Sérgio, esse carioca apaulistado culturalmente, tornou-se minha consciência dupla. Volta e meia me cutuca com questões das quais procuro me afastar, pelo menos em termos temporais.
Ontem, já tarde da noite e eu caindo de sono, ele saiu com esta: afinal, qual é sua religião? E sabendo que eu estava pra desligar o Skype, colocou um rock pauleira no fundo, invadindo meus tímpanos já enfraquecidos pelos anos.
Resolvi dar o troco. Liguei a tecla record do meu note e desandei a falar o que me veio na cabeça, mas não sem antes “exigir” que me ouvisse até o final. O que falei? Aí vai, com todas as vírgulas que o verbo sonoro não registra.
Você quer saber qual é a minha religião? Ah você quer que eu afirme que não tenho religião, é isso? Não vou cair nessa, não. Outro dia você colocou a questão da crença, agora quer meu conceito religioso. Eu lhe pergunto: existe diferença?
Não vou esperar pela sua resposta, que sei será evasiva. Sempre que eu contra pergunto você escapa pela tangente. Então, meu amigo, a resposta já está dada e está dada quando lhe disse, com ênfase: não há indivíduo descrente. Balela! A descrença é a palavra que esconde a crença, escapismo puro.
O sujeito acredita no nada e diz que não acredita em Deus. Acredita nas forças cegas da natureza e diz que descrê dos espíritos. Ora, ora, somos todos crentes em alguma coisa. Por que? Simplesmente porque se o indivíduo não crê, não age. É da crença que nasce a ação e não do vazio subterrâneo do suposto não crer.
Está me ouvindo, Sérgio? Você acha que estou falando só de Sociologia? De Psicologia? Estou falando do bom senso, amigo. A crença permeia o ser desde os tempos mais longínquos e é ela o ponto de partida da sua luta pela conquista da natureza.
Dá-se nome às crenças, dizemos crença nisso, crença naquilo. Observe bem, só o qualificativo muda, o substantivo permanece, o que significa ser a crença o alimento do sonho, da fantasia e da ilusão. E os sociólogos dirão que é também base para os laços sociais.
E o que é a crença senão o sentimento de religiosidade, daquilo que permite significar e ressignificar a vida? O indivíduo muda de crença e o seu sentimento de religiosidade adquire outra conotação. Isso é da natureza das culturas, do fato de serem mutáveis pelos contatos e pela dinâmica da vida.
Sou um sujeito de crença, Sérgio, e desconheço o que seja descrença como antônimo. Se deixo de crer em alguma coisa é porque passei a crer em outra. Não virei descrente, apenas substitui uma crença por outra, não importa as razões. Todos têm alguma.
Toda vez que perco a confiança num político, perco a minha capacidade de crer na capacidade de ele realizar meus sonhos sociais. Sem poder eliminar o substantivo, elimino o qualificativo que me incomoda. E sigo com os meus sonhos.
Lembra-se do pobre Augusto Comte? Incapaz de encontrar um antídoto às crenças, tentou uma religião meio às avessas. Queria substituir as crenças que a secularização imaginava ter sepultado por outra, o que não deixa de ser um paradoxo curioso. Tremeu ante a possibilidade de matar a árvore extirpando-lhe a raiz.
Você não compreendeu, ainda? Ora, Sérgio, não se faça de tolo. Dê à minha religião o nome que quiser, ou não dê nome algum. Diga apenas que eu não sei o nome, já que hoje não me persigno nas igrejas, não faço rogativas a santos nem promessas para conseguir graças.
Sou um tipo de religioso estranho à sociedade normatizada e polida. Acredito na imortalidade, na individualidade e no progresso contínuo, achando extremamente válido reencarnar, esse negócio de nascer e renascer sempre. E acredito, também, que as individualidades imortais, presas a um corpo denso ou livres dele, estão em permanente relação comunicativa.
Percebeu, amigo, que minha visão de sociedade mudou e contém em seu bojo uma outra dimensão, o que redimensiona as minhas crenças?
Ah, você ficou preocupado com o que eu vou dizer ao entrevistador do IBGE. Ora, se o encontrar por uma única vez antes de morrer e levando em consideração a insignificância da minha opinião, direi: ei, amigo, tem aí no seu formulário um item para religião sem nome? Então, bote espírita mesmo e vamos em frente, que eu não vou negar à doutrina que me ajudou a rever minhas crenças o meu imorredouro reconhecimento.
Ei, Sérgio, está me ouvindo? …