O ser humano passa boa parte da vida ocultando partes de si, retraindo suas crenças, controlando gestos e palavras para garantir certa harmonia nos ambientes em que transita. É um disfarce silencioso, muitas vezes inconsciente, movido pela necessidade de aceitação e pertencimento. Desde cedo, aprende-se que mostrar o que se pensa pode gerar conflito, e que a conveniência protege. Assim, as convicções se tornam subterrâneas — não desaparecem, mas se acomodam em zonas de sombra.

A psicologia existencial reconhece nesse movimento um traço universal da condição humana. Jean-Paul Sartre chamou de má-fé essa tentativa de viver sem confrontar a própria verdade, de representar papéis sociais para evitar o desconforto da liberdade (SARTRE, 2007). O indivíduo sabe que mente para si mesmo, mas finge não saber; e, nessa duplicidade, constrói uma persona funcional, embora distante da autenticidade. Carl Gustav Jung, por outro lado, observou que essa “máscara” — a persona — é inevitável para a vida em sociedade, pois nenhum ser humano suporta viver nu diante do olhar coletivo. O problema não é usá-la, mas esquecer-se de que ela é uma máscara (JUNG, 2012).

No convívio humano, o mistério assume papel ambíguo. Ele é, ao mesmo tempo, um escudo e um abismo. O mistério protege: quem não se mostra por inteiro evita o julgamento e a rejeição. Mas também isola: o segredo constante produz desconfiança, e o olhar do outro percebe, ainda que vagamente, o que está oculto. Há algo de trágico nesse jogo de aparências, pois quanto mais o indivíduo se resguarda, mais distante se torna da comunhão autêntica com os outros. Como observou Erich Fromm, “quem teme perder a aprovação do mundo acaba perdendo a si mesmo” (FROMM, 2001).

Com o passar do tempo, porém, o equilíbrio se rompe. Chega um período — muitas vezes na maturidade — em que as ambições arrefecem e os segredos perdem o sentido. O que antes era prudência transforma-se em peso, e o indivíduo começa a se revelar. Não raro, o faz com certo desdém, ou até com arrogância, como se quisesse compensar anos de silêncio. Há nisso um misto de libertação e revanche: o gesto de quem já não depende do olhar alheio para existir. É quando o mistério, antes protetor, se converte em fardo, e a verdade interior exige passagem.

Entre o cálculo e a consciência

Viver disfarçando convicções pode parecer compreensível — e até inevitável — no mundo dos negócios, onde a sobrevivência depende da prudência, da diplomacia e das alianças estratégicas. Ali, a dissimulação é quase um instrumento profissional. As relações se estruturam em torno de resultados e vantagens, e as emoções são geridas como ativos: demonstra-se empatia, fé no projeto, entusiasmo — ainda que, por dentro, reine o ceticismo. Nesse contexto, o silêncio ou o disfarce são vistos como competência emocional, e não como falta de autenticidade (GOLEMAN, 2011).

Mas quando esse mesmo comportamento se transfere para o mundo da espiritualidade, ele se converte em paradoxo. Afinal, o campo espiritual — seja religioso, filosófico ou ético — se funda justamente na transparência da consciência, na busca por coerência entre o que se pensa, se sente e se vive. Lá, o fingimento deixa de ser prudência e passa a ser contradição moral. Como falar de fé escondendo o que se crê? Como falar de amor e de verdade mantendo um rosto político e calculado?

A dissimulação espiritual é mais sutil, porém mais grave. Ela se apresenta quando o indivíduo, desejoso de reconhecimento dentro de instituições ou grupos ditos espirituais, negocia suas convicções interiores em troca de pertencimento. O discurso da humildade esconde o medo de ser rejeitado, e o da fraternidade, o receio de contrariar a autoridade. Assim, o mesmo mecanismo de autoproteção que rege os negócios contamina o espaço que deveria ser da liberdade interior.

Autenticidade e responsabilidade espiritual

Allan Kardec, ao tratar da sinceridade do espírito, advertia que “a fé verdadeira é aquela que encara a razão face a face, em todas as épocas da humanidade” (KARDEC, 1995, p. 22). Ou seja, a espiritualidade legítima não teme a exposição da verdade, mesmo quando ela incomoda. Do mesmo modo, Léon Denis sustentava que “a crença não é uma convenção social, mas uma conquista do espírito” (DENIS, 1989, p. 48). Nessa perspectiva, esconder o que se crê para manter um papel dentro de uma instituição espiritual é uma forma de alienação sutil — mais perigosa que a dos negócios, porque disfarçada de virtude.

José Herculano Pires, ao refletir sobre o papel moral do homem consciente, afirmava que “a autenticidade é o único meio de realizar a comunhão entre a fé e a razão” (PIRES, 1970, p. 61). Para ele, o espiritismo — sendo uma filosofia de libertação da consciência — exige a coragem da verdade, a recusa a toda forma de servilismo intelectual e moral. Assim, aquele que se oculta por medo de desagradar não apenas trai a si mesmo, mas também o espírito de liberdade que o espiritualismo propõe.

A autenticidade, portanto, é uma forma de responsabilidade espiritual. Ser autêntico não é ser intransigente, mas coerente; não é afrontar, mas alinhar-se ao próprio centro de consciência. No mundo das aparências, a prudência pode ser sinal de sabedoria; no mundo do espírito, ela só tem sentido quando serve à verdade. Fora disso, transforma-se em cumplicidade com a ilusão.

O retorno à inteireza

Viver espiritualmente é, em última instância, um processo de integração do ser — uma reconciliação entre o que se pensa, o que se sente e o que se manifesta. A maturidade espiritual começa quando o indivíduo já não precisa esconder suas convicções para ser aceito, nem ostentá-las para ser admirado. Ele compreende que a transparência é a única forma de serenidade.

O disfarce talvez seja inevitável nas fases de aprendizado, quando ainda se teme o julgamento e se busca o reconhecimento. Mas o espírito amadurecido percebe que a liberdade interior não se compra com aplausos, nem se sustenta com máscaras. A verdade, mesmo quando silenciosa, é mais poderosa do que qualquer dissimulação conveniente.

Entre o cálculo e a consciência, entre o medo e a transparência, o ser humano caminha — e, em cada passo rumo à autenticidade, reaproxima-se do sagrado que habita em si mesmo.

 

REFERÊNCIAS

DENIS, Léon. Depois da morte. 23. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1989.
FROMM, Erich. O medo à liberdade. 15. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 114. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1995.
PIRES, José Herculano. O espírito e o tempo. São Paulo: Paidéia, 1970.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

By wgarcia

Professor universitário, jornalista, escritor, mestre em Comunicação e Mercado, especialista em Comunicação Jornalística.

Olá, seu comentário será muito bem-vindo.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.