A discussão cansa alguns, demanda outros e é desconsiderada pelos que já estão consolidados em suas crenças. No entanto, prossegue para além das palavras ou por causa delas. Sentimentos, emoções, racionalidade; há muita coisa em jogo.
A discussão sobre ser ou não o espiritismo religião é ineficaz ou dispensável? Kardec não pensou assim ao ser solicitado a entrar nela logo que a então novel doutrina que ofereceu ao mundo despertou atenção. Não foi ele que tomou a iniciativa de esclarecer sua posição; foram os reclamos e as tendências que o levaram à arena dos debates, pouco importa, neste particular, o contexto positivista da época e as repercussões profundas da secularização. A verdade é que a discussão perdura até nossos até nossos dias com semelhantes consequências e muitas outras de caráter científico, filosófico etc.: não foi e não será concluída, por não ser este o seu objetivo primordial.
E qual é este objetivo? Manter acesa a chama da busca pela verdade.
Seria ingênuo, como ingênuos são os argumentos que se valem da alegação de desnecessidade da discussão ou de que ela gera apenas perda de tempo, para se oporem àqueles que se mantêm na arena do debate. Afinal, não se está numa disputa da qual sairá um vencedor e um perdedor. A verdade não pertence a ninguém e a nenhuma instituição. Sendo ela o objetivo final, a todos beneficiará quando de fato despontar como bandeira tremulante no cume do mastro. Será esta verdade uma utopia? Se o for, está aí o seu maior atrativo a nos convidar à permanente reflexão.
Dentre os que se interessam pelo tema, alguns há que postulam uma prévia definição conceitual sobre que religião estamos falando, com o propósito de aclarar o objeto a fim de que o embate fique mais bem situado. A questão, porém, não passa por aí, pois este é um campo de tergiversação destinado a postergar indefinidamente o assunto. De que religião se trata está definido previamente por Allan Kardec desde a primeira vez em que cuidou do tema, ao seu discurso derradeiro na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, a SPEE.
Este é o primeiro caminho da Hécate espírita: Kardec postula a impossibilidade de atribuir ao termo Religião outro sentido que não aquele consagrado pelo significado, o qual descreve muito bem ao relacionar-lhe os atributos, que não passam apenas pela crença dogmática, pelos ritos, mas também pelo sistema heterogêneo que dita destinos e consequências e se impõe como verdade suprema. Dissesse tal coisa hoje e não estaria cometendo nenhuma inconfidência ou infidelidade, pois tanto ao seu tempo como na atualidade o sentido do termo Religião se mantém, talvez, até, com alguns atributos novos hoje advindos da escancarada forma de mercantilizar a religião e o sentimento religioso. O poder, outro dos atributos pelo qual a religião se faz hegemônica, está, também, entre os apontamentos de Kardec.
O segundo caminho da nossa Hécate é aquele preferido pelas lideranças espíritas encasteladas na crença de que o espiritismo tem na religião o seu terceiro aspecto, escondendo os argumentos de Kardec com o discurso de que a indefesa religião espírita não possui dogmas, ritos, estrutura patriarcal etc., o que – pensam, equivocadamente – lhe confere o direito de se colocar como tal, esquecidas de que não há esforços capazes de lograr que a massa humana compreenda essa circunstância em sua amplitude. Kardec continua bradando do alto dos seus mais de 160 anos a impossibilidade disso. E a prova está em como lideranças pouco aprofundadas nos conceitos espíritas e a maioria daqueles que se manifestam sobre o espiritismo na imprensa ou nas redes sociais divulga uma doutrina profundamente ligada ao conceito tradicional de Religião, presas que estão aos seus significados culturalmente herdados. Quando sabem que o espiritismo não é essa religião desgastada, não lhes ocorre capacidade de reinterpretá-lo com o devido rigor.
E qual seria o terceiro caminho da Hécate espírita?
