O amigo Salomão Benchaya, de Porto Alegre, com seu artigo “Questão da prece” (texto abaixo) abre espaço para importante crítica da prece, ou seja, para ampla reflexão a respeito deste tema que tem movimentado os meios espíritas desde Kardec. Benchaya aponta para diversos problemas e faz algumas afirmações contundentes, a principal delas: “O Deus da primeira pergunta do LE não é o mesmo Deus referido no restante da codificação”.

Salomão exagerou? Sem dúvida.

Com o espiritismo, a prece deixou de ser uma simples questão de fé e mudou-se para o campo da razão, constituindo-se, pois, um objeto de conhecimento. A prece e tudo o mais que antes pertencia ao domínio da religião. Daí porque deve e pode ser discutida, analisada e aprofundada em seu conteúdo, como o faz o Benchaya. Todavia, trata-se de um tema muito mais complexo do que se imagina à primeira vista, porque envolve uma gama enorme de sub-questões que não podem ser negligenciadas.

Vamos, todavia, neste primeiro momento centrar nosso foco na afirmação de que o Deus da primeira questão de O livro dos espíritos chegou esgarçado ao final da codificação. É preciso recordar que Benchaya parte para esta conclusão após entender que Kardec apresenta em muitas partes da codificação um Deus teísta, enquanto que a primeira questão do Livro dos espíritos nos mostra um Deus deísta. Sim, no espiritismo, o Deísmo tem supremacia sobre o Teísmo, porquanto o primeiro insere a razão como proposta de conhecimento, enquanto que o segundo permanece no campo da crença que prescinde da razão.

Assim, o que explicaria o desvio em relação, por exemplo, à prece é que esta é tratada ao longo de toda a codificação, mas especialmente no Evangelho segundo o espiritismo com base na crença em um Deus teísta, contrapondo-se ao Deus deísta do início. Estamos, assim, diante de uma contradição terrível que, se comprovada, desqualifica a obra por inteiro.

O que leva Bencha­­ya ao ponto mais crítico de suas reflexões é o estudo da prece. Quando sai do Livro dos espíritos e entra no Evangelho segundo o espiritismo, Benchaya se depara com informações sobre a prece que, segundo ele, estão embasadas no significado teísta e não no deísta. Por isso, vamos tomar a questão e discuti-la a partir do início do raciocínio do autor sobre a prece, sabendo-se, de antemão, que ele assim o faz como forma de responder àqueles que criticam os espíritas laicos por não empregarem a prece na “abertura e no encerramento das suas reuniões”.

Inicialmente, Benchaya define a prece como um “meio de comunicação”. Há aqui um evidente equívoco. Algumas traduções dizem assim: “A prece é uma invocação, mediante a qual o homem entra, pelo pensamento, em comunicação com o ser a quem se dirige”. Ou seja, o meio de comunicação não é a prece, mas o pensamento. A prece é a forma, o modo ou o repertório simbólico empregado para comunicar. Na tradução do mesmo item, Herculano Pires não usa o termo comunicação. Vejamos: “A prece é uma invocação: por ela nos pomos em relação mental com o ser a que nos dirigimos”.

A seguir, Benchaya reconhece que a prece “possui função terapêutica indiscutível”, de maneira a deixar claro que não é contrário a ela, para então justificar: “A prece tornou-se, em grande número de Centros Espíritas, um ato mecânico e ritualístico. Há uma crendice de que sem prece proferida ao início e ao término das reuniões, não há a assistência dos bons espíritos”. Refere-se ele especialmente às reuniões públicas, pois entende que nas reuniões mediúnicas “a prece serve de auxílio no propósito de sintonização com os espíritos”. Tem razão. Ao instituir-se o emprego da prece nessas condições, determinou-se um rito que, em si, não seria mal se não propiciasse o ato mecânico, formal, de proferi-la apenas para cumprir o rito, ou, também, não conduzisse aos excessos facilmente verificáveis: há multiplicidade de preces e preces que são verdadeiras palestras, intermináveis e repletas de encenações teatrais. O ato simples e espontâneo dá lugar ao de significado duvidoso. Quanto a crer que esse tipo de prece é necessário para atrair os bons espíritos é o resultado do fraco entendimento doutrinário. Além do mais, isso revela uma dependência da prece de tal ordem que o indivíduo se deixa prender pelo medo de possíveis e desagradáveis consequências, caso não a faça.

