A adesão ao Espiritismo no Brasil: limites da autodeclaração censitária e complexidades identitárias
O Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicou que aproximadamente 1,8% da população brasileira se declara espírita, o que corresponde a cerca de 3,8 milhões de pessoas. Esse dado representa uma leve queda em relação ao Censo de 2010, quando 2,2% da população (aproximadamente 3,8 milhões, na época) se identificava como tal. À primeira vista, os números parecem indicar uma estagnação ou discreta retração do movimento espírita no país. No entanto, uma análise mais aprofundada revela limitações importantes na metodologia censitária, sobretudo no tocante à forma como se entende e se mede a pertença religiosa.
O IBGE coleta informações sobre religião com base em uma única pergunta aberta: “Qual é a sua religião ou culto?” A resposta é posteriormente categorizada por codificadores do instituto. Essa abordagem, embora metodologicamente adequada para captar a diversidade religiosa em um país como o Brasil, carrega limites importantes no caso do Espiritismo. Isso porque o Espiritismo, tal como concebido por Allan Kardec no século XIX, não se define necessariamente como uma religião no sentido tradicional. Em obras como O que é o Espiritismo e A Gênese, Kardec insiste que o Espiritismo é, antes de tudo, uma “ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos”, com implicações morais, mas não dependente de ritos, sacerdócio ou culto externo. Ele afirma que “o Espiritismo é uma filosofia espiritualista”, que se apresenta como uma doutrina de consequências religiosas, mas sem os elementos típicos das religiões institucionalizadas.
Essa concepção gerou, ao longo do tempo, uma cisão entre dois modos de viver o Espiritismo: um mais institucionalizado, representado por organizações como a Federação Espírita Brasileira (FEB), que passou a incorporar elementos religiosos mais claros (oração, culto do Evangelho, valorização do Evangelho segundo o Espiritismo, entre outros); e outro mais filosófico-científico, cujos adeptos evitam a rotulagem religiosa e, muitas vezes, rejeitam a ideia de pertencer a uma “religião espírita”.
Tal ambivalência impacta diretamente a forma como os indivíduos respondem ao Censo. Muitos simpatizantes ou mesmo praticantes assíduos de grupos espíritas não se declaram “espíritas” quando interpelados pela pergunta censitária. Em parte, porque não se veem como pertencentes a uma religião, e em parte por se identificarem mais com categorias como “espiritualista”, “sem religião” (no sentido institucional) ou mesmo “católico” ou “evangélico”, caso mantenham vínculos familiares ou culturais com essas tradições.
Além disso, deve-se considerar a crescente difusão das ideias espíritas (como reencarnação, mediunidade, vida após a morte etc.) em outras esferas do campo religioso brasileiro, incluindo religiões afro-brasileiras (como o Candomblé e a Umbanda), o catolicismo popular e até segmentos neopentecostais. Isso sugere que a influência do Espiritismo pode ser muito maior do que a adesão autodeclarada faz supor — um fenômeno que pesquisadores como Sérgio Ferretti, Sandra Jacqueline Stoll e Emerson Giumbelli já observaram em diversos estudos.
Por exemplo, a antropóloga Sandra Stoll (2003) argumenta que o Espiritismo, especialmente na sua vertente kardecista, exerce uma influência cultural que transcende sua base institucional. A autora mostra como práticas e ideias espíritas permeiam o cotidiano de muitos brasileiros, mesmo entre aqueles que não se identificam como espíritas. Já Emerson Giumbelli (2002) destaca o modo como o Espiritismo se apresenta como um “discurso de autoridade” sobre o invisível, que convive com múltiplas formas de religiosidade mediúnica, nem sempre institucionalmente ligadas ao movimento espírita.
Por fim, é importante observar que o campo religioso brasileiro é caracterizado por uma fluidez identitária crescente, fenômeno que sociólogos como Reginaldo Prandi e Cecília Mariz identificam como “religiosidade à la carte” ou “trânsito religioso”. Nesse contexto, o sujeito contemporâneo pode frequentar reuniões espíritas, adotar práticas espiritualistas e, ainda assim, declarar-se “sem religião” ou “católico”, conforme sua percepção subjetiva ou conveniência situacional.
Portanto, os dados do Censo devem ser lidos com cautela. Embora úteis como indicadores gerais, eles não esgotam a complexidade das formas de adesão ao Espiritismo no Brasil. Para compreender melhor o alcance e as transformações do movimento espírita, seria necessário adotar metodologias qualitativas e interdisciplinares, que captem não apenas a autodeclaração, mas também as práticas, crenças, formas de sociabilidade e os modos de apropriação das ideias espíritas em diferentes contextos sociais.
Identidade religiosa e interexistencialidade: o caso do Espiritismo no Brasil
A análise dos dados do Censo Demográfico brasileiro em relação ao Espiritismo revela, como já apontado, tensões entre a autodeclaração religiosa e a complexidade vivencial dos adeptos e simpatizantes da doutrina. A partir da perspectiva da identidade interexistencial, essa aparente incongruência pode ser reinterpretada não como imprecisão estatística, mas como sintoma de uma configuração identitária própria à cosmovisão espírita — e, de modo mais amplo, à espiritualidade contemporânea.
