O sebo está no fim. O bom e velho sebo.
Não importa se vai demorar pra acabar, se não verei seu fim nesta presente “encadernação” ou na próxima. Penso que verei, no intervalo do próximo capítulo ou no seguinte. E isso me traz uma imensa tristeza, daquelas que não há como transferir nem mostrar.
O sebo é a sujeira da cultura, o que sobra do desprezo e o que já foi abusado. Mas, ainda assim, conhecimento em acúmulo, sobreposto, empilhado, jogado, humilhado e exaltado. É o estado da arte do passado que cheira mal e ainda assim atraente como a beleza feminina.
É a sorte de quem não tem, a salvação de quem já teve e o alívio de quem procura pela pérola impercebida, que de tanto passar de mão em mão se tornou a bola de gude que ninguém dá mais valor, aquela que procurava a burca para alegrar a criançada. “Bola ou burca”, gritava o parceiro; ganhou a primeira.
O sebo é o ponto de encontro da saudade e a esperança última de quem procura a obra rara. Foi passeando por um dos mais famosos da capital paulista que encontrei Oscar Wilde e Flamarion reencarnados na extrema pobreza de um canto onde baratas e traças caminhavam rebolando.
Olhei-os e me olharam. Vi no seu rosto encoberto por uma grossa camada de gordura o olhar piedoso de quem se desculpa com a divindade e pede clemência ao leitor desbaratinado que eu era. Fingi enamorar-me daqueles rostos maltratados, rotos, com cara de livro emprestado que jamais retornou ao seu legítimo dono.
Chamei o moço do balcão e pedi os livros, sem sequer perguntar o preço, que seria tremenda indignidade. Afinal, era tal o descaso com os volumes que ninguém, de bom senso, poderia imaginar que aquilo ali custasse alguma coisa muito preciosa.
Ele colocou os livros numa sacola plástica de segunda mão e me cobrou algo tão irrisório que tive pena de Flamarion e Wilde, mas aquilo me deixou tão indignado que resolvi valorizá-los como ninguém. Afinal, quem eram essas pessoas que os desprezavam depois de tanta luta para se fazerem importantes.
De Flamarion, uma edição portuguesa do século XX, em que o nosso conhecido astrônomo fala pra iniciantes, numa época em que a astronomia era quase desconhecida e ele, o autor, tinha lá seus interesses com os livros de Kardec.
Com Wilde foi diferente. Este me tocou. Sabe aqueles casamentos de conveniência que acabam dando certo? Foi o meu com Wilde. Encantei-me. Acho que por conta, em parte, de um trauma da juventude. Li-o, numa edição horrível do Clube do Livro dos anos sessenta, em papel jornal, sem nenhuma identidade com aquele autor pleno de ironias e imagens notórias, que retratava a sociedade inglesa com todo o despudor possível.
O mais incrível foi descobrir que Wilde, antes de escrever, tomara contato com as notícias do “new spiritualisme” e, em cima disso, escreveu duas novelas interessantíssimas. A primeira delas, o adorável fantasma de Canterville, aquele da mansão alugada pelo diplomata americano cético, que se viu, com sua família, enlaçado em tramas engraçadíssimas. Esse fantasma!
Vinguei-me do antigo tradutor brasileiro. Traduzi a novela e pus Wilde novamente em cena e vi quanto ele sorriu ao perceber que percebi que ele percebera o espiritualismo em voga. Não satisfeito, traduzi também a novela do Lorde Arthur Saville, onde um extraordinário quiromante está no centro de uma trama notável. Vale a pena ler, ah se vale.
Mas, retornando ao assunto do fim do sebo, quero dizer que os sebos, como tudo o mais, se tornaram virtuais. Hoje, você compra livros sujos, rotos, rasgados, sem sair de casa. Não precisa sujar as mãos, se abaixar, misturar-se às baratas e traças, nem regatear o preço. Basta acionar a tecla enter.
Sabe aquela aura do livro raro, aquele prazer de ficar ali, conversando sobre o valor espiritual do livro? Foi-se, não existe mais. Já não há mais o balconista com ar de sapiente, a contar histórias inventadas sobre a origem da edição rara e a falar daqueles escritores conhecidos que frequentam o sebo todo dia, garantindo que as obras valiam o que pediam.
Tá bom, vá lá. Sou saudosista! Mas e você, tem histórias tão gostosas pra contar?