A tese de doutorado recém defendida Espiritismo, de doutrina filosófica à religião do livro: entre controvérsias, livros e cânone, de Luís Jorge Lira Neto, pela Universidade Católica de Pernambuco, coloca o movimento espírita brasileiro diante de um espelho inevitável. Não se trata de mais um trabalho apologético nem de crítica externa ao campo espírita, mas de uma análise interna, minuciosa e metodologicamente rigorosa, que interroga a própria trajetória sociocultural do Espiritismo desde sua formulação por Allan Kardec até sua consolidação institucional no Brasil contemporâneo.

A pergunta central do estudo é simples e, ao mesmo tempo, desconfortável: teria o Espiritismo — originalmente apresentado por Kardec como ciência de observação e doutrina filosófica — se transformado, na prática social brasileira, em uma “religião do livro”? A resposta oferecida pela tese é afirmativa, sustentada por farta documentação histórica, sociológica e hermenêutica.

Lira Neto parte de uma apresentação cuidadosa do Espiritualismo moderno, surgido nos Estados Unidos em 1848 e recepcionado na França sob os ares do racionalismo iluminista tardio. Nesse ambiente, Kardec estrutura o Espiritismo como uma proposta de conciliação entre fé e razão — a famosa “fé raciocinada” — fundada no método experimental aplicado aos fenômenos mediúnicos e sistematizada em obras de caráter filosófico. A matriz kardeciana conserva explícita distância de qualquer forma litúrgica, sacramental ou clerical. O próprio Kardec repudiava a ideia de uma nova religião institucionalizada, ao mesmo tempo em que admitia o uso do termo “religião” apenas no sentido filosófico e moral, jamais dogmático.

A grande inflexão descrita pela tese ocorre quando o Espiritismo se estabelece no Brasil. Diante de uma cultura de religiosidade sincrética, fortemente cristianizada e mística, a doutrina passa por um processo de reconfiguração prática: incorpora hábitos devocionais, estrutura modelos organizacionais hierarquizados, ritualiza encontros públicos em torno do Evangelho e transforma o estudo doutrinário em verdadeiro rito de iniciação comunitária. A obra de Kardec, especialmente seus cinco livros fundamentais, passa a ser tratada com crescente reverência, adquirindo traços de sacralização textual comparáveis aos cânones das grandes religiões letradas.

É precisamente nesse ponto que reside a maior originalidade da pesquisa: o autor aplica à análise do Espiritismo os modelos clássicos de formação de cânone utilizados na fenomenologia da religião, sobretudo a partir dos trabalhos de José Severino Croatto e Aldo Terrin. Segundo esses referenciais, toda religião do livro se organiza a partir de três pilares:

  1. a sacralização de um conjunto de textos fundadores;
  2. a legitimação de uma hermenêutica autorizada;
  3. a formação de comunidades guardiãs dessa tradição interpretativa.

A tese demonstra que esses três elementos se tornaram progressivamente visíveis no Espiritismo brasileiro. Os textos kardecianos são convertidos em referências normativas supremas; o debate doutrinário tende a reduzir-se à defesa da “interpretação correta” da Codificação; e disputas internas surgem em torno do monopólio simbólico da legitimidade doutrinária — fenômeno analisado com o auxílio da sociologia de Pierre Bourdieu, aplicada ao chamado “campo espírita brasileiro”.

Nessa arena, grupos se opõem: científicos versus místicos; kardecistas versus roustainguistas; progressistas versus conservadores, cada qual reivindicando a condição de verdadeiro intérprete do legado de Kardec. O capital simbólico passa a ser medido pela erudição textual, pelo domínio da bibliografia espírita e pela proximidade institucional com centros federativos e editoras tradicionais. Sem negar os ideais de racionalidade professados pelo discurso oficial, a prática social revela tendência à dogmatização indireta, pela via da sacralização do texto e da autoridade interpretativa.

Importa sublinhar: a tese não ataca o núcleo doutrinário do Espiritismo. Ao contrário, reconhece explicitamente a fidelidade conceitual do pensamento kardeciano à modernidade científica e ao livre exame. A crítica dirige-se ao modo como o movimento brasileiro historicamente reconfigurou essa proposta original, aproximando-se de estruturas típicas das religiões confessionais. Trata-se, portanto, menos de uma contestação teológica e mais de um diagnóstico sociológico: a prática social difere do ideal doutrinário.

As fontes utilizadas são sólidas e variadas. O trabalho dialoga com clássicos das ciências da religião — Durkheim, Weber, Geertz, Ricœur, Bourdieu —, com autores especializados no estudo do Espiritismo brasileiro — Giumbelli, Lewgoy, Camargo, Aubrée & Laplantine, Camurça, Stoll — e, sobretudo, com os próprios escritos de Kardec e documentação inédita do Projeto Allan Kardec da Universidade Federal de Juiz de Fora, incluindo manuscritos históricos. Não se trata, portanto, de uma hipótese especulativa, mas de uma análise sustentada por documentação extensa.

Naturalmente, a tese encontrará resistências entre setores espíritas mais tradicionalistas, avessos a reconhecer qualquer traço de institucionalização religiosa no movimento. Também provocará incômodo em ambientes federativos que se veem descritos como polos de poder simbólico e de controle doutrinário. Contudo, nenhuma dessas reações invalida o mérito acadêmico do estudo — pelo contrário: confirma a vitalidade do debate que o próprio Kardec sempre defendeu como essência do Espiritismo.