Benchaya se preocupa com questões diversas e revela que “chegam a ser inconvenientes preces feitas por espíritas em solenidades levadas a efeito em órgãos públicos com a presença de pessoas de diversas religiões ou sem religião”. Mais uma vez, tem razão. E poderia ter multiplicado os exemplos, tais como: preces em locais onde se vai realizar trabalhos de comunicação, como tvs e emissoras de rádio, em praças públicas, onde acontecem feiras de livros, em eventos acadêmicos nos chamados atos ecumênicos, em manifestações de rua (antes e ao fim do ato), etc. Ou seja, generalizou-se a ideia de que onde quer que o espírita seja chamado a se manifestar deve recorrer à prece, seja por dever, seja para demonstrar a sua crença, seja até – em declarada manifestação de orgulho –  para demonstrar uma pretenciosa superioridade doutrinária sobre as demais crenças.

Ao analisar um tipo de prece conhecido nos meios espíritas por vibrações, muito praticadas, durante as quais se fazem apelos a Deus e aos espíritos por coisas como a paz mundial, a cura de doenças, etc., Benchaya afirma também de forma contundente: “terceirizamos ao mundo espiritual as tarefas que, como cidadãos, precisamos executar para que o mundo melhore”. E para ser ainda mais preciso, ele cita o seguinte: “O Jaci Régis, perguntado, certa vez, por que não fazia prece, respondeu, mais ou menos assim: “Ora, Deus não sabe do que eu preciso? Então, não tenho porque pedir!”

Há, aqui, duas questões distintas: a primeira é que Benchaya generaliza ao afirmar que os espíritas terceirizam tarefas, ou seja, passam a Deus e aos espíritos aquilo que lhes é de obrigação fazer. A generalização, contudo, é injusta e parte de uma leitura imprecisa do fato. Em primeiro lugar, porque incontáveis espíritas, entre eles, lideranças reconhecidas por sua atuação junto à sociedade, portanto, que não podem ser classificados entre os que “terceirizam”, se utilizaram desse expediente como meio de doar energias magnéticas a pessoas necessitadas, para auxiliar no tratamento de males físicos ou psíquicos. De forma geral, essas reuniões oferecem também oportunidade para troca das mesmas energias para que a paz se estabeleça entre os seres humanos, entre outros. A ideia dessas preces ou vibrações, que em grande parte dos casos é levada em consideração, é a capacidade que todos os indivíduos possuem de movimentar energias em prol de causas justas. O entendimento de que isso significa uma fuga dos compromissos que ao homem cabe resolver, de uma terceirização de responsabilidades não faz, pois, sentido.

Quanto ao exemplo da fala do conhecido e sempre amigo Jaci Régis, poder-se-ia, aqui, fazer uma outra interpretação. Ao expor que “Deus sabe do que preciso” parece lógico que Jaci estava se referindo ao mesmo Deus teísta que foi colocado na berlinda pelo espiritismo, pois ao Deus deísta não é verossímil implicar tal suposição uma vez que este, segundo o espiritismo, não deriva de um exemplo humano e não é, pois, antropomórfico. Isso pode significar a dificuldade que se tem quando se trata da conceituação de Deus, mesmo que a posição deísta seja a nossa forma lógica de compreendê-lo. Somos vítimas da cultura em que estamos imersos e da linguagem, na qual vivemos.

Retorno a Herculano Pires para lembrar sua visão deísta ao afirmar: “Deus nos fala através de suas leis”. Ora, o Deus teísta, vinculado ao humano e dele nascido é um ser que conversa com os filhos utilizando os modos humanos da comunicação, mas o Deus deísta, que “conversa” com o ser por ele criado, o faz dentro de outro contexto e de uma forma peculiar, as leis do universo, com as quais não se pode conversar como antes se “conversava” com Deus. Trata-se, agora, da necessidade de um ajuste na “conversa” por parte do ser humano, uma vez que este se descobre diante da realidade antes desconhecida de que o simples fato de existir implica a “conversa” com aquele que o criou, ou seja, uma permanente relação comunicativa com Deus que já não está mais submetida aos padrões culturalmente estabelecidos e aceitos. Entre o ser criado e a criatura encontram-se as leis naturais. É este um desafio do qual não se pode fugir sob pena de desgarrar da realidade e voltar à condição anterior ou jogar-se no despenhadeiro da negação de Deus. Enquanto, porém, o ajuste comunicativo não ocorrer estaremos submetidos às condições culturais que, afinal, muito nos governam.

