Aos amigos que perguntam por onde e como ando, respondo que entre as brumas raras do mar o a brisa que assopra o continente, na exata interseção dos dois planos da vida.

Estou no consultório em frente ao médico, que me olha com certo espanto. Tem nas mãos o exame cintilográfico que indica uma zona altamente comprometida no meu coração. As imagens são claras e até mesmo um leigo como eu as compreende. O meu cardiologista com sua ampla experiência de tantos anos de medicina tenta me convencer que é apenas um exame, simples assim, mas lá no fundo sei que está apavorado. As imagens são também contundentes e ele, visivelmente, não quer me preocupar. Não quer, mas liga imediatamente para o colega especialista em cateterismo e pede que me receba para um exame, também imediato, exploratório.

Neste instante, ele morre de medo do morrer e eu por dentro sorrio do medo que lhe mata, sem esconder uma leve ironia.

Após brigar com o plano de saúde – este é um capítulo comum da saúde brasileira – o cateter é realizado e mostra uma realidade que médico algum espera, imagine o paciente. Até agora o meu cardiologista está sem entender. A artéria mamária, utilizada na cirurgia de revascularização há vinte e cinco anos atrás, quando eu tinha apenas 42 anos de vida, foi responsável – é o que dizem eles – pela criação de um desvio que supriu a morte de uma das safenas. E dizem mais, que a safena, de vida curta, pois dura não mais que dez anos em média segundo alguns especialistas, havia secado, mas tudo indica que enquanto secava – eles é que afirmam, repito – a mamária construía o desvio e supria o coração do seu elemento fundamental. Não se esqueça que há oito anos vivi o meu último infarto e recebi na ocasião o terceiro estente na outra safena que ainda resiste.

Enquanto estou sob os efeitos da anestesia, a conversa dos dois médicos é com minha esposa. Ela sorri, aliviada, enquanto eles comentam sobre o fato sem esconder a enorme surpresa e finalizam: está melhor do que faria o mais renomado cirurgião. O diretor da área cardiológica do hospital é da mesma opinião. Quando acordo, vejo-os em torno do meu leito, ansiosos para dar-me a notícia. Seis horas depois, já me encontro no taxi, rumo à minha residência, com um único incômodo: o curativo na virilha, por onde o cateter foi introduzido.

Agora, as revelações. Aprendi a conviver com as fragilidades do meu coração desde a cirurgia em 1991. Após o infarto de 2008, o terceiro, tenho passado por experiências curiosas e não as revelei antes para não levar preocupações aos meus familiares. Nos últimos dois ou três anos, acordo durante a noite com a sensação de que o coração vai parar. Imagino, sempre, que minha hora está chegando. Logo após, os sintomas estranhos desaparecem e eu me sinto tão bem que atribuo à minha mente as sensações de há pouco. O acontecimento se repete inúmeras noites, mas cessa de uns tempos para cá, de modo que a cintilografia de rotina que levou pânico ao meu médico foi feita simplesmente para cumprir a obrigação. Quando o médico a analisa, pergunta-me se estou sentindo alguma coisa. Ante minha negativa, repete a pergunta. Insisto: estou bem, não sinto nada. Ele conclui: o paciente está assintomático. Ato seguinte, agiliza as providências e os cuidados que as imagens exigem, relegando a segundo plano o meu nada sentir.

Agora, um detalhe: por mais de uma vez e por mais de um médium desconhecido, sou informado espontaneamente de que estou sendo assistido por espíritos que – dizem – me querem muito bem. Fico feliz, mas não ligo muito para isso, especialmente quando as informações chegam por médiuns videntes. Não confio cegamente nem desconfio ceticamente. Sigo em frente.

Para mim, desculpem a ousadia, nenhuma surpresa diante da estupefação dos médicos. Mesmo porque não acho que exista alguém que possa afirmar que uma artéria mamária é capaz de agir intencional e inteligentemente, e criar caminhos por si mesma. Creio, sim, que inteligências possam conduzi-la por caminhos diferentes. Tudo natural, consequência das intervenções médicas no plano material ou da realidade da vida interexistencial que todos levamos, mas muitos duvidam, até amigos espíritas. Kardec quer que os médicos acreditem na intervenção dos espíritos no mundo material, mas ainda é pouco ouvido. A vida não se faz apenas de matéria, eis a realidade. Há dois planos interagindo, num intercâmbio permanente e não é preciso lembrar que se dois interagem, os dois agem e reagem.