O movimento espírita está dividido e o campo minado, mas a batalha não está perdida. O general da guerra em sua farda verde-oliva alcançou os seus dois primeiros objetivos, quais sejam, dividir e tornar o terreno perigoso de maneira a sitiar o adversário, senão para vencê-lo, certamente para imobilizá-lo, sabedor de que retendo-o ali indefinidamente acabará por extinguir suas forças. Este general é apto às táticas e estratégias militares, mas relega o fato de que a verdade é inaprisionável, visto constituir o apanágio dos homens livres pelo pensamento e corajosos pela bravia do espírito. São eles verdadeiros guerrilheiros do bem, aparecendo de surpresa aqui e acolá, afugentando o silêncio da covardia e fazendo brilhar a chama da verdade. Eis aí o terceiro caminho.
As Ciências da Religião, por exemplo, poderão em algum tempo ajudar a resolver a ânsia de conhecimento do ser humano nesse campo, com a racionalidade do pensamento atuando de forma metodológica. Isso é uma coisa. Quanto ao fato de ser ou não o espiritismo religião, Kardec foi claro ao conceituar o termo e determinar que a doutrina que legou jamais poderia se tornar uma. Não há, portanto, porque falar do espiritismo como uma religião do futuro ou de qualquer tempo que seja, sem contrariar os seus postulados. Desejar consagrá-lo Religião não passa de um atavismo cultural de quem não consegue se libertar do passado dogmático.
Como Hécate, a Doutrina Espírita nasce com uma face e posteriormente se transforma numa tríade.
Provavelmente, até a deusa grega foi tervergisada por nós “mortais” que não conseguimos entender a verdade mais simplesmente.
” Os Caminhos de Hécate “, se não me falha a memória é o título de uma obra literária de juventude de José Herculano Pires. Pois bem, Religião: ” Religare ” não no conceito das antigas Religiões e com todo o seu aparato tradicional. Mas em um novo sentido, mais simples, o de religar o Homem a DEUS. O que sempre ficou claro nas Palestras de Heloísa Pires: ” Doutrina de tríplice aspecto: Ciência, Filosofia e Religião “.
O Conhecimento Racional e o Intuitivo vão se tornando mais complexos e necessários com a Evolução do Homem. Herculano Pires usava com grande brilho o princípio hegeliano da Dialética, que me parece dos mais eficazes e mais inclusivos. A História do Homem é uma Espiral. Determinados conhecimentos são abandonados, mas depois retomados – ou com nova vestimenta ou em maior profundidade. Existem porém determinados postulados necessários a uma Metodologia do Conhecimento. E por sua vez o Espiritismo abriu enormes portas para o aperfeiçoamento desta mesma Metodologia Científica, sendo a Doutrina Espírita a mais global, ao iluminar todo o Conjunto do Conhecimento.
Todos nós temos alimentado no inconsciente o arquétipo da Religião. Porque, assim como todas as manifestações do pensamento: as crenças, a cultura, as artes, as comunicações, as ciências e as filosofias, a religião é um processo de construção individual, construção que compartilhamos com outros indivíduos em processos de interação, consoante às Leis de Sociedade e concomitante à escala espiritual na qual os respectivos elos se identificam pelas analogias do conhecimento. No entanto, como soe acontecer na escala infinita consoante a Lei do Progresso, sem que o percebamos, estamos a todos os instantes deixando esferas inferiores e adentrando esferas superiores de desenvolvimentos. É natural, portanto, que as crenças que outrora nos foram importantes hoje não mais o são. Logo, assim como tudo o mais na Vida, religião tem prazo de validade. Para indivíduos que já atingiram certos patamares ela não tem mais sentido. Ela já se lhes extinguiu na memória, inumadas nas profundezas do subconsciente. Eles já não mais consideram o Espiritismo uma religião, o tríplice aspecto desapareceu por completo, para eles o Espiritismo é única e fundamentalmente Ciência, não no sentido vulgar de ciência, e sim no de Eterna Episteme do Universo. É o meu caso.