O desafio é entender que o processo da nova forma de “conversa” implica o pensamento, independentemente de o termos vinculado, enquanto encarnados, à palavra, porque até mesmo quando pensamos estamos nos valendo do repertório gramatical. Com a palavra ou não o pensamento existe, se manifesta e coloca o indivíduo em “conversa” permanente com Deus por intermédio das leis naturais, daí resultando um retorno (feedback) que as leis nos dão na forma adequada. Isso é, sim, comunicação, mas agora em lugar de signos culturais criados para facilitar o processo, usamos o pensamento, do qual desconhecemos racionalmente como opera para que as relações interativas ocorram. Não sabemos se usa algum tipo diferente de signos na construção da mensagem, ou se não necessita de símbolo algum. Sabemos que podemos administrar e dirigir o pensamento, por meio da vontade, controlando, assim, a sua manifestação, entretanto, só o fazemos de fato em ocasiões que podem ser consideradas excepcionais porque somos servis a ele e o deixamos à solta quase sempre.

De volta a Benchaya, encontramo-lo afirmando: “Kardec asseverou no ESE, Cap. XXVII, item 9, que a prece serve para pedir, para agradecer ou para glorificar. Essa abordagem acerca da prece pressupõe um deus providencial, paternal e interventor, concepção expressa no Teísmo”. Direi: sim e não – Benchaya se utiliza apenas de um pequeno trecho do item 9 para estabelecer suas reflexões. E mais: uma vez que Kardec opta no começo do Livro dos espíritos pela concepção deísta, não podemos ler seu pensamento com o olhar teísta, mesmo quando o teísmo nele parece evidente, pois não apenas os contextos são diferentes, mas, também, a estética da leitura precisa ser diferente. Entretanto, como aplicar um olhar deísta quando estamos imersos numa cultura majoritariamente teísta que nos contamina apesar de nossa repulsa? As condições que o meio dá a Kardec impõem um esforço maior não somente ao homem, mas também ao professor acostumado a esboçar seu conhecimento didaticamente, preocupado que está com a compreensão do aluno.  Neste caso, uma releitura do referido capítulo vai ser de auxílio importante à reflexão.

Vamos nos ater, por ora, ao item 9 do ESE, que assim começa: “A prece é uma invocação: por ela nos pomos e relação mental com o ser a que nos dirigimos”. Frase afirmativa, que se impõe pelo que diz: prece é invocação e invocar, neste caso, é chamar, daí o complemento: colocar-se em relação mental com aquele a quem chamamos. Depreende-se que podemos invocar qualquer ser que desejarmos e estabelecer com ele uma relação mental, ressalvando-se que há condições que devem estar postas para que as relações se estabeleçam, como, por exemplo, a possibilidade de o ser invocado poder atender ao chamado. Portanto, pode ser um espírito evoluído ou um de condições evolutivas semelhantes a nós mesmos, bem como pode ser Deus, a inteligência suprema do Universo. Para as três situações as condições estão razoavelmente colocadas e, quando se trata de invocar Deus, sabe-se de antemão que ele nos ouvirá e responderá por meio de suas leis, diferentemente de outro ser qualquer, individualidade definida e reconhecível.

Kardec prossegue: “Ela [a prece] pode ter por objeto um pedido, um agradecimento ou um louvor”. Perfeito. Podemos pedir ao ser invocado alguma coisa, assim como podemos pedir a um amigo o apoio para nossas necessidades imediatas. Se esse ser quer ou pode nos auxiliar, o passo está dado. Caso contrário, volta-se ao ponto inicial. As relações mentais se estabelecem a partir da invocação, que é o princípio da comunicação social e firma-se no desejo de comunicar, sendo este desejo o ponto de partida para qualquer interação comunicativa. Quando há intenção de comunicar a possibilidade de o fazer se coloca. Sem a intenção ou desejo a comunicação não se dá, mesmo que se interprete que ela ocorre em determinadas situações. Um exemplo simples: um jovem que veste uma camiseta com a imagem de uma personalidade qualquer estará desejoso de estabelecer uma comunicação quando sua intenção estiver no comando do ato de escolher e vestir a camiseta. Mas o desejo em si não significa que há comunicação, pois esta dependerá de ações posteriores e complementares, porque a mensagem desse jovem é ainda nebulosa. Mas se ele veste a camiseta simplesmente por achá-la interessante ou bonita, a intenção de comunicar não estará presente e, portanto, qualquer interpretação que se dê à imagem da camiseta será consequente de uma ação isolada do intérprete e não do atendimento a um desejo do portador dela. Sem a intenção de comunicar não haverá a possibilidade de relações entre um emissor e um receptor. Assim, quando Kardec informa que a prece é uma invocação está, também, dizendo que a comunicação pede que haja um emissor intencional e que este defina de algum modo a quem destina a mensagem, de forma a que o destinatário possa responder ao colocar-se na condição de receptor.

