Os países de língua portuguesa, notadamente Brasil e Portugal, têm como pano de fundo religioso a doutrina da Igreja Católica, também conhecida popularmente como Cristianismo. Assim, Catolicismo e Cristianismo quase sempre se referem à mesma coisa. É bem verdade que em Espiritismo tenta-se, sem muito sucesso, separar as coisas. Um dos livros clássicos do Espiritismo tem por título “O cristianismo do Cristo e o dos seus vigários”. Querem os autores espíritas, ao referir-se ao Cristianismo, dizer da doutrina originada dos ensinos cristãos cujo fio condutor inicia-se com o Cristo. Cristo, cristãos, Cristianismo, eis a idéia. A dificuldade é eminentemente de ordem cultural. Assim como muitos outros termos, a palavra Cristianismo assumiu, ao longo dos dois últimos milênios, uma conotação de ensino da Igreja onde se misturam leis, regras, princípios estabelecidos a partir interpretações dos ensinamentos contidos no Evangelho. Mas, também, de interesses diversos do poder temporal que a Igreja desenvolveu.
Uma outra palavra de difícil compreensão semântica atualmente é o termo “religião”. Há muito interesse nos meios espíritas em separar o seu significado histórico do significado semântico, ou seja, daquele significado original, se assim se pode exprimir. Religião é palavra cujo significado atual remete a um corpo de doutrina e à sua prática através de ritos, dogmas, crenças e cultos. Nos países ocidentais, em especial, assim como Cristianismo remete ao Catolicismo, Religião também quase sempre remete às práticas ritualizadas. Mesmo quando não o faz, o termo Religião cultural e historicamente diz respeito às práticas ritualizadas de cultos dedicados a Deus.
A tentativa de separar esse significado histórico do sentido semântico interessa ao Espiritismo por diversas razões. A principal delas é que se há uma Religião Espírita, essa religião tem a ver com o significado semântico e não com o significado cultural. Mas é quase uma luta inglória, ou seja, impossível de ser vencida. Como pertencer a uma Religião que a princípio não possui um sistema estruturado de crenças, não possui práticas destinadas ao culto a Deus e não ritualiza de modo sistemático os seus procedimentos ditos espirituais? Como, por exemplo, responder aos censores do IBGE sobre a religião que se adota, se quando perguntam eles se referem à Religião de significado histórico? Temos, pois, uma imensa dificuldade de definir nossa identidade dentro da sociedade, quando o que está em jogo é a nossa referência religiosa.
Um outro termo complicado é a palavra “dogma”. As religiões, de modo geral, possuem seus dogmas, ou seja, suas verdades. Mas no Catolicismo o dogma ultrapassou os limites daquilo que poderia ser uma simples verdade para assumir a posição de verdade indiscutível proveniente da revelação divina. Os dogmas aí são dogmas de fé, elementos fundadores que devem ser aceitos sem questionamento, porque qualquer questionamento do dogma terá como significado último uma demonstração de descrença em relação à verdade revelada, o que no caso é imperdoável. Então, historicamente, o termo dogma não interessa aos espíritas. E não interessa porque não temos dogmas de fé. Todos os princípios espíritas, básicos ou não, devem se assentar na lógica e se possível na comprovação. Essa é a racionalidade espírita. Quando, enfim, se diz que a reencarnação, por exemplo, é um dogma espírita esbarra-se na questão cultural: dogma como verdade indiscutível. O princípio da reencarnação, como os demais existentes no Espiritismo, não dispensa a reflexão ou a prova, portanto, não pode ser tido como dogma em seu sentido histórico.
Veja bem, falamos de três termos cujo trajeto histórico realiza a interligação entre eles: Cristianismo, Religião, Dogma. E começamos com uma referência à língua portuguesa do Brasil e de Portugal. Por quê? Bem, parece mesmo surpreendente que países como estes dois, onde a presença da Religião em seus termos históricos está na base da cultura, tenham tamanha abertura para uma doutrina nascida das entranhas racionais da cultura européia, melhor dito, do caldo cultural francês com forte acento do racionalismo cartesiano. A princípio, a lógica espírita deveria encontrar melhor terreno ali, onde nasceu, e nas adjacências. Estranhamente, porém, foi ali que logo pereceu e agora luta por se reencontrar com imensas dificuldades. Mas onde a cultura estava aparentemente destinada a recusar a difusão de conhecimentos de base racional, como o Brasil, foi onde o Espiritismo encontrou disposição para sobreviver. Mais do que isto, para crescer e estender raízes profundas.
Não haverá certamente uma explicação única para a difusão da cultura espírita no Brasil e em Portugal. Não há na vida, para nada, uma explicação isolada. A complexidade não pode ser explicada numa única frase. Mas é certo que, já em Kardec, os elementos comuns e – eu diria, com ênfase – facilitadores da absorção do Espiritismo em países como estes estavam presentes. Pode-se dizer que o Cristianismo histórico como que reclama com ansiedade pela presença dos princípios racionais contidos no Espiritismo. Talvez por isso, no inconsciente das práticas religiosas dos nossos povos, a relação com os mortos, a perspectiva de retornar à vida no corpo físico, a expectativa de prosseguir com a personalidade individual no outro mundo encontrem novo frescor com a doutrina que coloca estes princípios como elementos fundamentais da existência humana.
Não há nada de novo debaixo do Sol. Ou há?