Há algum tempo, ligar a televisão era um gesto de busca: pelo entendimento, pela atualização do mundo, por uma conexão com a realidade.
Hoje, ao apertar o botão, sinto como se estivesse abrindo um portal para uma arena. Não se trata mais de assistir — trata-se de alinhar-se. Minha TV se converteu em um púlpito eletrônico de certezas absolutas, onde a política não é apresentada como campo do diálogo (Hannah Arendt), mas do inimigo (Carl Schmitt).
Não importa o tema: inflação, clima, saúde, futebol, violência ou educação — tudo é filtrado pelo mesmo prisma binário: direita ou esquerda. A complexidade, que outrora era a matéria-prima da reflexão, agora é o defeito do sistema. A televisão se tornou uma máquina de fabricar antagonismos, operando sob o princípio do “ou você está conosco ou está contra nós”. O filósofo Byung-Chul Han (2022) descreve essa lógica como a sociedade do cansaço, na qual os indivíduos são exauridos não pela força, mas pela hiperexposição ao conflito permanente.
O algoritmo da indignação
Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, antecipou esse fenômeno: o real deixa de ser vivido para ser representado. A política não se realiza no mundo, mas nas telas, transformada em drama contínuo, no qual os telespectadores são capturados não pela razão, mas pela emoção programada. A televisão não informa — performativiza. Ela não pergunta: o que está acontecendo? Ela anuncia: quem venceu o capítulo de hoje nessa guerra ideológica?
Não por acaso, a raiva se tornou uma commodity. Em seu ensaio sobre a pós-verdade, Lee McIntyre destaca que o mercado da atenção descobriu uma verdade perturbadora: a indignação fideliza mais do que o interesse genuíno. A TV sabe disso. Ela não entrega fatos, entrega pertencimento emocional. E todo pertencimento emocional exige um antagonista para justificar sua existência.
O espectador exausto
Hannah Arendt afirma que a política é o espaço onde os seres humanos se revelam em sua pluralidade. O plural, porém, desapareceu. O espectador não é mais cidadão, mas soldado simbólico. Ele não é convidado a pensar, mas a reagir. Byung-Chul Han observa que, quando a comunicação perde seu caráter contemplativo, ela se degrada em barulho. E onde tudo é barulho, o silêncio se torna um ato de liberdade.
Jean Baudrillard diria que já não estamos vendo o mundo, mas sim simulacros de mundo, narrativas que precedem os fatos e determinam como devemos senti-los. O desastre não é o erro da TV: é seu acerto comercial.
Quando até a ideologia se torna mercadoria
Confesso: sou simpatizante de ideias socialmente progressistas. Acredito na justiça social, na dignidade humana como eixo das decisões, e entendo o Estado como instrumento civilizatório. Mas percebo um fenômeno inquietante: quando essas ideias passam pelo filtro dos dispositivos midiáticos, elas deixam de ser projetos de transformação para se converter em produtos de disputa. A televisão sequestra o ideal e devolve um slogan.
Marx diria que “tudo que é sólido se desmancha no ar”, mas aqui tudo o que é ideal se transforma em pacote comercial. A crítica social virou entretenimento. A indignação virou assinatura de streaming.
A renúncia como resistência
Desligar a TV, portanto, não é fugir da política. É resgatar a política em sua dimensão mais alta: a do pensamento autônomo. É um ato quase cartesiano: suspendo os ruídos para recuperar a clareza. A renúncia torna-se, paradoxalmente, um gesto político.
A superação pelo espírito e pela razão
Se alguma saída ainda existe, ela não virá das telas, mas do reencontro do homem com sua própria consciência histórica e espiritual. Precisamos reabilitar um espaço interior onde a verdade não seja grito, mas construção; onde a política não seja duelo, mas responsabilidade compartilhada. Como afirma Allan Kardec, “a verdadeira revolução é a revolução moral”. E Hannah Arendt complementa: “a liberdade não é o fim da política, é sua condição.” Desligar a televisão, nesse contexto, é reconectar-se com a fonte primeira da liberdade: a capacidade de pensar por nós mesmos, antes que o mundo pense por nós.