Dizer que o emissor pode pedir, agradecer ou louvar é a maneira que o professor encontra para dar clareza à sua mensagem, mas não significa que tudo se resuma a esses três conteúdos e menos ainda que o receptor ostenta uma condição paternalista. Se dirijo minha mensagem a um receptor de condição semelhante à minha solicitando sua atenção, sei perfeitamente até onde ele pode chegar, sem alimentar a ilusão de que ele vá além disso. Se a dirijo a um ser superior, espero que possa me atender, mas se a destino a Deus sei que não devo esperar uma resposta direta dele, senão através de um ente superior ou por meio das leis naturais que regem o Universo. Estou, pois, agora no mundo deísta, mundo da inteligência suprema. O pedir, o agradecer ou o louvar são conteúdos da mensagem que se emite. Pede-se aquilo que se necessita, agradece-se o que se recebeu e louva-se – enaltece-se ou elogia-se – a figura do destinatário por razões que se julga dignas. São situações comuns do dia a dia do ser humano que se repetem nas relações interativas, mas são também normais nas interações do plano visível com o invisível e vice-versa. Se o destinatário é Deus, nada muda senão o modo sobre como essa interação opera, ou seja, por meio de um Bom Espírito ou em vista das leis naturais. O deísmo espírita nos permite essa reflexão, que se mostra adequada e ajustada a ele.

Continua Kardec: “Podemos orar por nós mesmos ou pelos outros, pelos vivos ou pelos mortos”. Eis que o professor se adianta e coloca as possibilidades da prece que permitem outras reflexões. Orar por nós mesmos no plano do deísmo espírita significa saber que as energias, o pensamento e os espíritos sociais se entrelaçam e tornam o interexistencialismo de Herculano uma realidade palpável, rica e de amplas consequências. Orar por si é o que se conhece por diálogo da consciência, pensamento interior, que inevitavelmente atrai outras inteligências e as mobiliza positivamente quando há sinceridade de propósitos. Orar pelos outros é um ato meritório, de solidariedade, que expressa desejos compatíveis com o Deus desdobrado por Kardec e que, também, quando feito no campo da realidade deísta atrai de maneira automática as inteligências dispostas aos mesmos propósitos, unindo forças para um objetivo comum. Os outros a quem invocamos podem estar no corpo material ou fora deste, no mundo invisível, do que se depreende que a o ato de solidariedade expresso no desejo do invocador movimenta seres e energias, dando a estas as qualidades necessárias e possíveis aos resultados idealizados. Todas as interações decorrentes do ato de orar têm um elemento comum: a intencionalidade, que precipita a comunicação. A intenção e o ato consequente se mostram necessários para que as interações se tornem possíveis, não havendo, pois, razão para dizer, por exemplo, que Deus sabe do que precisamos e não há porque pedir. Só mesmo um Deus interventor, teísta, agiria para mudar por sua própria iniciativa qualquer coisa negativa que pudesse atingir suas criaturas. O Deus deísta do espiritismo é outro, é o que está fora da matéria sem estar ausente, que se manifesta pela lei natural a presidir um mundo onde habitam as individualidades inteligentes dispostas ao progresso pela experiência no corpo físico e fora dele, mas necessitando primordialmente da matéria para realizá-las.

