Sérgio, o meu inquisidor paulista, às vezes aproveitador contumaz das fraquezas humanas embora, ele próprio, de coração bom, toma o ano de 2014 para questionar – ou melhor, confirmar sua opinião – de que, quer queira, quer não, o Espiritismo tornou-se uma religião cristã a caminho de uma equiparação com os evangélicos e os católicos. E para justificar sua visão, diz-me aos ouvidos que tudo no movimento espírita está centrado na figura de Jesus e, se quisermos comprovar, até mesmo a música que se diz espírita, afirma ele, não passa de uma caricatura da música Gospel.
Como se não bastasse ter de aguentar o Sérgio, meu amigo da onça de outras existências muitas, tive que ouvir exatamente o inverso, ontem, de um amigo pernambucano, o Veríssimo. Ligou-me e durante uns bons minutos dos mais de oitenta que passamos no celular ficou ele me questionando porque sou contra o Cristo no Espiritismo. Pode, isso? Diz ele que nunca me viu falar em Jesus e que precisamos colocar Jesus na pauta, pois o Espiritismo privilegia o sentimento e sem Jesus não há sentimento.
A todos os que me questionam, dou a mesma resposta: minha posição no assunto é haurida na fonte piresniana: o Espiritismo não é, isoladamente, filosofia, ciência ou religião, mas um conjunto em que os três aspectos se firmam e se conjugam, formando um sistema de partes integrantes e inseparáveis. Não faz sentido, portanto, pensar o Espiritismo como uma filosofia separada dos outros dois aspectos, como não faz sentido também pensar o Espiritismo como uma religião que se sustenta por si mesma, à parte dos dois outros aspectos. E mais: não se pode pensar em religião sem ter bem claro que o conceito de religião no Espiritismo é outro, distante, muitíssimo distante, das práticas e dos comportamentos tradicionais. Falando claramente, o Espiritismo promove a ressignificação do sentimento religioso.
Se me refiro a Herculano Pires, devo trazer para o debate sua noção de virilidade como virtude do espírito evoluído, virilidade no sentido de força, energia, disposição e capacidade de julgar com justiça e liberdade. O ser viril de Herculano não se coaduna com o ser frágil que por temores incutidos por uma cultura religiosa tradicional se deixa prender às práticas e aos comportamentos que outra coisa não são que a repetição de um passado que o Espiritismo supera.
Meu amigo Veríssimo no seu preconceito não entende que alguém possa admirar o Cristo sem precisar estar se referindo a ele constantemente, pois, no cotidiano de Veríssimo o Cristo é reverenciado desde a primeira hora do dia à última, de forma expressa e cabal. Mas é para isso que Herculano chama a atenção, ao referir-se aos espíritas de sacristia como almas frágeis, ainda presas às práticas exteriores e aos temores. Herculano privilegia o Cristo da conversa com a samaritana junto ao poço de Jacó, que aponta para o futuro quando Deus será adorado em espírito e verdade, ou seja, no silêncio da intimidade e no exercício pleno do amor.
Tenho que dar razão ao Sérgio quando me diz que 2014 tende a aumentar o apelo ao nome de Jesus, uma vez que o ano traz a marca do sesquicentenário do “Evangelho segundo o Espiritismo”. Tudo caminha para uma centralidade – diz ele – na representação e não na análise criteriosa da mensagem do Cristo com base na relação do “Evangelho segundo o Espiritismo” com as demais obras da codificação, como quer Herculano.
A exacerbação do sentimentalismo contradiz com o sentimento sereno. A Coca-Cola é consumida muito mais pelo excesso de mensagens do que por suas propriedades alimentares. Uma excessiva campanha em cima do nome de Jesus sem a contraparte da racionalidade oferecida por Kardec tende a refletir-se numa confusão sem proveito para o crescimento do espírito.
Kardec é razão, diz Herculano, na certeza de estar referindo-se ao fato de que o amor, na sua expressão maior, é a síntese e o suporte da ciência, da filosofia e da religião. Os três aspectos em seu conjunto e não isoladamente.
Sugiro ao diletíssimo Veríssimo para convidar o Wilson Garcia a proferir uma palestra a respeito do Mestre Jesus e ficará positivamente surpreso com a abordagem coerente com os princípios espíritas, exalando a coerência doutrinária (pois quantos atos e pensamentos impuros tem sido externados por defensores da pureza doutrinária), apresentando um Jesus ao nível de entendimento apresentado pelo Espírito protetor, no Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. XIX, item 12, com o título “A Fé Humana e a Divina”, quando, com muita propriedade, afirma: “Até o presente, a fé não foi compreendida senão pelo lado religioso, porque o Cristo a exaltou como poderosa alavanca e porque o tem considerado apenas como chefe de uma religião.” O incrível é que ele inicia o parágrafo afirmando “Até o presente”, e aí vale salientar que esse presente era o ano de 1863, data de assinatura da mensagem; quando em verdade, pelas posturas do movimento espírita em sua relevante maioria, continuamos dando provas de que nosso entendimento ainda continua o mesmo, ou seja, restringindo o pensamento pensamento espírita a respeito da edificação da fé apenas pelo lado religioso e, o que é mais grave, considerando o Cristo apenas como um chefe de uma religião, quando, na coerente colocação do nosso querido Hermínio C. Miranda, em uma obra que precisa ser estudada por todos nós espíritas, “O Cristo não fundou nenhuma religião, mas uma conduta de vida que cabe em qualquer religião digna”. Relembro que “Viver Kardec não é estacionarmos nos graníticos alicerces da doutrina espírita, mas crescermos embasados neles”.
Ante o exposto, amigo Veríssimo, convide o Wilson Garcia, como eu fiz.
Que Jesus continue a lhes amparar os nobres e dignificantes propósitos.
Um abraço a todos
Francisco de Assis S. Rodrigues
Recife, 03 de janeiro de 2014.
Caríssimo Francisco, abraço grande.
Caro amigo Wilson, compartilho com você essa preocupação com o excesso de religiosidade e de veneração a Jesus de Nazaré (prefiro Jesus, o homem do que Cristo, o ungido). Creio que deva ter sido em outra encarnação, uma pessoa muito religiosa que não gostou dos resultados produzidos.
Essa disseminação religiosa leva, por um lado, a uma penetração maior, todavia, com o ônus de sacrificar o estudo e a melhor compreensão da doutrina. Sempre que se consegue difundir uma ideia ou filosofia, perde-se em profundidade. Aí me preocupo: que tipo de espírita estamos formando? Com bom sentimentos?
Tenho visto por aí um cegueira total aos novos médiuns que trazem grandes e novas revelações e esses espírita parecem mais influenciados por elas. Eles olham o bom sentimento. Se o espírito diz que em nome do amor precisamos ser mais flexíveis com os princípios da doutrina, eles concordam de imediato.