Codificador, autor, criador e até mesmo inventor são alguns dos termos utilizados para designar a relação de Allan Kardec com a Doutrina Espírita. Às vezes em tom de crítica à popularização do adjetivo codificador, que sem dúvida encontrou espaço maior no campo do movimento, às vezes por conta de estudos sérios que buscam compreender a doutrina lançada a público a partir de 1857, na França.
O mineiro Augusto Araújo tem debatido pelas listas da Cepa este e outros temas vinculados aos seus interesses de estudo, enquanto produz sua tese de doutoramento baseada “na leitura e interpretação da obra de Allan Kardec”1. Tem ele reiterado em algumas oportunidades não ser adepto do espiritismo, mas suas intervenções têm revelado sempre respeito e admiração e recebido por parte dos listeiros grande atenção e interesse, além do espaço de discussão bastante profícuo.
No texto que fez publicar no jornal Opinião abaixo mencionado, Araújo expõe suas razões histórico-metodológicas pelas quais entende ser Allan Kardec o autor da doutrina dos espíritos, preferindo este termo aos demais. Baseia-se num raciocínio lógico em que compara as produções filosóficas atribuídas aos pré-socráticos e aquela realizada por Allan Kardec no século XIX. Lamenta o desaparecimento das fontes utilizadas por Kardec (as comunicações dos espíritos), razão pela qual se sente impedido de reconhecer a face “científica” do espiritismo. Ou seja, já não se tem mais condições de analisar comparativamente o pensamento dos autores espirituais e o de Kardec no seu trabalho de produção da doutrina.
Por mais que os espíritas profundamente ciosos de suas crenças justifiquem a pouca importância que atribuem a isso, na opinião de que o conhecimento que a doutrina oferece tem valor maior, afirmando mesmo às vezes que é o que interessa, não se pode negar os fatos. Isso não diminui o valor do espiritismo, absolutamente, mas a lacuna deixada pelo desaparecimento das fontes primárias impede um trabalho mais amplo de análise comparativa. O caminho aí, portanto, embora não estacione, bifurca-se.
A questão da codificação-autoria levantada por Araújo permite outros raciocínios. O termo “codificador”, bastante criticado por alguns, não está em oposição ao que se conhece em comunicação na contemporaneidade. O termo sofreu desgastes, é verdade, com seu uso generalizado por incorporar outras significações, como, por exemplo, a idéia implícita de que o codificador foi apenas um ordenador cuja participação não passou deste limite, o que conferiria maior autoridade às mensagens originais e colocaria Kardec no papel de intermediário isento.
Em sua significação semântica o termo codificar é empregado para designar a ação de produzir mensagem através do código lingüístico que deverá ser “decodificado” pelo destinatário. Em princípio, todo emissor é um codificador e todo destinatário é um decodificador. Mas a idéia de uma comunicação circular nos leva a compreensão de que emissor e destinatário se alternam nestas duas posições, ou seja, Kardec foi decodificador quando estudou as mensagens e codificador quando as ordenou. Nesse processo, evidentemente, sua intervenção deixou as marcas da sua individualidade mostradas pelas evidências.
Assim, Kardec terá sido um codificador ativo, participante e, como é consenso entre os espíritas, autorizado pelas fontes. Se na ausência dos documentos originais contendo as mensagens se afirmará que ele, Kardec, é o autor, para os espíritas deverá ser visto como co-autor, ou seja, o material fornecido pelas fontes espirituais recebeu a impressão do pensamento de Kardec.
Mesmo que Kardec tivesse sido uma espécie de coordenador passivo, ainda assim suas marcas estariam presentes no produto final, porque selecionar e ordenar o material implica em tomar decisões e fazer opções, incluir e excluir, dar voz e retirar a voz, o que, em última palavra, significa participar do e definir o produto final.
Kardec, porém, foi muito além disso. Foi também intérprete das vozes espirituais, liderou um processo, produziu questionamentos, direcionou temas, solucionou contradições, superou dilemas, concordou e discordou até chegar a um ponto consensual com as fontes espirituais.
Talvez aqui devamos tocar na transcrição que Araújo faz de um dos diversos trechos em que Kardec fala sobre a sua participação na obra doutrinária, texto que serve a Araújo para reforçar sua convicção sobre a posição autoral de Kardec. Ei-lo.
“Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas, e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, entregue à publicidade em 18 de abril de 1857.”
Araújo questiona o emprego do verbo “retocar” como tradução do francês “remanier”, entendendo que maior precisão haveria se fosse usado o verbo reparar, modificar ou refazer. Apesar das justificativas etimológicas oferecidas por Araújo, parece-me que em nenhum desses casos, ou seja, o emprego de qualquer dos verbos sugeridos ou a manutenção do verbo escolhido pelo tradutor não resolveria a questão da intencionalidade de Kardec.
Não há como dimensionar a ação de Kardec em relação às mensagens por ele comparadas e fundidas, senão especular. Aqui, com certeza, o desaparecimento dos originais se torna mais significativo do ponto de vista do interesse do pesquisador, ao impossibilitar qualquer avanço no desejado estudo comparativo.
O que significa, de fato, comparar, fundir e retocar “no silêncio da meditação”? Qual é a extensão disso em relação às idéias e respostas dadas pelos autores espirituais? A declaração de Kardec tem o objetivo simples de chamar para si a responsabilidade do produto final ou vai além? Qualquer resposta objetiva aqui será mera conjectura.
Estou curioso com a tese que o Augusto Araújo está produzindo e pelo que tenho acompanhado deverá apresentar boa contribuição à compreensão do espiritismo. Da mesma forma, estou convicto de que a questão codificador-autor deveria ser vista com mais naturalidade, na perspectiva de que como codificador é também co-autor e como co-autor é ainda assim o codificador de uma mensagem tão complexa quanto extraordinária.
1 Jornal Opinião, p4, Porto Alegre, julho de 2010.