Na sequência, Kardec aponta: “As preces dirigidas a Deus são ouvidas pelos espíritos encarregados de execução de seus desígnios; as que são dirigidas aos Bons Espíritos vão também para Deus”. Como estamos no campo do deísmo, entendemos que a invocação dos Bons Espíritos é a busca de um diálogo possível pelo qual transitem as mensagens que estão em nossas pretensões. Compreende-se, também, pelo princípio da intencionalidade, que é preciso desejar que o diálogo se estabeleça em sua forma mais clara a partir de um emissor, sendo necessário a este mobilizar pelo pensamento e direcioná-lo ao receptor pretendido. Quando este receptor é Deus, além das condições colocadas pelas leis da natureza por meio das quais Deus responde, torna-se compreensivo que o desejo expresso por um emissor qualquer repercute em outras individualidades inteligentes, no caso, os Espíritos Superiores, sensibilizando-os a responder às mensagens emitidas. É dessa forma que Kardec ensina e reforça a ideia de que “os espíritos encarregados da execução dos desígnios de Deus” são seres em estágio evolutivo adiantado que participam da criação de modo integrado às leis naturais. Se os acionamos através da comunicação, certo é que as leis naturais estão presentes nessa relação comunicativa, essa voz de Deus ordenadora do Universo. Compreensivo, pois, que as preces dirigidas a Deus ou aos Bons Espíritos sejam presididas pelas leis naturais, como marca o deísmo presente no espiritismo.

Kardec arremata o item 9: “Quando oramos para outros seres e não para Deus, aqueles nos servem apenas de intermediários, de intercessores, porque nada pode ser feito sem a vontade de Deus”. A ideia do professor Rivail implica uma visão integrada da vida: os seres inteligentes de qualquer condição evolutiva, nas suas ações e relações interativas agem como partes ou elementos da natureza. O agir na natureza compreende manipulação de energia, interação com os demais seres inteligentes, comunicabilidade, diálogo, expressão do pensamento, ou seja, é ato dinâmico que dá sentido ao existir. Se um Espírito Superior nos atende, dialoga conosco ou auxilia-nos em alguma coisa é lógico entender que o faz respeitando as leis naturais, pois não executaria uma vontade pessoal que fosse contrária a elas. Consequentemente, em assim agindo está exercendo a “vontade de Deus” como uma espécie de intermediário privilegiado entre um ser inteligente e o autor da vida. A vontade de Deus se expressa pelas leis naturais e os seres inteligentes necessariamente circunscritos a elas.

Analisado todo o item 9 do capítulo XXVII do Evangelho segundo o espiritismo, alcançamos o ponto do texto do Benchaya em que sua contundência aparece mais explicita, conforme destacado acima. É quando diz: “O Deus da primeira pergunta do LE não é o mesmo Deus referido no restante da codificação”. Como vimos, no que diz respeito ao que está prescrito no Evangelho, item estudado, isso não ocorre e estamos seguros de que não ocorre também em toda a codificação. Caso contrário, haveria uma contradição insanável, de caráter filosófico, que poria a obra toda abaixo.

Então, o que ocorre? A questão se prende ao olhar contaminado pelo teísmo que se lança sobre o texto de Kardec e Benchaya explicita isso quando diz, por exemplo: “Essa visão de um deus solícito que atende aos pedidos, que se satisfaz com agradecimentos e espera ser louvado ou glorificado é oriunda das religiões monoteístas”. Não é Kardec que diz que Deus “se satisfaz com agradecimentos ou espera ser louvado”; quem o faz é o seu leitor, com o modo pelo qual observa, reflete e conclui, na sua condição de decodificador do discurso sobre a prece. Este olhar, embebido pela cultura teísta desde o seu passado multiexistencial, cai sobre o texto kardequiano e o decompõe, atribuindo-lhe sentido singular. O estudo mais acurado, contudo, pode conduzi-lo a rever os significados que atribuiu e a perceber de modo efetivo o que de fato o autor do discurso transmite, as ideias expressas.

Kardec assevera que a prece “pode ter por objeto um pedido, um agradecimento ou um louvor”. O sentido parece estar explícito, claro, aparente, mas a estética da recepção pertence ao leitor, a cada leitor, e essa possui características próprias. Pode um concluir que Kardec fala “de um Deus providencial” e o contestar por isso. Outro pode entender que Kardec diz de um Deus não paternal no sentido humano e o aprovar. São duas conclusões antagônicas possíveis, o que não quer dizer que ambas estão corretas. Absolutamente. O significado mais próximo da ideia transmitida será aquele que observar o conjunto do discurso, sua lógica, de modo a perceber as relações entre as ideias diversas e de como elas se harmonizam entre si. No caso presente, o fio condutor tem início na questão número um do Livro dos espíritos, estendendo-se por toda a obra assinada por Kardec, de modo que o autor não pode defender no primeiro momento um Deus deísta, como se depreende da questão número um, e em outro momento um Deus teísta. É um ou outro.