O conceito de identidade interexistencial, tal como o temos trabalhado, remete à experiência de si como um ser em trânsito entre planos de existência: físico e espiritual, presente e passado, individual e coletivo. No Espiritismo, essa perspectiva é constitutiva. O ser humano é entendido como Espírito imortal, encarnado provisoriamente, cuja identidade atual é apenas um recorte transitório dentro de uma biografia mais ampla, que se desdobra por múltiplas vidas e vínculos espirituais. Assim, a identidade pessoal — e, por extensão, a identidade religiosa — não se limita a um ponto fixo ou a uma filiação institucional estática. Ela se constitui dinamicamente, por entre existências, influências do plano espiritual, compromissos reencarnatórios e afinidades eletivas.
Nesse contexto, não é surpreendente que muitos espíritas não se reconheçam na etiqueta “religiosa” formal que o Censo propõe. Ao contrário de outras religiões que oferecem uma identidade normativa clara (como “católico”, “evangélico”, “muçulmano”), o Espiritismo propõe uma forma de pertencimento mais fluida, mais ligada ao modo de compreender a vida e a si mesmo do que à afiliação a uma instituição ou dogma. A prática da mediunidade, o estudo das obras de Kardec, a crença na reencarnação e na lei de causa e efeito são vividos, muitas vezes, como expressões de uma identidade espiritual contínua, que transcende os limites de uma existência, de uma instituição ou até mesmo de uma definição sociológica de religião.
Essa fluidez se intensifica em um ambiente cultural como o brasileiro, marcado pelo sincretismo, pela espiritualidade à la carte e pelo trânsito religioso. O Espiritismo, como doutrina que se apresenta como síntese entre ciência, filosofia e moral, se insere naturalmente nesse espaço. É, portanto, coerente com a interexistencialidade que muitos adeptos e simpatizantes experimentem sua identidade religiosa de forma múltipla: espíritas que ainda se sentem culturalmente católicos, espiritualistas que frequentam reuniões mediúnicas mas se identificam como “sem religião”, médiuns que transitam entre centros kardecistas e terreiros de Umbanda. O pertencimento aqui é mais existencial do que institucional.
A interexistencialidade, nesse sentido, não é apenas um pano de fundo ontológico da doutrina espírita, mas também uma chave para compreender as práticas e declarações dos indivíduos que dela participam. O sujeito espírita, muitas vezes, se compreende como alguém em processo — não apenas de reforma íntima, mas de construção identitária contínua — uma construção que inclui suas experiências em vidas passadas, seus compromissos no mundo espiritual e sua inserção atual na sociedade. A pergunta “qual é a sua religião?” pode parecer inadequada ou redutora para quem vive essa multiplicidade como parte constitutiva de si.
A estatística censitária, por sua natureza, busca fixar identidades em categorias bem delimitadas. Já a identidade interexistencial, por definição, resiste a esses enquadramentos, pois se reconhece como em trânsito, em expansão, em elaboração constante. Há, portanto, uma fricção metodológica entre o que o Censo tenta captar e o modo como muitos espíritas vivem e compreendem sua condição espiritual.
Reconhecer essa tensão é crucial não apenas para uma leitura mais precisa dos dados demográficos, mas também para uma reflexão mais profunda sobre a identidade religiosa contemporânea. No caso do Espiritismo, tal reconhecimento pode abrir caminho para formas mais adequadas de investigação e representação, que levem em conta não apenas a adesão institucional, mas também os modos de subjetivação e pertencimento espiritual que ultrapassam os limites de uma única existência.
Identidade interexistencial em diálogo com a teoria social contemporânea
A complexidade da identidade espírita, como se observou, não se explica apenas por fatores históricos ou institucionais. Ela se inscreve em um movimento mais amplo de transformação das formas de pertencimento religioso e identitário nas sociedades contemporâneas. A esse respeito, Stuart Hall (2006) é referência fundamental ao propor que as identidades deixaram de ser “essências” fixas para se tornarem “posições discursivas” provisórias e situadas. Em vez de um “eu” unificado e coerente, temos sujeitos fragmentados, múltiplos, em processo de constituição. A identidade, diz ele, é uma “celebração da mobilidade”, da instabilidade, da constante (re)negociação com os discursos culturais disponíveis.
No caso do Espiritismo, essa mobilidade se entrelaça com uma noção profundamente espiritual de continuidade: o eu não é apenas múltiplo em um tempo social, mas também em um tempo espiritual, que abarca diversas encarnações e compromissos invisíveis. A identidade interexistencial, portanto, amplia a noção de fluidez ao incluir a ideia de que o sujeito está em trânsito não só entre categorias sociais e culturais, mas entre vidas, experiências em planos diversos de existência e ligações com entidades desencarnadas que influenciam sua trajetória atual. A identidade não é apenas “de vir-a-ser” (becoming), como em Giddens (1991), mas também de relembrar-se (souvenir) de si, como em um espelho partido em fragmentos de vidas sucessivas.
