não podem ser conhecidos com segurança por antecipação, são o que são, meros detalhes que a experiência a seu tempo resolverá. São, segundo este raciocínio, o complemento do viver, mas não o impeditivo do vislumbre, da percepção do que se projeta com o viver.
Resta o agora, onde o ser se encontra, o terreno das coisas, o mundo da vida como afirma o filósofo. Se o agora existe enquanto lugar ou fato fenomênico – quem pode afirmá-lo? – ele está fora de qualquer forma de contenção, pois se confunde com o que se foi e com o que está e era tido por futuro. Mas nem por isso deixa de ser o momentum do fazer, do fazer-fazer e do fazer-fazer-saber, a gerar efeitos no movimento eterno das vidas em trânsito no planeta, no desafio colocado pela figura simbólica da borboleta que bate asas e provoca algum tipo de consequência alhures.
Mas o agora, na sua condição inerente de instante incomensurável, se coloca como oportunidade e fonte de angustiosas inconstâncias frente ao que se mostra incerto, no mundo do talvez ou do nada, do possível que não oferece a face, a gerar descontroles em vista da dependência do ser ao mito da segurança no seu caminhar. Nada é tão seguro como se pode pensar, mas só se descobre o mundo e suas realidades factuais depois que se vive o que se encontrava no porvir. Aí, comumente se descobre que o porvir vindo difere do futuro planejado e nenhuma contradição fundamental haverá nessa descoberta. Afinal, todo o desconhecido será conhecido na sua inesgotável capacidade de surpreender. Falamos de Kardec e sua doutrina. Inseridos nos seguimentos linguísticos do tempo – presente, passado e futuro – o homem e a filosofia, construtor e obra, desafiam os indivíduos a alcançarem o degrau acima da escalada humana, não apenas para superar as aparentes contradições do que existe, mas fundamentalmente para ultrapassar o desafio de viver o instante, vivendo-o dignamente, mas também os temores gerados pelo que vem ou há de vir, por inevitável. A experiência humano-individual é o maior e mais perfeito fundamento da pedagogia interexistencial, que vigora na sala de aula do mundo e da vida. De resto é preciso ser aluno antes para chegar a mestre em algum lugar.
*Texto publicado no jornal Abertura, Santos, ed. jul/2020.