Vejamos de novo a frase: a prece “pode ter por objeto um pedido, um agradecimento ou um louvor”. Pergunta-se: qual é o objeto “possível” da prece? Pedir, agradecer, louvar. Afirma-se que são apenas estes três os conteúdos da prece? Não. O bom-senso nos diz que há muitos outros. Afirma-se que são obrigatórios? Não. Afirma-se, finalmente, que Deus assim o quer? Também não. O autor apresenta a possibilidade de a prece ter por objeto pedir, agradecer, louvar quando utiliza o tempo composto “pode ter”. Nesse caso, se desejo utilizar um dos três conteúdos, ou até os três ao mesmo tempo, devo construir uma mensagem que os explicite, pois vou utilizar a prece para estabelecer uma relação comunicativa com um ser espiritual, que pode ser um espírito ou a própria divindade. O que faz Benchaya ao decodificar a frase de Kardec? Conclui: “Essa abordagem acerca da prece pressupõe um deus providencial, paternal, interventor, concepção expressa no Teísmo”, ou seja, o codificador é aqui teísta, enquanto que na questão número um do Livro dos espíritos é deísta. Poder-se-ia questionar: significa, então, que se eu pedir, agradecer ou louvar terei em mente um Deus de sentido teísta? Ou então: é o olhar de Benchaya que está contaminado pelos sentidos defendidos por uma cultura teísta?

Vejamos. Benchaya escreve: “Kardec asseverou […] que a prece serve para pedir, para agradecer ou para glorificar”, mas Kardec diz que a prece “pode ter por objeto um pedido, um agradecimento ou um louvor (entenda-se, aqui, louvor como sinônimo de glorificar). Para Benchaya “a prece serve para”, já em Kardec a prece “pode ter por objeto”. Assim, o significado atribuído por Benchaya à expressão “pode ter por objeto” é “serve para”. Vê-se que a interpretação não condiz com a ideia explicitada pelo autor, ou seja, “pode ter por objeto” não é o mesmo que “serve para”. Em Kardec, a prece “pode” servir, em Benchaya, serve. Se tivesse firmado a ideia de que “a prece serve para” no desejo de expressar sua opinião pessoal, Benchaya não deveria ser contraditado, mas quando diz que é Kardec que assevera, não é mais Benchaya que afirma e sim Kardec. Ele, Benchaya, é aí intérprete da ideia de Kardec, logo, é sua interpretação que está sob análise.

Destaque-se que há em Benchaya uma preocupação permeando todo o seu argumento: o fato dos espíritas assumirem um comportamento teísta na relação com Deus. Nisto estamos de acordo, inclusive quando afirma: “Não dá para conceber, como espíritas, esse tipo de relacionamento com a divindade”. Corretíssimo. Nessa mesma linha de pensamento está outra das suas reflexões: “cabe-nos refletir sobre como e quando devemos orar e até se precisamos orar”. Tem-se visto uma exploração constante da prece, o seu uso a todo momento e o excesso da louvação com teor nitidamente teísta, o Deus providencial e interventor, que incute medo, numa clara contradição com o ensino do espiritismo. Por isso, vale repetir outra afirmativa de Benchaya: “O espiritismo visa à libertação do espírito e não o seu aprisionamento a fórmulas e rituais, como um pedinte submisso e amedrontado”. Do mesmo modo, está ele com a razão ao dizer: “quando os centros espíritas impõem a obrigação ritualística das preces como condicionantes para receber apoio espiritual na realização dos trabalhos, estão conduzindo os frequentadores a uma dependência, em vez de auxiliá-los na sua emancipação”.