Digo ao meu cardiologista recifense que a vida não pertence à Terra apenas, sem forçar convicções. Ele concorda, mas é católico e não compreende a rede invisível das interações. Diz que Deus é o agente de tudo. E tem razão, não é mesmo?

A cintilografia o apavora e ele tem o cuidado de não me apavorar também. Não sabe que estou pronto. São humanos, ele e o colega, querem me dizer que a vida continua até que a descontinuidade seja irreversível, mas então eu não terei consciência disso, no entender deles.

Agora, sou eu que os consolo. Só que não consigo falar dos seres invisíveis que vivem ao nosso lado diuturnamente, porque isso pode aumentar a preocupação deles, afinal, quem não concebe senão o aspecto racional e objetivo da vida pode se perder em conjecturas angustiantes. Que fazer senão esperar que o tempo lhes dê tempo para bem o tempo fruir, porque na falta de tempo poucos percebem o tempo a fugir (essa paródia dos versos do poeta me dá um upgrade).

Nas minhas reuniões familiares de tantas décadas, os espíritos são uma presença indiscutível. Vejo-os e com eles dialogo. Tem gente – e não são poucas pessoas – que tem medo dos espíritos se manifestarem em suas residências, pensando que podem trazer perturbações e prejuízos à casa e aos familiares. Apesar disso, os espíritos estão lá, invisíveis e ao mesmo tempo perceptíveis. Muitos fingem que não os sentem, temem ver, mas o que farão quando estiverem no lugar deles e sentirem a imensa necessidade de ser correspondidos pelos que aqui ficaram? Penso que o medo dos espíritos seja uma entre as muitas infantilidades do mundo contemporâneo. Infantilidade e ingenuidade aqui se confundem.

Assim nunca foi e nunca tem sido com os amigos que desenvolvem as suas experiências com os espíritos, experiências que, se bem conduzidas, produzem bons resultados e integram as linhas da educação para a vida e a morte. Os espíritos estão em todos os lugares, quer queiramos, quer não. Devemos aprender a conviver com eles, ao invés de temê-los. Eu não lhes peço ajuda, benefícios pessoais, não me movo por interesses particulares quando me relaciono com eles e se por acaso fizeram alguma coisa por meu coração de artérias velhas e fracas, foi por iniciativa própria. Fico-lhes nesta e em todas as outras ocasiões semelhantes imensamente agradecido, mas procuro conduzir tudo na base da naturalidade, isto mesmo, naturalidade das relações afetivas nos planos interativos da vida.

Ocorre que a preocupação com a saúde acontece na interseção dos dois planos da existência, pois os espíritos que na Terra praticaram a medicina com abnegação não abandonam jamais seus compromissos, mesmo depois de partirem para o outro lado. Prosseguem com suas experiências de vida, buscando e descobrindo formas de humanizar a saúde. Os encarnados são, de algum modo, as suas cobaias, no sentido mais humano do termo, mas também os meios das práticas solidárias.

Eu continuo aqui, pronto para o morrer, embora sem saber quando a morte virá. Eles do lado invisível continuam a trabalhar e, creio, despreocupados com o viver e o morrer, atentos apenas às conexões que ligam vivos e mortos. Quem pode compreender isso?

By wgarcia

Professor universitário, jornalista, escritor, mestre em Comunicação e Mercado, especialista em Comunicação Jornalística.

11 thoughts on “Você se pergunta? Também eu”
  1. Olá caro Wilson. Muito importante as suas reflexões. Refletem a visão filosófica de quem assumiu a Doutrina Espírita como paradigma para viver todos os instantes.
    Abração e permaneça no corpo físico enquanto puder. Dizem que a fila do lado de lá para o retorno ao campo físico está grande.
    Minha esposa Maria Eny está vivenciando, também, essa experiências cardiológicas, vou passar para ela as suas interessantes reflexões.
    Abraço Aylton

  2. Caro amigo Wilson.

    Parabéns pelo seu relato. Revela sabedoria de vida e tranquilidade possível diante do inevitável.

    Preparar-se, eis a orientação sempre “esquecida”.

    Saudoso abraço, amigo.

    Homero.

