No tempo das imagens dominantes, os heróis são midiáticos, ligeiros, temporais. Por isso, quando estamos diante de heróis míticos, não midiáticos, que receberam o convite, enfrentaram as provas e retornaram ao ambiente para praticar a coragem, ficamos confusos.
Eles se misturam, os midiáticos e os heróis, e apesar da predominância dos midiáticos em número e em profusão, difícil é localizar os heróis, e mais desafiador ainda é compreender o herói, na sua dupla realidade de mito e ser humano.
Vamos, pois, fazer uma viagem.
Havia grande expectativa no ar naquela tarde de domingo. Todas as providências para que a quantidade de pessoas não extrapolasse o número de lugares do auditório Bezerra de Menezes foram severamente tomadas. Por onde passava, o orador atraía muita gente e, portanto, justificava as medidas tomadas.
Divaldo chegou na hora marcada, assumiu a tribuna e fez uma alegre palestra, em lugar das famosas oratórias. Melhor dizendo, substituiu os monólogos arrebatadores por um diálogo vivo.
Os temores cessaram – nem público excessivo, apenas dirigentes convidados; nem temas genéricos, mas assuntos pontuais, do dia-a-dia dos centros espíritas. Uma troca, no melhor estilo proposto por Herculano Pires.
Pela primeira vez, vi Divaldo descontraído, em público. Um humor agradável entremeou sua fala de experiências e fatos. Ouviu, expôs, respondeu durante duas horas que pareceram minutos. Era 1972 e o local, a Federação Espírita do Estado de São Paulo, na antiga sede da Rua Maria Paula.
Depois disso, esbarramo-nos, aqui e ali, vezes inúmeras.
Seis anos mais tarde, uma entrevista.
Descemos do carro, de retorno do Aeroporto de Congonhas onde fui com o Miguel buscá-lo, por volta das 10 horas da manhã. Divaldo, atrasado por culpa do voo, pediu alguns minutos mais para se banhar.
A espaçosa sala da residência do Miguel de Jesus em Santo André reunia, além do casal anfitrião, eu, Raymundo Espelho e Wilson Francisco. A amenidade das conversas ajudou a passar o tempo, mas não aplacou a ansiedade pelos compromissos que nos esperavam ainda, naquele dia.
Pouco mais de trinta minutos depois, Divaldo surgiu no ambiente com toda a tranquilidade baiana, caminhou em nossa direção e sem mais rodeios afirmou:
– Cairbar Schutel está me dizendo que apoia ao trabalho de vocês. Ele tem muito interesse no progresso do Correio Fraterno do ABC e da editora. Diz que tudo vai dar certo.
Surpreendeu-me, não a revelação, mas o fato de vir pela boca do Divaldo Franco. Alguns meses antes, tínhamos recebido a mesma informação, também de modo espontâneo, por outro médium e, curiosamente, então, estávamos ao lado do leito de um dos nossos companheiros, ali presente, que convalescia de uma doença. Sentado e conversando, de repente o médium-visitante silencia, seu olhar se dirige a um ponto qualquer do quarto e ele diz:
– Tem um espírito aqui dizendo que o trabalho de vocês vai dar certo e que devem seguir em frente com confiança.
Espíritos e médiuns diferentes, afirmações semelhantes.
Gravadores ligados, iniciamos a entrevista com a franqueza combinada e aceita pelo tribuno.
– Divaldo, reclamam muito que seu texto mediúnico é difícil de entender, você concorda?
– Herculano Pires apontou plágios seus, como responde a isso?
– Dizem que você faz suas oratórias públicas mediunizado, é verdade?
– Qual é a sua opinião sobre Roustaing e o corpo fluídico?
As questões seguiram por esse caminho pontuado de conflitos e temas mais gerais. Divaldo respondeu uma por uma as perguntas, sem nunca se alterar, mesmo quando os assuntos resvalavam pelos aspectos morais ou pessoais, ou diziam respeito a temas doutrinários controversos.
É difícil entrevistar Divaldo e arrancar dele respostas em linguagem coloquial. Pior ainda é ler entrevistas de Divaldo com perguntas prontas e respostas dadas por escrito. A linguagem aí costuma reproduzir o tom extremamente formal do indivíduo preocupado muito mais em ser cuidadoso que objetivo e espontâneo. Jornalista não gosta disso, não.
Nas duas ocasiões citadas, Divaldo esteve menos preso, por isso, mais leve.
Em 1986, Divaldo é o orador da cerimônia de abertura do IX Congresso Brasileiro de Jornalistas e Escritores Espíritas. Combinamos com ele, dois anos antes, a data e o tema. E mantivemos contato permanente, até o evento.
O auditório do Centro de Convenções Rebouças, em São Paulo, está repleto. Divaldo chega acompanhado de Miguel de Jesus e se junta a mim e ao Francisco Thiesen, então presidente da FEB, para um café.
Noto um Divaldo preocupado, que não demora a revelar sua estranheza com o tema da palestra. Diz ter preparado outro assunto.
– O tema foi objeto de nossas correspondências – digo-lhe, na tentativa de fazê-lo recordar-se. – Fique, no entanto, à vontade – tranquilizo-o.
Ao assumir a tribuna, Divaldo utiliza apenas os primeiros quinze minutos para tratar do tema anunciado: a figura admirável de Cairbar Schutel. A memória não o levou mais longe. Em seguida, passa, em seu estilo eloquente, ao assunto para o qual se havia preparado.
Tempos depois, revejo-o em São José do Rio Preto, no Entrade, Encontro de Trabalhadores e Dirigentes Espíritas promovido pelo Grupo Espírita Bezerra de Menezes, então, uma instituição sem vínculos federativos.
Divaldo se encanta com um jovem palestrante que o antecede e confidencia-me:
– Como ele é tranquilo ao falar em público. Acho admirável isso, eu não consigo ser assim.
Surpresa?
Todo ser humano tem duas faces visíveis: a da realidade, um pouco mais restrita, e a da imagem, mais desafiadora. A primeira, acessível a poucos, a segunda, escondendo mais do que mostrando, ao contrário do que muitos imaginam.
É impossível evitar a construção do mito naqueles que alcançam projeção social por seus feitos e tão impossível quanto compreender o cotidiano do homem mitificado através apenas de sua imagem.
Os mitos midiáticos são diferentes; nascem sem raízes.
Aécio, amigo de juventude e quase materialista, interpelou-me, certa vez, em tom crítico, sobre a rotulação excessiva do médium Chico Xavier. Referia-se ao mito em construção, mas estava incomodado com a imagem.
Os espinhos da realidade, por entre os quais todos, muito ou pouco, caminham, parecem ferir menos quando dialogamos com o mito ou com a imagem, pois mito e imagem, por sua natureza, distanciam-nos momentaneamente da realidade para nos acomodar no terreno do sonho, das expectativas e das possibilidades.
O homem se faz médium; os homens constroem o mito. A vida os acolhe.