Não é certo, todavia, concluir como o faz Benchaya, que “a prece como ‘pedido, agradecimento ou glorificação’ encaixa-se nessa concepção de um deus de atributos humanos”. Seja pelo que já foi exposto acima, seja ainda porque é de boa educação mostrar-se reconhecido aos pedidos que se faz e que são atendidos nas nossas relações humanas. E pedir quando se precisa e não se tem condições de obter sem a participação de outrem, quando é justo e honesto, quando não implica em transferir ao outro aquilo que é de nossa obrigação, não acomete ninguém de vergonha nem induz ao erro. Antes, é expressão da humildade dos homens bons. Da mesma forma que o reconhecimento carrega consigo um forte conteúdo de entendimento da elevação de sentimento daquele que é solidário com a dor e as necessidades alheias. Ao tornar explícito esse entendimento cumpre-se uma obrigação, a de reconhecer que o outro merece nosso apreço e nossa disposição de contribuir com ele ou com outros em situações semelhantes. Reconhece-se mais, reconhece-se que o outro alcançou um grau evolutivo que se mostra estimulante para todos que ainda lá não chegaram.

A questão da prece, pois, não está na possibilidade de usá-la como expressão de um Deus de condição teísta ou deísta; antes, é compreender que sua prática deve ser feita com critério e bom-senso, sempre no entendimento de sua extensão e alcance nas relações que se estabelece com o outro e com a divindade. Assim, o Deus da primeira pergunta do Livro dos espíritos será, como de fato é, o mesmo de toda a codificação.