  3. Caro Homero, saudades desta cidade e dos amigos da casa espírita. Abraço grande.

  4. Já faz tempo que te sigo e nem sabe, sou encarnada…kkk adoro seus escritos e essa é a forma de te seguir …Grande e forte abraço. Continue por favor!!

  5. Wilson, não se atreva a nos deixar sem partilhar comigo mais um café! Se o fizer estará criando um karma para comigo e eu por minha vez o acossarei quando encarnares outra vez, tornando-o viciado em café ( risos ). Brincadeiras à parte, li o teu relato com certa apreensão…mais por nós do que por você; creio não ser o único a não estar tão despreocupado quanto à sua desencarnação, pois será de grande falta para os que ainda precisam permanecer no árduo trabalho a ser realizado aqui. Confie nos espíritos mas procure um bom médico, eu costumo dizer. Abraço!

  6. Caríssimo Wilson
    Costumo repetir para os mais próximos a mim que preparar-se para a morte é fácil… Difícil mesmo é preparar-se para viver muito!
    Assim, caro amigo, não tenho dúvidas que você está muito bem preparado para retornar ao mundo espiritual, até mesmo pela comum interatividade com aqueles que foram antes, mas não espere morrer logo, pois a espera pode ser longa, frustrando qualquer expectativa… Sua, porque a mim parecerá muito natural sua permanência ainda por muito tempo entre nós. Apesar da sua longa folha de serviços prestados ao Espiritismo, ainda há muito trabalho a fazer. Ainda temos muito a aprender com você e seu texto reflete muito bem isso.
    Grande abraço
    Néventon

  7. Caro Wilson, estou também me preparando para essa passagem. Principalmente depois que meu irmão, semana passada, sentiu dores nas costas foi ao médico que receitou anti-inflamatório e analgésico. Passados uns dias, a dor não melhorou, ele foi ao hospital e 15 horas depois estava morto! Com 68 anos sem doença grave, estando apenas um pouco acima de glicose e colesterol. É assim. A danada fica na espreita e quando menos esperamos, lá vem ela com sua velha foice enferrujada, mas eficaz na sua tarefa. Eu proponho um pacto, um trato post mortem entre nós: aquele que chegar primeiro prepara a recepção do outro. Tá feito?

  8. Eu tenho uma história na família muito parecida com a sua.Qdo estiver no computador te conto,pq as letrinhas no smart ninguém merece. Adorei a análise.

  9. Prezado amigo Wilson Garcia:

    Votos de muita paz e saúde.
    Fico contente de estar bem e de bom humor.
    Que bom que o corpo tem correspondido aos seus pensamentos e mantido você ligadão ainda aqui.
    Vamos esperar um novo trabalho seu para 2017 em nossa parceria da EME e Eldorado.

    Seu último livro lançado foi em agosto de 2014. Teve uma reedição em 2015.

    O público espera uma nova obra.

    Será que você vai vir para São Paulo, para marcarmos um ciclo de palestras de quatro dias de domingo à quarta-feira em 2017?

    Um forte e fraterno abraço

    Arnaldo Camargo – Editor EME e Nova Consciência

  10. Professor Wilson Garcia,
    Só quem não morre neste mundo é o TEMPO que a tudo desgasta e consome com sua sutil voracidade. Enquanto presos no corpo físico, não passamos de seres espirituais submetidos aos caprichos das doenças oportunistas e perturbadoras.
    A minha Carmem (com estente e marcapasso), após a perda do nosso filho mais velho, em 2002 (latrocínio), ficou depressiva e por tabela foi acometida pela síndrome de pânico.
    Agora é que ela está reagindo ao tratamento psicoterapêutico e magnético que os amigos espirituais me orientaram para ajudá-la. São 14 anos de uma rotina feita de fisioterapia, caminhada, banho de sol, companheirismo e cumplicidade, das 6 da manhã às 22 horas, quando ela volta a tomar seus medicamentos e adormece profundamente.
    Os espíritas que conheço tentaram nos levar para algumas instituições que prometem tudo curar. Recusamos. Acreditamos no que Chico Xavier falou: tudo passa. E se vai passar, tem que ser com muita paciência, afeto, amor e alegria.
    E muito trabalho para não enferrujar o cérebro ameaçado pela doença de Alzheimer. Que a eternidade nos receba a todos de braços abertos, sem nenhuma doença moral mais grave. Vamos em frente! Grato pelo inspirado artigo.

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