Em síntese, o trabalho de Lira Neto apresenta uma conclusão tão provocadora quanto bem fundamentada:

O Espiritismo se organizou historicamente de duas formas:
– na França, como religião filosófica letrada, próxima do secularismo moderno;
– no Brasil, como religião cristã do livro, de identidade mística e doutrinariamente centralizada.

Essa constatação não é um ataque ao Espiritismo; é um convite à reflexão. Diante do espelho acadêmico que a tese apresenta, cabe ao movimento espírita perguntar a si mesmo: deseja permanecer como espaço de livre investigação espiritual e filosófica ou acomodar-se definitivamente nos moldes de uma religião de cânone fixo e interpretação autorizada?

A resposta a essa pergunta talvez determine não apenas o futuro institucional do Espiritismo no Brasil, mas também a permanência — ou não — do projeto kardeciano de uma fé permanentemente aberta ao crivo da razão.

 

ANTES QUE ALGUÉM ME COBRE

 Nota crítica – Roustaing, Kardec e a FEB: quando a conciliação abandona o método

Um dos pontos mais sensíveis do debate aberto pela tese de Luís Jorge Lira Neto refere-se à convivência institucional brasileira entre o legado de Allan Kardec e a obra de Jean-Baptiste Roustaing — convergência historicamente promovida pela Federação Espírita Brasileira (FEB) sob o argumento de unidade do movimento, mas que permanece problemática à luz do próprio método espírita.

Do ponto de vista estritamente doutrinário, não há como sustentar que Roustaing represente uma continuidade válida do pensamento kardeciano. Sua obra central, Os Quatro Evangelhos – Revelação da Revelação (1866), baseia-se quase exclusivamente em comunicações de um único médium, Émilie Collignon, e não se submete ao princípio metodológico fundante da Codificação: o Controle Universal do Ensino dos Espíritos (CUEE). Kardec foi explícito a esse respeito ao afirmar que nenhum ensinamento mediúnico poderia ser tomado como norma doutrinária sem ampla convergência de comunicações independentes, colhidas em diferentes médiuns e regiões, submetidas a exame racional.

Roustaing rompe com esse critério desde a origem, produzindo uma interpretação singularizada, personalista e teologicamente direcionada — paradigma que contraria frontalmente o método comparativo e coletivo kardeciano. Mais grave ainda, seu conteúdo entra em choque com princípios estruturantes do Espiritismo, notadamente:

  • Lei universal da Reencarnação – Roustaing atribui a Jesus um “corpo fluídico especial”, imune à materialidade comum, insinuando condição biológica excepcional. Essa tese relativiza a universalidade da encarnação como lei igual para todos os Espíritos (O Livro dos Espíritos, questões 132 a 170).
  • Lei do Progresso – Ao postular naturezas espirituais apartadas do mecanismo reencarnatório gradual, Roustaing sugere privilégios ontológicos incompatíveis com a evolução contínua e universal ensinada por Kardec (LE, q. 114–170).
  • Igualdade espiritual das criaturas – A doutrina roustainguista constrói um cristocentrismo de natureza quase teológica, destoando do entendimento kardeciano de Jesus como modelo moral máximo, mas plenamente inserido nas leis espirituais comuns a toda a humanidade.

Sob qualquer critério de fidelidade metodológica e doutrinária, o roustainguismo se revela doutrina paralela, não kardeciana.

A adesão institucional da FEB ao chamado “eixo Roustaing–Kardec”, portanto, não representa uma síntese coerente de pensamento, mas sim uma solução administrativa e conciliatória para tensões internas do campo espírita brasileiro em formação. No final do século XIX e no início do século XX, diante da pressão da Igreja, da marginalização científica e da necessidade de expansão social do movimento, Roustaing oferecia uma linguagem cristianizante e apologética capaz de facilitar a aceitação pública do Espiritismo como religião cristã, ainda que isso implicasse diluição do rigor metodológico kardeciano.

A convivência desses dois sistemas não produziu unidade doutrinária, mas sim um sincretismo institucional: Kardec permaneceu como emblema racional da doutrina, enquanto Roustaing alimentou a vertente mística, devocional e dogmatizante. Formou-se, assim, um duplo discurso — científico no plano retórico, religioso tradicional no plano prático — responsável por grande parte das ambiguidades identitárias do Espiritismo brasileiro.

À luz da Codificação, essa opção cobra seu preço: ao privilegiar o consenso institucional sobre a coerência doutrinária, a FEB acabou por relativizar o próprio método espírita, abrindo espaço para o que Kardec sempre combateu — o personalismo revelatório, o fechamento dogmático e o culto a interpretações privilegiadas.

A tese de Lira Neto registra esse fenômeno sob a chave sociológica, sem emitir julgamento doutrinário. Mas, sob a perspectiva espírita fiel ao método kardeciano, a conclusão é inevitável:

Roustaing nunca foi e não pode ser considerado continuidade autêntica da Doutrina Espírita. Sua incorporação institucional no Brasil é o fruto de uma estratégia de legitimação religiosa — não de fidelidade doutrinária.

O dilema permanece atual: ou o Espiritismo brasileiro resgata plenamente o critério do Controle Universal do Ensino dos Espíritos, ou continuará oscilando entre ciência filosófica e religião de cânone fechado, em contradição com o próprio ideal de fé raciocinada legado por Allan Kardec.

By wgarcia

Professor universitário, jornalista, escritor, mestre em Comunicação e Mercado, especialista em Comunicação Jornalística.

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