QUESTÃO DA PRECE

Salomão Jacob Benchaya

Uma das críticas feitas aos espíritas laicos refere-se ao fato de que estes não fazem as habituais preces de abertura e de encerramento das suas reuniões.
Os espíritas laicos não são contra a prece. Mas procuram não a empregar nos moldes como é utilizada e com as finalidades que lhe são atribuídas. A prece é um meio de comunicação (ESE, Cap. XXVII, item 9). Assim deveria ser considerada no espiritismo. Possui também função terapêutica indiscutível, com inúmeras pesquisas a esse respeito.
Os leitores poderão objetar que Allan Kardec tratou da prece, enalteceu o seu valor e sua eficácia e, inclusive, ofereceu modelos sugestivos de prece para diversas circunstâncias da vida. Jesus recomendou a oração e ensinou como se deve orar. 
Então, por que esta crítica? A prece tornou-se, em grande número de Centros Espíritas, um ato mecânico e ritualístico. Há uma crendice de que sem prece proferida ao início e ao término das reuniões, não há a assistência dos bons espíritos. Sinceramente, não acredito que seja essa a condição para que espíritos amigos compareçam às nossas reuniões, desde que estas sejam feitas com seriedade e respeito. Falo especialmente das reuniões públicas e de estudo em grupo, já que em reuniões mediúnicas a prece serve de auxílio no propósito de sintonização com os espíritos. Chegam a ser inconvenientes preces feitas por espíritas em solenidades levadas a efeito em órgãos públicos com a presença de pessoas de diversas religiões ou sem religião. Absolutamente desnecessárias e ridículas.
Um outro aspecto a considerar é que empregamos a prece como forma de nos eximirmos de responsabilidades que nos cabem exercer na sociedade. Assim, é comum que peçamos a Deus ou aos espíritos pela paz mundial, pela cura das doenças, pelas vítimas desta ou daquela tragédia, pela solução dos problemas sociais, econômicos e políticos da nação, etc. Terceirizamos ao mundo espiritual as tarefas que, como cidadãos, precisamos executar para que o mundo melhore. Parece que não confiamos nas leis da Vida e – como costuma dizer o Maurice Jones – “precisamos, quais crianças, puxar as vestes do Pai para lembrá-Lo do que nos falta”. Um absurdo! O Jaci Régis, perguntado, certa vez, por que não fazia prece, respondeu, mais ou menos assim: “Ora, Deus não sabe do que eu preciso? Então, não tenho porque pedir!”
Hoje, com a comunicação instantânea que as redes sociais propiciam, tornaram-se comuns as correntes divulgando convites, seja do Papa ou do Bezerra, para que todos se unam em prece por este ou aquele motivo. 
Vamos admitir que a ação conjunta na prece sempre será útil no “saneamento psíquico” do Planeta, mas até que ponto orar não estará significando apenas omissão? Orei, fiz a minha parte. Nada mais preciso fazer – raciocinam alguns. Puro engano pensar que isso vai resolver os problemas humanos. 
Kardec asseverou no ESE, Cap. XXVII, item 9, que a prece serve para pedir, para agradecer ou para glorificar. Essa abordagem acerca da prece pressupõe um deus providencial, paternal e interventor, concepção expressa no Teísmo. Não é essa, todavia, a ideia que se depreende da questão número 1 de O Livro dos Espíritos – “inteligência suprema e causa primeira de todas as coisas” – uma visão Deísta. 
O Deus da primeira pergunta do LE não é o mesmo Deus referido no restante da codificação. Essa visão de um deus solícito que atende aos pedidos, que se satisfaz com agradecimentos e espera ser louvado ou glorificado é oriunda das religiões monoteístas. Um deus demasiadamente humano, estranhamente apequenado, se comparado ao da questão nº 1 do LE.
Não dá para conceber, como espíritas, esse tipo de relacionamento com a divindade. Sob a ótica evolutiva do espiritismo, gradativamente vamos superando o estágio de heteronomia – comportamento humano norteado por diretrizes procedentes de fontes externas, tais como as regras ditadas pela religião, as leis e normas sociais, o temor da sanção divina, etc. – para a conquista da autonomia intelecto-moral quando nossas ações passam a ser impulsionadas por valores internos, autênticos, decorrentes do uso consciente do livre-arbítrio e da razão. 
Então, cabe-nos refletir sobre como e quando devemos orar e até se precisamos orar. A prece tem função superlativa nas religiões, com a função de amoldar comportamentos que devem ser submetidos a um poder superior. Mas o temor tem efeito disciplinar efêmero só tendo eficácia em almas frágeis e obedientes. A prece como “pedido, agradecimento ou glorificação” encaixa-se nessa concepção de um deus com atributos humanos incompatível com a proposta de autonomia moral contida na doutrina espírita. O espiritismo visa à libertação do Espírito e não o seu aprisionamento a fórmulas e rituais, como um pedinte submisso e amedrontado.
Não estou desaconselhando a oração que, na verdade, é mais um processo de harmonização individual, que pode ser independente de auxílio espiritual externo. Estou propondo uma reflexão sobre o móvel de sua utilização. 
Precisamos sim, desenvolver esforço próprio para superar nossas limitações e não ficar à espera da intervenção divina na solução dos nossos problemas. À medida em que nos tornarmos seres atuantes, solidários, fraternos, engajados na construção de um mundo melhor, menos necessidade teremos de formalizar preces em determinados momentos e lugares, pois que, naturalmente, já estaremos “sintonizados” com as esferas superiores da Vida, atraindo, naturalmente companhias espirituais qualificadas.
Então, quando os Centros Espíritas impõem a obrigação ritualística das preces como condicionantes para receber apoio espiritual na realização dos trabalhos, estão conduzindo os frequentadores a uma dependência, em vez de auxiliá-los na sua emancipação.
A utilização da prece nos momentos aflitivos tem caráter de transitoriedade como recurso terapêutico. Mas, ninguém necessita de terapia depois que atinge o equilíbrio de sua saúde, seja física ou espiritual. Já agradecimentos e glorificação, com certeza, não fazem sentido se endereçados à “inteligência suprema”. Nós, sim, revelamos elevação espiritual quando somos agradecidos à Deus – mas isso é um estado de espírito, uma postura perante a Vida, não um ato formal.

By wgarcia

Professor universitário, jornalista, escritor, mestre em Comunicação e Mercado, especialista em Comunicação Jornalística.

One thought on “A prece do Salomão e o ensino de Kardec”
  1. Caro Wilson, Salomão sem dúvida trata de questão significativa, a despeito de postura radical: entendo que nós, espíritas,o somos simplesmente, não havendo os religiosos, laicos, científicos, etc., pois a manifestação de nossos costumes, decorrente da cultura em que estivemos e/ou estamos imersos nos leva a crenças e atitudes que não são simples de superar- mas Kardec define o espírita como o que reconhece suas imperfeições e se esforça por superá-las. Por outro lado, todos os esforços nesse sentido são úteis, e decorrente de nossa formação cultural, será o mote que cada um de nós utilizará. Sua abordagem ampla, Wilson, corrobora o que se repete e muitas vezes é negligenciado- não basta leitura, impôe-se estudo cuidadoso e repetido das obras de Kardec, para sua compreensão- e esta não será alcançada sem significativo esforço. Meus cumprimentos a ambos, pelo tema e pelas considerações.

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