Essa característica torna a identidade espírita simultaneamente fluida e enraizada. Anthony Giddens, ao analisar a modernidade tardia, fala do “projeto reflexivo do self”: a necessidade contemporânea de construir a identidade de forma deliberada, em meio à multiplicidade de opções e à ausência de certezas. Isso se aplica diretamente ao espiritismo moderno, onde o sujeito é chamado a um esforço contínuo de progresso espiritual, autoconhecimento, autodisciplina moral — elementos centrais à proposta de Kardec e intensamente presentes na prática cotidiana dos centros espíritas. O self espírita é, portanto, um projeto de longo prazo, estendido entre vidas, marcado por decisões éticas que o sujeito toma a partir de sua compreensão das leis espirituais.
Danièle Hervieu-Léger (1999), por sua vez, oferece uma chave valiosa para compreender o enfraquecimento das instituições religiosas clássicas e a ascensão do que ela chama de “religião como memória”. Segundo a autora, nas sociedades contemporâneas há uma perda da autoridade institucional e uma ênfase crescente na reconstrução individual da crença, sustentada por narrativas pessoais e linhagens simbólicas escolhidas. A religião, nesse novo contexto, se configura como uma “cadeia de memória” reconstruída subjetivamente. O Espiritismo encaixa-se perfeitamente nesse modelo, pois se apresenta como uma doutrina racional e autodidática, baseada na leitura, no estudo e na experiência direta do mundo espiritual. O adepto espírita muitas vezes constrói sua identidade espiritual a partir de suas próprias vivências, leituras de obras fundamentais, relatos de encarnações passadas e afinidades com determinados grupos espirituais — sem necessidade de uma filiação formal ou institucional forte.
Essa abordagem também ajuda a compreender por que tantos espíritas não se identificam como “religiosos” no sentido convencional. Eles mantêm uma relação de pertencimento simbólico, afetivo e moral com o Espiritismo, mas não necessariamente aderem a um corpo dogmático ou a uma estrutura organizacional. É, como propõe Hervieu-Léger, uma religiosidade que se ancora na biografia espiritual do indivíduo, na reconstrução da memória espiritual de si — uma experiência radicalmente interexistencial.
Adicionalmente, autores como Paul Heelas e Linda Woodhead (2005) identificaram a emergência de uma “espiritualidade subjetiva” nas sociedades ocidentais, marcada pelo foco na experiência pessoal, na autenticidade interior e na busca por conexão com o divino fora das instituições tradicionais. O Espiritismo, embora tenha aspectos organizados, participa desse movimento ao propor uma moral baseada na liberdade de consciência e na responsabilização do indivíduo diante das leis cósmico-espirituais.
Assim, ao articular a noção de identidade interexistencial com os aportes da teoria social contemporânea, é possível ampliar o entendimento do fenômeno espírita brasileiro e, ao mesmo tempo, propor uma contribuição teórica inovadora. A identidade interexistencial não apenas dialoga com a fluidez moderna — ela a transcende, ao propor uma continuidade ontológica e ética do sujeito para além do tempo linear e da experiência corporal única. Nesse sentido, os dados do Censo, ao se apoiarem exclusivamente em categorias fixas e momentâneas de identificação, não conseguem capturar a riqueza desse tipo de pertencimento espiritual que está menos ligado a uma “religião professada” e mais à consciência de si como espírito em processo de evolução.
Conclusão: uma doutrina “invisível”, mas onipresente
Retomando os apontamentos do início, apesar de apenas cerca de 2% a 3% da população se declarar espírita nos censos do IBGE, muitas crenças associadas ao espiritismo — como reencarnação, comunicação com os mortos e influência dos espíritos na vida cotidiana — estão amplamente difundidas na sociedade. A televisão e a mídia popularizaram figuras como Chico Xavier e programas que tratam de comunicação com os mortos, reforçando essas ideias mesmo entre não espíritas. Novelas, filmes e reportagens frequentemente abordam temas como reencarnação e mediunidade, normalizando esses conceitos.
A difusão dos princípios espíritas através da cultura midiática e artística permitiu que muitas ideias kardecistas (e espiritualistas em geral) se tornassem parte do imaginário coletivo brasileiro, mesmo sem uma adesão formal à doutrina.
O Espiritismo no Brasil, portanto, transcende a religião organizada e se tornou um repertório cultural compartilhado. Enquanto as religiões exigem adesão institucional, o espiritismo se espalha como uma “gramática espiritual” que muitos entendem e utilizam, mesmo sem se declararem seguidores.
Isso levanta uma questão interessante:
Será que, no futuro, o Espiritismo continuará sendo uma influência difusa, ou poderá se consolidar como uma identidade religiosa mais explícita? Ou será que sua força está justamente em não ser restrito a uma instituição, como o são os cultos religiosos, de forma geral?